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3.3 Deliberação Mediada

3.3.1 Indicadores da deliberação mediada

Em suas investigações empíricas, Maia (2008:105-6) lança mão de indicadores para a avaliação da deliberação mediada que associam os princípios deliberativos, tais como a participação e a argumentação racional, com as características e práticas das instituições da comunicação de massa. São eles: acessibilidade e caracterização dos interlocutores; argumentação; reciprocidade e responsividade; e reflexividade e revisibilidade de opiniões.

88 No original: “Mere factual statements or reports, just presented as such and without

argumentative support, or reaction to anticipated or real questions, are not deliberation. So most of what is commonly called news or reports or information is not yet deliberation. Neither are unsupported judgements, evaluations or proposals, nor expressions of personal sentiments, feelings or experiences”.

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Acessibilidade e caracterização dos interlocutores

Este indicador questiona quem são os atores que se apresentam como fonte nos materiais mediáticos – ressaltando que há diferentes modos de ser referenciado89 pelos media, que vão desde a citação direta, como no caso das

entrevistas, até as ocasiões em que o ator é objeto do discurso. Há também assimetria quanto ao espaço/tempo oferecido a cada diferente ator para a apresentação de suas interpretações e seus posicionamentos.

Como fonte, aos atores é atribuído um papel institucional que está em acordo com a percepção que os jornalistas (e os media em geral) têm da sua influência, credibilidade e legitimidade (tal como explica Peters (2008)). Uma vez que o processo de edição age diretamente sobre essas falas, pode-se dizer que os jornalistas

(...) intencionalmente confrontam essas vozes com a de opositores, utilizam estudos técnicos ou empíricos para sustentar ou minar a credibilidade do que é dito. Enquanto algumas vozes ganham proeminência, outras são marginalizadas nas narrativas midiáticas (Maia 2008:107).

A partir de suas pesquisas, Maia conclui que a estrutura de acesso aos

media tende “a reproduzir as assimetrias de poder existentes na sociedade” de modo que os agentes do centro do sistema político têm vantagens sobre a esfera da cidadania (embora a autora destaque iniciativas de relações públicas situadas na periferia do sistema político que tiveram sucesso em atrair visibilidade para seus temas e demandas) (Maia 2008:108). É importante lembrar, porém, que a expectativa não é de que os diversos atores sejam igualmente representados em cada matéria de jornal ou TV, mas sim, que no decorrer do tempo, em diferentes

89 Ferree et al. utilizam o conceito de standing que significa “ter uma voz nos media”. Nas palavras

dos autores, “In news accounts, it refers to gaining the status of a regular media source whose interpretations are directly quoted. Standing is not identical to receiving any sort of coverage or mention in the news; a group may appear when it is described or criticized but still have no opportunity to provide its own interpretation and meaning to the events in which it is involved. Standing refers to a group being treated as an actor with voice, not merely as an object being discussed by others” (2002:13).

132 espaços, seja possível representar as diversas perspectivas disponíveis sobre determinada questão.

Utilização de argumentos

Embora se reconheça que nem todo o discurso acionado na política possa ser caracterizado como argumentação racional, é de importância fundamental para a deliberação a justificação das demandas e dos posicionamentos de modo que estes sejam aceitos por aqueles afetados pelas decisões resultantes do debate.

A análise dos discursos presentes na esfera de visibilidade dos media mostra que alguns atores, ao justificarem suas posições, buscam antecipar ou prever, num exercício de raciocínio hipotético, os pontos de vista, as posições e as situações daqueles envolvidos nas questões. Não raro, políticos e especialistas sustentam que suas políticas preferidas são corretas para seus concidadãos. Mas é através do engajamento efetivo no debate com os interessados que se define "quem é afetado" e "como é afetado" por tais políticas (Maia 2008:109-10).

Esse indicador verifica se o discurso mediático é organizado de forma crítico-racional, elencando posições e contraposições. Maia questiona, assim, se os atores envolvidos naquela matéria “apresentam razões para sustentar suas visões, preferências, recomendações e comandos” e se estes procuram “o convencimento através de argumentos e procedimentos demonstrativos”. Mais uma vez, a troca discursiva pode não ser identificável em uma peça jornalística, mas, talvez, se apresente ao longo da edição ou em momentos distintos. É com a ideia de “lance discursivo” que a autora demonstra que as controvérsias podem se desdobrar em vários espaços dos jornais, por exemplo, não mantendo uma linha argumentativa contínua, e que a fragmentação dos discursos não compromete, necessariamente, a clareza ou a substância do debate.

