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PARTE I – CONFIANÇA E COMUNICAÇÃO

1.5. O contexto mais amplo da confiança

A confiança pode ser referenciada pelo tempo, época ou contexto vivido pelas pessoas, pelas empresas e pela sociedade. Será feito, a seguir, um paralelo entre a época pré-moderna, com a confiança básica (certa), a da modernidade, com a confiança autêntica, pois baseada no conhecimento e na possibilidade da desconfiança, e a da pós- modernidade com a perda da confiança, da fé e da certeza.

Alguns autores, como Lyotard (apud Giddens, 1991, p. 12), acreditam que vivemos a pós-modernidade, que seria o deslocamento das tentativas de fundamentar a epistemologia, a falta de fé no progresso planejado humanamente, a evaporação da grand narrative – o “enredo dominante por meio do qual somos inseridos na história como seres tendo um passado definitivo e um futuro previsível” – e na “pluralidade de reivindicações heterogêneas de conhecimento, na qual a ciência não tem um lugar privilegiado”.

A pós-modernidade, além da percepção de se estar vivendo um período nitidamente distinto do passado, apresenta-se como a descoberta de que:

... nada pode ser conhecido com alguma certeza, desde que todos os fundamentos preexistentes da epistemologia se revelaram sem credibilidade; que a ‘história’ é destituída de teleologia e conseqüentemente nenhuma versão de progresso pode ser plausivelmente defendida; e que uma nova agenda social e política surgiu com a crescente proeminência de preocupações ecológicas e talvez de novos movimentos sociais em geral (GIDDENS, 1991, p. 52)

A resposta padrão aos pós-modernos, segundo Giddens (1991, p. 12), é “demonstrar que uma epistemologia coerente é possível – e que um conhecimento generalizável sobre a vida social e padrões de desenvolvimento social podem ser alcançados”, como no “Discurso filosófico da modernidade” de Habermas, que vê a modernidade como um projeto em andamento, inacabado (Habermas, 2000).

Para Giddens (1991, p. 12), a desorientação é decorrente da sensação de não se poder obter conhecimento sistemático da organização social, das pessoas terem sido apanhadas num universo de eventos que não compreendem plenamente e que se mostram fora de seu controle. Quando isso ocorre, não basta inventar novos termos, como pós-modernidade ou qualquer outro. Ao invés disso, tem-se de olhar para a

natureza da modernidade. Em vez de pós-modernidade, tem-se um período em que as conseqüências da modernidade estão mais radicalizadas e universalizadas do que antes.

A confiança só pode se situar no projeto moderno, até porque só faz sentido falar em “projeto” para a modernidade, já que a pós-modernidade não pressupõe projetos, que é uma palavra estranha a ela, não podendo também invocar uma coerência histórica, que, para Giddens (1991, p. 53), ela declara como impossível. De acordo com Habermas (2000, p. 7), a “idéia de pós-modernidade apresenta-se sob uma forma política totalmente distinta, isto é, sob a forma anarquista”.

Habermas (2000, p. 12) diz que a modernidade não pode e não quer utilizar critérios de orientação de outras épocas, tendo de extrair de si mesma a sua normatividade. Assim, seria suscetível de autocompreensão e da tentativa de autoafirmação, buscando sua legitimidade, ou direito próprio de época, perante supostas dívidas culturais para com o legado do cristianismo ou da antiguidade.

1.6. A confiança em sistemas abstratos

Os sistemas peritos (ou especialistas) são “sistemas de excelência técnica ou competência profissional” (GIDDENS, 1991, p. 35), sobre os quais não se conhece e não é possível conferir a maior parte dos fundamentos (códigos de conhecimento) que regem seu funcionamento. Porém, confia-se, tem-se fé, não tanto em suas competências, mas na autenticidade do conhecimento perito que eles aplicam, algo que não se pode, em geral, conferir por si mesmo:

Quando saio de minha casa e entro num carro, penetro num cenário que está completamente permeado por conhecimento perito – envolvendo o projeto e construção de automóveis, estradas, cruzamentos, semáforos e muitos outros itens. Todos sabem que dirigir um automóvel é uma atividade perigosa, acarretando o risco de acidente. Ao escolher sair de carro, aceito esse risco, mas confio na perícia acima mencionada para me garantir de que ele é o mais minimizado possível (GIDDENS, 1991, p. 35).

