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Inserção da contabilidade nas empresas de autogestão

PARTE II – ECONOMIA SOLIDÁRIA E AUTOGESTÃO

5. CONTABILIDADE NA ECONOMIA SOLIDÁRIA

5.2. Inserção da contabilidade nas empresas de autogestão

O trabalho de Almeida (2006), sobre a inserção da contabilidade nas empresas de autogestão, foi feito a partir de estudo de caso da Coopram – Cooperativa de Produção de Artes Metálicas, com as seguintes variáveis de análise, e suas respectivas características:

• Forma de comunicação: instrumentos de comunicação utilizados pela entidade para divulgar seus resultados econômicos e financeiros, e a capacidade destes instrumentos de captar e refletir a complexidade da autogestão (orçamento elaborado coletivamente, execução e controles compartilhados etc.);

• Conteúdo da informação: pertinência da linguagem da comunicação com os usuários, principalmente quanto à compreensibilidade e à constatação de um “baixo grau de educação formal” desses usuários;

• Utilidade da informação: importância dada à contabilidade para tomada de decisões, principalmente nas decisões coletivas;

• Apropriação da informação: socialização do conhecimento de gestão, em oposição ao resguardo desse conhecimento para o grupo gestor. Nessa dimensão buscou-se compreender as formas de transferência de conhecimento e as dificuldades na apropriação por parte dos trabalhadores do conhecimento contábil;

• Relação contador-usuário: análise das dificuldades de percepção, por parte dos contadores, da especificidade da autogestão;

• Legislação contábil: dificuldades quanto à captação, por parte da legislação, das especificidades da autogestão, desde a forma de registro e demonstração dos fatos econômico-financeiros, até à constituição formal dessas entidades.

As principais hipóteses deste trabalho eram que o aparato contábil não era ainda apropriado para o segmento, no sentido de não atender satisfatoriamente às demandas de informação, já que também se partiu da hipótese de que os empreendimentos solidários diferenciam-se dos demais segmentos do mercado, principalmente por sua dupla natureza: econômica e social.

Esta pesquisa foi feita a partir de levantamentos e entrevistas com três grupos de pessoas: membros da cooperativa (diretoria e cooperados), especialistas no assunto (vinculados a redes nacionais de fomento e apoio à Economia Solidária) e por contadores experientes em autogestão.

Observou-se que os resultados financeiros eram apresentados de forma convencional, pelos instrumentos tradicionais da contabilidade (Balanço Patrimonial e Demonstração do Resultado do Exercício da cooperativa) e eram disponibilizados nas Assembléias Gerais Ordinárias (AGO) e afixadas no mural. A formação dos associados em gestão e leitura de números do negócio não era feita pela contabilidade, mas pela entidade de apoio, no caso a ANTEAG.

Não era somente a contabilidade que produzia informações econômico- financeiras. O setor financeiro também produzia um relatório com o fluxo de recursos, contas a pagar e a receber. Essa duplicidade de fontes de informações se devia ao fato de a contabilidade ser terceirizada e os movimentos para elaboração dos relatórios contábeis só serem enviados mensalmente, perdendo-se a oportunidade do uso da informação para tomada de decisões operacionais. A empresa não contava, também, com um sistema informatizado de apuração de custos, sendo os preços dos produtos baseados em estimativas e fatores aplicados aos produtos.

Segue uma revisão dos resultados de cada variável de análise da pesquisa de Almeida (2006), principalmente quanto aos aspectos da confiabilidade do processo de comunicação e da confiança dos usuários:

Forma de comunicação

Observou-se que os dados estavam acessíveis, mas com pouca compreensão por parte dos usuários. Pelas declarações, não houve a preocupação em usar instrumentos que melhorassem a confiabilidade, nem que pudessem criar confiança nos usuários. A insuficiência do Balanço anual para manter o trabalhador informado e a falta de compreensibilidade não foi motivo para que aparecesse, em qualquer das falas, a questão da confiança. A contabilidade gerencial e a contabilidade social, que são comunicações de outra forma / dimensão, aparecem como carências.

Conteúdo da informação

Notou-se que a linguagem utilizada é complicada (não inteligível), causando o silêncio e desinteresse por parte dos cooperados. A linguagem dos relatórios é, na visão dos contadores, formal, técnica e codificada mesmo. Sugeriu-se uma linguagem mais cotidiana, simples e compreensível. Uma das falas é “... não dá para iludir a gente ...”, revelando uma ligação entre linguagem incompreensível e confiança (ALMEIDA, 2006, p. 86).

Utilidade da informação

Nesta dimensão aparece a importância dada à contabilidade para os processos de gestão, principalmente no processo de tomada de decisões coletivas e na gestão democrática, indo além da função tradicional de fornecimento de informações apenas para o fisco e para controle burocrático. Porém, a entidade pesquisada, mesmo tendo consciência do que seja e da utilidade da contabilidade gerencial, não utilizava a maioria dos seus recursos.

Iudícibus e Marion (2000, p. 20) dizem que:

em nosso país, em alguns segmentos da nossa economia, principalmente na pequena empresa, a função do contador foi distorcida (infelizmente), estando voltada exclusivamente para satisfazer às exigências do fisco.

A questão da utilidade da informação contábil pode ser colocada, então, do ponto de vista da confiabilidade que pode trazer. Para isso, a informação contábil e, principalmente o que a antecede, que são os registros corretos, deve fazer parte da cultura da empresa.

Apropriação da informação

Nesta dimensão encontra-se um dos objetivos do processo de comunicação de informações contábeis que é a transferência do conhecimento contábil e as dificuldades encontradas pelos trabalhadores para se apropriar desse conhecimento.