Reciprocidade e responsividade

Quando se fala em reciprocidade e responsividade, procura-se saber se é possível encontrar indícios de que houve uma relação de diálogo – seja provocado

133 pelo jornalista, com a busca de respostas dos atores, seja construído pelo próprio texto.

Nossa premissa é que aquilo que se torna "visível, público, socialmente acessível" em qualquer estágio do processo compele os interlocutores a responderem publicamente por seus próprios pronunciamentos, diante da indagação dos outros (Maia 2008:111). Como explica Maia, há reciprocidade quando, em situação de debate, os “atores se referem a uma determinada questão e oferecem respostas às perguntas feitas”. A ausência de reciprocidade e de responsividade é percebida caso os atores não demonstrem ouvir os posicionamentos adversos, negligenciem os argumentos alheios ou silenciem ante a discordância – ou seja, não se vejam como parceiros no debate. Mas as dinâmicas argumentativas não são, contudo, lineares.

Em qualquer debate, algumas proposições se mostram mais relevantes, sendo acatadas e desenvolvidas pelos participantes, enquanto outras são negligenciadas ou mesmo suprimidas. Algumas contendas podem ser retomadas em debates posteriores, para melhor definição das questões, das recomendações e do encaminhamento de soluções (Maia 2008:111-2).

Quando analisada a deliberação mediada, isso se traduz, por exemplo, no modo irregular que os temas são apresentados ao longo das edições:

percebe-se que as discussões podem se multiplicar e se modificar, ramificando-se por diferentes editorias (política, economia, cotidiano, polícia etc.). Em diferentes espaços, os argumentos podem divergir ou se sobrepor uns aos outros, de modo não contíguo (Maia 2008:112).

Esses princípios de reciprocidade e responsividade dependeriam, segundo Maia, da qualidade do material discursivo, através da associação das melhores informações disponíveis, a credibilidade empírica, e a comensurabilidade conferida pela experiência.

Reflexividade e revisibilidade de opiniões

Finalmente, é importante identificar se, diante dos argumentos e das controvérsias distribuídas ao longo do tempo, há alterações nos posicionamentos e preferências expostos inicialmente. A reflexão crítica tornaria os conhecimentos provisórios, abertos, passíveis de revisão quando confrontados com novas

134 evidências ou contra-argumentos. “Tal indicador”, explica Maia (2008), “aponta para um processo de aprendizagem pelo qual os participantes podem rever as próprias opiniões ou argumentos para incorporar novos aspectos ou aperfeiçoar as razões em disputa”.

É preciso cautela quanto se trata do momento em que se pretende identificar um processo reflexivo o qual, a princípio, acontece no nível da consciência individual. Há, contudo, evidências empíricas da reformulação dos argumentos e incorporação de aspectos dos discursos dos parceiros: “Em alguns casos, os participantes admitem, consciente e explicitamente, a transformação deles mesmos e de seus discursos, através da interação e da incorporação de melhores argumentos” (Maia 2008:112-3).

A observação de Maia é corroborada com sua análise de que os meios de comunicação ofereceriam, em razão do registro durável das controvérsias, uma “base reflexiva dinâmica para que os atores aprendam com suas próprias experiências públicas embaraçosas ou com as de outrem”. As contribuições envolveriam até mesmo o aprendizado sobre o outro (2008:113).

A deliberação mediada, entendida ainda enquanto parte de um sistema deliberativo, envolve diferentes momentos: a articulação discursiva de movimentos sociais por meio de seus próprios veículos (jornais impressos, sites etc.); as campanhas eleitorais (seus debates televisionados, os vídeos do horário gratuito de propaganda eleitoral, as entrevistas concedidas a veículos jornalísticos); a apropriação das plataformas de comunicação em rede da internet (de forma individualizada ou massiva); a cobertura jornalística dos fatos e eventos de interesse público; entre outras tantas situações. A pesquisa aqui desenvolvida se dedica a refletir sobre o papel da imprensa nesse sistema heterogêneo levando em conta quais são os valores, as características e as limitações que se colocam na consecução de uma deliberação mediada pelo campo noticioso impresso.