Os sistemas peritos dependem de uma “fé” pragmática, baseada na experiência que mostra certa regularidade no funcionamento de tais sistemas. Além disso, existem forças reguladoras que protegem os consumidores, como as associações profissionais, órgãos de defesa dos consumidores etc., que certificam profissionais, licenciam máquinas, vigiam a utilização de padrões, ou seja, dão autenticidade a esses sistemas. A confiança é dada, em parte, devido aos mecanismos de proteção (tais como as

assinaturas eletrônicas nas transações por cartão de crédito nos computadores), às referências e reputações e às marcas. (Idem, p. 72).

... geralmente confiamos nos produtos que compramos; sem titubear arriscamos nossas vidas neles (carros, medicamentos, alimentos embalados, aviões, para-quedas, cordas de bungee). Confiamos nas pessoas que nos servem, amiúde sem checarmos suas credenciais. (A maioria de nós alguma vez examina os diplomas profissionais de nossos médicos ou dentistas? Como você sabe se a garçonete não cuspiu em sua sopa ou, ao vir da cozinha, deixou cair no chão seu sanduíche? Quantas pessoas conferem cuidadosamente as pílulas preparadas pelos farmacêuticos?) (SOLOMON e FLORES, 2002, p. 38).

Em nosso dia-a-dia, vive-se rodeado de desconhecidos nos quais confia-se implicitamente, confiamos porque é preciso fazê-lo. (Idem, p. 71). Sem essa confiança, não haveria negócios, e sem a confiança entre desconhecidos não haveria a economia global ou sequer uma economia regional (Idem, p. 72).

A despeito de notórios patifes e impostores, nossa atitude em relação à maioria de nossas transações de negócios é de confiança, misturada com certa dose de prudência. Se na realidade aceitássemos o alerta “caveat emptor” (“que o comprador se acautele”)1 seria difícil até mesmo ser um consumidor (Idem, p. 39).

Qualquer um que utilize fichas monetárias ou um sistema perito o faz na presunção de que outros honrem seu valor, no caso do sistema financeiro, e saibam o que estão fazendo, no caso dos peritos. Nesse caso, a confiança é uma forma de fé, na qual a segurança é adquirida em resultados prováveis, mais como um compromisso do que como compreensão.

Um aspecto importante da confiança nos sistemas abstratos é o que Giddens (1991, p. 84) chama de compromissos com rosto e compromissos sem rosto. Compromissos “com rosto” se referem a conexões sociais estabelecidas em circunstâncias de co-presença, chamadas, por Giddens, de relações verdadeiras. Os compromissos “sem rosto” dizem respeito ao desenvolvimento da fé em fichas simbólicas ou sistemas peritos. A interação, na vida social moderna, se dá, na maior parte do tempo, com pessoas estranhas, não como vindas de fora, representando uma ameaça, mas apenas uma interação na forma de contatos efêmeros, com um outro que não conhecemos bem (não-íntimo).

1 O mesmo que: “por sua conta e risco”.

Na época em que foi escrito o livro “As conseqüências da modernidade” (Giddens, 1991), a internet ainda era uma rede utilizada apenas em meios acadêmicos e militares, embora já existissem várias formas de transações via troca de dados entre empresas (EDI – Eletronic Data Interchange), que já necessitavam de mecanismos de autenticação. Com a intensificação das relações virtuais, propiciada pela internet, a necessidade de mecanismos de geração de confiança foi também aumentada. Qualquer pessoa que utiliza os sites de comércio eletrônico quer ter a certeza da segurança em relação aos dados do seu cartão de crédito, senhas, conteúdo das transações etc.

