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1.1 Fundamentos e princípios da Teoria Deliberativa

1.1.3 O uso da razão pública

A questão da razão pública, de suma importância para a teoria deliberativa, é um legado das discussões sobre a Ética do Discurso, como apontado anteriormente. Em sua formulação original, Habermas defende que a argumentação deve levar a um consenso racionalmente motivado: “ao invés de simples acordo ou uma barganha equilibrada, o objetivo da deliberação foi o consenso, o acordo de todos aqueles afetados por uma decisão” (Bohman 1998:401)13.

Nesse campo, há também grandes contribuições de Rawls, que, conforme explica Dryzek, defendia a ideia de que “os argumentos devem ser fundados em

13 No original: “Rather than simple compromise or bargaining equilibrium, the goal of deliberation

31 termos da ‘razão pública’ – levadas adiante pelos cidadãos, cuja substância é o bem de todos, e cujo procedimento é aberto” (Dryzek 2007:241)14. Rawls afirmava

que, mesmo sendo difícil determinar, a partir de princípios filosóficos, o que seriam políticas justas, há meios para se desenvolver de forma mais conclusiva as razões morais. Isso seria possível através de processos públicos de debate iluminados por fatos da vida política e por concepções de boa vida e regulados pelos ideais deliberativos (Gutmann; Thompson 1996:39).

Nos termos de Gomes (2008:120), a argumentação é diferente da conversação em virtude de sua pretensão de obter o convencimento a partir do uso da “razão em procedimentos demonstrativos” (racionalidade argumentativa). De acordo com a explicação de Bohman, o ideal da razão pública afirma que as decisões tomadas nos processos deliberativos devem ser universalmente aceitáveis, ou, pelo menos, que não possam ser racionalmente rejeitadas (Bohman 1998:402).

O convencimento racional, ou a aceitação universal (como apresenta Habermas, em sua leitura de Kant), remete-se à questão de que deve haver um embate argumentativo (give and take) a partir do qual as razões sejam aperfeiçoadas até a construção de um consenso fundado no melhor argumento. Rawls, explicam Gutmann e Thompson, defendia que o debate consistia em um modo de combinar informações e aumentar o leque de argumentos. Ao longo do tempo, acreditava o filósofo, os efeitos da deliberação inevitavelmente conduziriam a uma melhoria na situação (Gutmann; Thompson 1996:39). Para Gutmann e Thompson, em sua formulação da democracia deliberativa, a razão pública é contemplada pelo requisito da reciprocidade. Nessa perspectiva, a argumentação depende da disposição dos participantes em se colocar no lugar do outro e tentar aceitar como válidos os pontos de vista alheios. Adicionalmente, afirmam que o valor da razão pública não consiste de mais uma moralidade. O

14 No original: “arguments should be made in terms of "public reason" - carried out by citizens,

32 deliberacionismo oferece uma base a partir da qual as questões morais podem ser debatidas e transformadas em políticas públicas (Gutmann; Thompson 1996:67)15.

Essa categoria, no entanto, envolve algumas controvérsias. Alguns autores, questionando a validade ou a viabilidade da busca pelo consenso, discutem que, em primeiro lugar, nem sempre esse fim reflete a diversidade da sociedade e, especialmente, a demanda por um acordo amplo, pode esconder divergências e posicionamentos irreconciliáveis. Em segundo lugar, a democracia é marcada pelas discordâncias – o que, não é exatamente uma característica negativa (Gutmann; Thompson 1996; Mansbridge 1999; Shapiro 2003).

Em sua análise, Dryzek e Niemeyer identificam uma aparente incompatibilidade entre o pluralismo e o consenso:

O fato da reconciliação ser desejável é demonstrado pelo fato de que o desenfreado pluralismo e o consenso absoluto, em uma observação mais próxima, acabam por ter poucos advogados ou defensores. O fato da reconciliação ser difícil é demonstrado pela suspeita generalizada de que qualquer alegada resolução de sua tensão termina privilegiando um ou outro lado (Dryzek; Niemeyer 2006:634)16.

Os autores propõem, então, a ideia de metaconsenso, que, afirmam, pretende assegurar a manutenção do pluralismo e a busca pelo entendimento através da identificação das divergências no plano dos valores, das crenças ou das preferências. Uma vez definida a natureza das discordâncias, busca-se, em lugar do consenso, patamares mínimos de acordo quanto aos demais aspectos (Dryzek, Niemeyer 2006).