Para isso, torna-se fundamental a existência de um processo de formação que utilize uma linguagem acessível aos trabalhadores, que use técnicas de educação

popular, que sensibilize para a importância da contabilidade, que seja permanente e estruturado de forma crescente, ou seja, torna-se fundamental uma nova didática. A linguagem utilizada no empreendimento da pesquisa fazia com que os trabalhadores tivessem “medo e posição defensiva em relação à contabilidade” (ALMEIDA, 2006, p. 91). Essas dificuldades foram agravadas também pela baixa participação dos trabalhadores nos cursos promovidos pela entidade de apoio.

Outro problema para a não apropriação da informação contábil é um legado da cultura predominante nos trabalhadores da segregação entre o pensar (administradores) e o executar (trabalhadores)

Relação contador–usuário

Observou-se, nesta dimensão, um distanciamento entre os contadores e os trabalhadores (“abismo”). Os contadores exerciam seu trabalho tradicionalmente (prioridade para atender ao fisco), não compreendendo bem as especificidades dos empreendimentos de Economia Solidária. Os trabalhadores, por sua vez, não abordavam o contador para pedir esclarecimentos sobre a contabilidade, por falta de tempo ou de interesse.

Uma parte da dificuldade dos contadores é devida à sua formação, que não prepara para o atendimento de sociedade de pessoas, não prepara para a divulgação, pesquisa e reflexão do tema e não está aberta a novas tecnologias. Um dos especialistas aponta para a vocação da universidade, mesmo as que possuem extensão, de produzir conhecimento para as classes dominantes. As pesquisas mais financiáveis são as voltadas ao desenvolvimento de tecnologia para o capital (ALMEIDA, 2006, p. 98). De acordo com Kruppa (2005, p. 22), a escola está isolada da realidade, envolta pela rotina, sem a “sensibilidade para o movimento da vida, distante dos problemas e das alternativas que a população cria para sobreviver”. A mesma percepção teve Muhammad Yunus (2006) quanto à utilidade das aulas de economia que ministrava.

De acordo com Kruppa (2005, p.24),

A profissionalização produz interditos na comunicação. Baseada na divisão social do trabalho – quanto mais o indivíduo especializa-se mais define sua área de atuação – a sociedade atual perdeu a disponibilidade de ensinar os que não são do mesmo segmento profissional. Essa divisão do saber legitima que o engenheiro saiba o que o peão da fábrica não sabe, sem que se pergunte porque isso ocorre.

Notou-se também que, devido à Economia Solidária ser um tema relativamente recente (15 a 20 anos no Brasil), existe a dificuldade de arregimentar profissionais das áreas de contabilidade e direito. Esses profissionais não conhecem a demanda existente e acabam não se especializando nas necessidades específicas desse segmento, com sistemáticas diferentes das sociedades de capital. Principalmente nas empresas de pequeno e médio porte, a assessoria contábil e jurídica é terceirizada, contribuindo para o aumento da distância com os associados.

Na opinião dos trabalhadores entrevistados, os contadores deveriam:

conhecer as técnicas; saber resolver problemas; saber transferir conhecimento; ter sensibilidade; saber sensibilizar; saber dialogar; ser um comunicador; ter uma linguagem apropriada aos trabalhadores; disposição para criar; disposição para ouvir, discutir e aprender (ALMEIDA, 2006, p. 99).

Os cooperados desejavam que um contador da Economia Solidária fosse paciente e que adotasse uma linguagem simples.

Legislação contábil

A não captação das especificidades da Economia Solidária se aplica à forma de registro dos eventos econômico-financeiros, às demonstrações contábeis e à constituição e formalização das entidades. Para estudar essa dimensão, a autora supra citada analisou a pertinência das legislações gerais e contábeis para cooperativas. A conclusão foi que a legislação brasileira é atrasada, tendo dificuldade de compreensão do ato cooperativo e de sua tributação, sendo as cooperativas de produção confundidas com aquelas de produtores rurais. Além disso, existe o tratamento diferenciado entre grandes e pequenos empreendimentos (“trata desiguais como iguais”). Não é o caso de eliminação de obrigações legais, como a elaboração do balanço, mas de simplificá-las. A simplificação é para melhorar a competitividade.

Outra questão foi a da mensuração da participação de cada trabalhador na distribuição das sobras. A legislação diz que as sobras serão rateadas ou aplicadas de acordo com a participação dos trabalhadores na cooperativa. A participação no trabalho é mais difícil de mensurar. No caso dos empreendimentos urbanos é mais simples devido à possibilidade de calcular a quantidade de horas que o trabalhador esteve disponível no empreendimento.

As conclusões da autora, a partir do pressuposto da peculiaridade da Economia Solidária e Autogestão, são a da premência do ajuste da área contábil às reais necessidades dos empreendimentos solidários, nas seis dimensões estudadas. Com base nas evidências empíricas torna-se evidente, para a autora a necessidade de:

• Uma nova linguagem contábil simples e objetiva, mais próxima à linguagem coloquial dos trabalhadores;

• Novos instrumentos de informação contábil, aderentes às necessidades dos empreendimentos, e que permitam seu monitoramento e a avaliação das ações planejadas coletivamente;

• Nova atuação dos profissionais da área contábil, pautada pela pesquisa prática, voltada para a solução de problemas e para a difusão do conhecimento, voltada para a formação;

• Nova formação dos contadores, baseada na realidade brasileira e da classe trabalhadora, aliada a mais pesquisas;

• Nova legislação contábil, que segregue tributariamente os grandes e pequenos empreendimentos autogestionários.

PARTE III – PESQUISA DE CAMPO, RESULTADOS E