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A instituição de um conselho dos mais velhos foi descrita para diversos grupos Jê Embora as inform ações sobre a existência de tal instituição entre os Kaingang tradicionais sejam escassas e

A CHEFIA NA SOCIEDADE TRADICIONAL KAINGANG

22 A instituição de um conselho dos mais velhos foi descrita para diversos grupos Jê Embora as inform ações sobre a existência de tal instituição entre os Kaingang tradicionais sejam escassas e

O tema do faccionalismo já foi apresentado como a característica predominante da organização política dos grupos Jé. Bamberger (1979) sugere que os primeiros estudos sobre os Kayapó indevidamente caracterizaram estes índios como semi-nômades, pois não perceberam que os grupos residenciais enfrentavam um processo contínuo de fissão social. Segundo Maybury-Lewis (1984), na sociedade Xavante as facções competem em torno de acusações e desentendimentos mútuos, mas sobretudo, competem pela chefia. Uma das condições fundamentais para a consolidação de um sistema político faccionalista é a possibilidade do exílio em direção à terras não ocupadas, ou em direção a outros grupos com os quais exista alguma forma de aliança.

Para Bamberger a fissão é uma resposta conservadora às tensões geradas pela disputa de poder entre os household heads, pois com o exílio ocorre a preservação “o f the old social order, which is later replicated in the new village”(BAMBERGER 1979:142) A velha ordem social Kayapó, a qual Bamberger se refere, está formada sobre a prevalência do ‘exilio’ (exit) sobre a reivindicação (voice). Assim, a prática do exílio reforça as identidades das facções, sem alterar os padrões de organização social que geram as contínuas fissões so c ia is".

Entre os Kaingang é possível supor que tenha ocorrido processo semelhante. Silvio Coelho dos Santos (comunicação pessoal) argumenta que os constantes processos de fissão social, característicos da tradição faccionalista Kaingang, fizeram com que estes índios ocupassem grandes porções dos territórios meridionais do Brasil. As descrições das disputas inter-tribais sugerem que o faccionalismo dirigia a

23 “With the suppression o f exit, the level o f Kayapó voice has been raised. The em ergence o f a Kayapó voice seem s to be as much the result o f the appointment o f native lieaders from the outside as it is the outcom e o f a direct curtailment o f their physical m ovem ents” (BA M B ER G ER 1979:145)

constituição da autoridade política. Ambrosetti (1894), que conheceu os Kaingang de M issiones, afirma que “estos índios llevan el sentimiento de su independencia hasta e l punto de vivir sus individuos en pequeños grupos, bajo la autoridad casi nominal de un Cacique” (AMBROSETTI 1894:344). Tal estrutura de poder faccionalista não era formada a partir do pertencimento aos clãs, ou às metades. O padrão de residência uxorilocal, combinado ao sistema de dominação, que se apoiava na autoridade do sogro sobre os genros, gerava os ‘grupos incorporados’, ou os grupos que respondiam pelas necessidades de produção e reprodução na sociedade tradicional Kaingang, especialmente visíveis em tempos de guerra. O pertencimento às metades ciánicas agia como uma estrutura englobante, a qual comportava a convivência ritual dos grupos incorporados ou facções.

1.8. Complementaridade

Telêmaco Borba descreveu a autoridade política tradicional Kaingang dentro dos limites dos grupos residenciais:

“Vivem reunidos aos magotes de 50, 100 e mais indivíduos, sob a direção de seus caciques* porém em todo o tempo a autoridade destes é quasi nulla; é só por meios persuasivos, brandos, e dádivas que podem conservar algum ascendente sobre seos companheiros, isto é, conserval-os em seos toldos; nos momentos em que abandonaram estes meios de dominio, ficam isolados de seos subdito, e até seos proprios filhos e parentes os abandonam à procura de outro chefe mais liberal e menos despotico. Geralmente os caciques, e ainda os que mais trabalham, são os que menos objetos teem, pois é regra entre esta gente, que nunca se deve negar o que é pedido (...)” (BORBA 1882[1908]:07)