Algumas empresas, como o eBay, maior empresa de leilões pela internet, com faturamento anual de US$ 3,27 bilhões em 2004, que opera na Nasdaq e está presente em 30 países, são basicamente empresas baseadas em confiança. O modelo de negócio tem, segundo Babini (2005, p. 27), as seguintes características:

• Acesso a qualquer pessoa, independente da experiência anterior de negócios on-line e do porte da transação (mercado aberto);

• Negócio feito a qualquer momento e a distância, limitado apenas pelo alcance atual da Internet e cobertura geográfica da eBay;

• Variedade de produtos, de brinquedos a equipamentos para empresas;

• Os usuários são a chave do negócio, formando uma grande comunidade, com laços que ultrapassam a esfera comercial;

• Base em uma experiência de compra dinâmica, divertida e original;

• Permanência em função da confiança do usuário em um sistema embasado na interação entre pessoas que não se conhecem.

Todas as transações, mesmo as pequenas, são tarifadas, e cobradas sempre da parte vendedora. Trata-se de um sistema abstrato, pois os usuários não se conhecem e não conhecem o sistema, mas confiam que receberão o dinheiro pelo produto que venderam ou o produto que compraram, sem ter a noção da tecnologia envolvida na transação (infra-estrutura de rede, protocolos, aplicações, sistemas de pagamento etc.), na segurança física (firewalls, controle de acesso etc.), na segurança contra a chamada “engenharia social” (abuso da confiança de funcionários que detêm informações valiosas, a prática de vasculhar o lixo das empresas etc.) e nos modelos de gestão destinados a construir confiança (parcerias entre empresas, reuniões presenciais de

membros importantes da comunidade, incentivos aos pequenos comerciantes, que formam uma base leal e estável). A visão da empresa é tornar-se a “primeira opção na hora de fazer compras, objetivo que até então apenas uma empresa de tijolo-e-cimento como o Wal-Mart poderia pleitear” (BABINI, 2005, p. 30).

Um dos mecanismos para que os usuários continuem confiando no sistema, “baseado na interação entre estranhos”, é o “Fórum de Feedback”, um espaço para resolver conflitos, receber ajuda e estabelecer vínculos. Podem-se atribuir pontos aos parceiros comerciais, criando assim uma “reputação” (Idem, p. 31).

A confiabilidade pode ser estabelecida entre indivíduos que se conhecem bem, sendo o relacionamento de longo prazo a garantia da fidedignidade mútua. Já a confiabilidade em sistemas abstratos não pressupõe encontros com um de seus responsáveis. O contato dos atores leigos com esses sistemas se dá por meio dos chamados “pontos de acesso”, que são o “terreno comum dos compromissos com rosto e sem rosto” (Idem, p. 87).

A natureza das instituições modernas é marcada pelo mecanismo de confiança em sistemas abstratos, principalmente nos sistemas peritos. Com a modernidade potencializada pela globalização, ninguém pode optar por abandonar totalmente esses sistemas. O contato com os sistemas peritos é feito nos chamados “pontos de acesso”. Para os compromissos com rosto nos pontos de acesso, criam-se relações de confiança exibindo confiabilidade e integridade, como nas deliberações de juízes, no profissionalismo solene dos médicos, na animação estereotipada da tripulação do avião, complementando as tecnologias envolvidas e demonstrações estatísticas da segurança das viagens aéreas. Em algumas relações, nos pontos de acesso, ocorre uma deliberada separação entre o que é visto pelos leigos e a essência do trabalho profissional, algo como a divisão entre “palco” e “bastidores”. Isso ocorre pela existência, por mais afiada que seja a habilidade do perito e o avanço da tecnologia, de elementos do acaso. Nesse caso, “os peritos pressupõem que os indivíduos leigos se sentirão mais confiantes se não puderem observar o quão freqüentemente esses elementos entram no desempenho do perito” (GIDDENS, 1991, p. 87-91). A atitude de confiança, ou falta dela, nos sistemas abstratos é fortemente influenciada pelas experiências nos pontos de acesso. No caso da eBay, relatado anteriormente, a empresa funciona como ponto de acesso aos leilões eletrônicos, intermediando basicamente relações de confiança entre comprador e vendedor.