Mas essa alternativa não é a única formulação a contribuir para a superação das críticas à ênfase no consenso. Rawls já falava em consenso

15 Certamente, nem toda a deliberação conduz à produção de políticas públicas – e nem sempre

esse é o objetivo dos participantes. A deliberação tem seu papel também na condução de processos de aprendizado social, de construção e fortalecimento de identidades ou, ainda, facilitar a tematização de questões que ainda não se constituíram como públicas (Cal; Maia 2012; Marques; Maia 2010; Mendonça; Maia 2009).

16 No original: “That their reconciliation is desirable is shown by the fact that unbridled pluralism

and absolute consensus alike turnout on closer inspection to have few advocates or defenders. That their reconciliation is difficult is shown by widespread suspicion that any alleged resolution of their tension ends up privileging one side or the other”.

33 sobreposto (overlapping consensus)17 como estratégia para a acomodação das

divergências.

Rawls insiste em que a sociedade pode buscar um consenso sobreposto racional sobre alguns princípios básicos da política - permitindo que as pessoas, a partir de seus próprios fundamentos diversos, concordem sobre esses princípios. A idéia de um consenso sobreposto, como a noção teórica incompleta de acordo, busca instaurar estabilidade e acordo social em face de diferentes compreensões (Sustein 1999:133)18.

Uma formulação alternativa desconstrói a ideia de que a deliberação consiste na busca pela verdade (na forma do consenso). Bohman, na defesa do valor epistêmico da diversidade, afirma que a interação de diferentes pontos de vista torna a deliberação menos suscetível aos erros e às distorções. Com isso, o autor quer dizer que os processos de debate podem não ter como fim a verdade, mas, por outro lado, consistem na prevenção do erro (error avoiding) (Bohman 2007).

Outro dos pontos críticos no que diz respeito ao discurso deliberativo é a limitação da teoria quanto às formas argumentativas acionadas pelos atores na elaboração de suas demandas ou seus posicionamentos. Após duras críticas ao racionalismo exigido dos embates discursivos, atualmente, são reconhecidos como aceitáveis na deliberação aqueles discursos que lançam mão de ilustrações, testemunhos, histórias de vida, humor, retórica ou mesmo formas discursivas não verbais (Peters 2008). Autores como Jane Mansbridge (1999) e Dryzek (2001) alegam que a participação de atores que não dispõem de recursos enunciativos

17 Como ilustra Rawls, “[u]ma sociedade assim pode ser bem-ordenada por uma concepção política

de justiça desde que, primeiro, os cidadãos que professam doutrinas abrangentes razoáveis, mas opostas, façam parte de um consenso sobreposto, isto é, concordem, em termos gerais, com aquela concepção de justiça como uma concepção que determina o conteúdo de seus julgamentos políticos sobre as instituições básicas; e desde que, segundo, as doutrinas abrangentes que não são razoáveis (que, supomos, sempre existem) não disponham de aceitação suficiente para solapar a justiça essencial da sociedade. Essas condições não impõem o requisito irreal — utópico, na verdade — de que todos os cidadãos adotem a mesma doutrina abrangente, mas apenas, como no liberalismo político, a mesma concepção pública de justiça” (2000:82-3).

18 No original: “Rawls urges that a society might seek a reasonable overlapping consensus on

certain basic political principles – allowing people, from their own diverse foundations, to agree on those principles. The idea of an overlapping consensus, like the notion of incompletely theorized agreement, attempts to bring about stability and social agreement in the face of diverse comprehensive views”.

34 depende do reconhecimento do valor de suas contribuições – ainda que estas careçam de uma elaboração claramente argumentativa.

Sobre esse tema, Habermas oferece, ainda, contribuições. Respondendo às críticas a respeito da plausibilidade do discurso racional, ele esclarece que não se trata daquilo que Rawls denominou “teoria ideal”. Nas palavras do autor,

Esta prática bastante exigente de “dar e receber razões” (Brandom, 1994) tem as suas raízes nas e emerge das situações cotidianas de ação comunicativa. Os pressupostos ideais de inclusão, igualdade de direitos de comunicação, sinceridade, não-repressão e não- manipulação fazem parte do conhecimento intuitivo de como argumentar. Longe de ser uma imposição de idéias filosóficas exógenas, eles formam uma dimensão intrínseca desta prática (Habermas 2005:385)19.

Habermas (2005) lembra, ainda, que estas condições são pressupostas pelos atores ao se engajarem no debate, já que, uma vez descobertas manipulações ou trapaças, exclusões de pessoas ou proferimentos, a argumentação se torna insustentável – situação semelhante ao engajamento nas eleições, por exemplo.