Outros observadores também constataram a ausência de poder de mando dos caciques sobre seus ‘súditos’. Horta Barbosa, ao narrar suas observações dos Kaingang do estado de São Paulo em processo de pacificação, afirmou que a

organização política era praticamente inexistente: “seus laços são tão frouxos que se é antes levado a dizer que ela não existe (...) essa autoridade só é verdadeiramente ativa e sensível nas ocasiões dos empreendimentos difíceis” (HORTA BARBOSA 1947:52). Os comentários de Ambrosetti também ratificam esta pespectiva “el [o chefe] que, para tener alguns ascendiente sobre ellos, necesita ser dadivoso con sus súbditos, amén de no ser autoritario, puesto que se expone a ser abandonado por ellos, de un momento a otro (...)”(AM BROSETTI 1894:342). As observações de Kõnigswald seguem na mesma direção: “A pouca autoridade que o cacique desfruta se relaciona muitas vezes com ’ os presentes que ele dá aos com panheiros” (KÕNIGSW ALD 1908:10 apud VEIGA 1992:63)

Estas descrições reforçam o critério da reciprocidade como articulador da autoridade política. Entretanto, as mesmas fontes que descrevem o critério da reciprocidade, indicam algumas formas de reordenar o circuito das prestações em favor da centralidade da autoridade. O chefe certamente não era apenas um doador, senão um centro de mediação entre posições muitas vezes antagônicas - como aquela entre amigos e inimigos, entre membros das metades, ou entre vivos e mortos. Desta forma, o chefe seria um promotor da reordenação da complementaridade invocada nos contextos rituais e das alianças postas em cheque nos contextos de guerra.

A ênfase na complementaridade das metades desloca a discussão a respeito do caráter faccionalista da autoridade dos grupos residenciais, para a discussão sobre a existência de uma autoridade política de caráter religioso. Autoridade esta capaz de produzir a articulação dos grupos residenciais em torno do tratamento ritual dispensado aos eventos centrais da cosmologia e das práticas sociais Kaingang. Esta

seria uma prerrogativa fundadora da instituição da chefia, que, entretanto, não implicava na constituição de uma autoridade central em todos os contextos.

A associação entre os poderes religioso e político da autoridade tradicional Kaingang também estão presentes nos comentários de Borba. Segundo o autor, havia , líderes que empregavam conhecimentos provenientes de sonhos para predizer bons ou maus tempos. Com o emprego de tais conhecimentos os chefes respondiam às exigências da reciprocidade24. Kurtz de Almeida (1998) argumenta que a chave para o estudo do caráter religoso da autoridade tradicional Kaingang reside na compreensão da categoria Paí. Este autor enfatiza as distinções entre o poder caracteristicamente político-religioso do P aí e o poder xamânico atribuído ao Kuiã. Por um lado, a categoria Kuiã, como são denominados os xamãs Kaingang, são responsáveis “pelo tratamento de doenças e (...) controle de forças desconhecidas” (KURTZ DE ALMEIDA 1998:70). Por outro, a categoria\Pí«J conforme consta da bibliografia, é apresentada por alguns autores como vinculada à posição de chefe político, e por outros como uma função ritual - aquela de organizador do ritual do

Kiki.

O tema do xamanismo entre os grupos Jê-Bororo é ainda pouco estudado - o trabalho de Jan Christopher Crocker (1985) sobre o xamanismo Bororo é um dos

24 “Há alguns entre eles. os mais velhacos, que se inculcam com o tendo correspondência, por m eio de sonhos, com Tupen, e predizem os tempos bons ou maus, e as ocasiões para as boas caçadas: estes, geralmente, são os velhos caciques que se servem deste m eio para não serem abandonados por seus com panheiros." (BO R BA , 1882[1908]:8). O em prego do termo Tupen sugere uma relação com a divindade Tupã atribuída aos Tupi-Guarani. Tom asino (19 9 5 ) ao comentar sobre a transferência dos Kayoá do Mato Grosso para a região do Tibagi, utiliza parte dos registros de Elliot (1 847), os quais reforçam tal relação: “por mais diligencia que praticasse para que nossa partida do pouso se fizesse cedo, nunca pude conseguir, porque ao cahir da noite com eçavam os índios os seus folguedos de cantos e dansas que levavam até meia noite, e à madrugada repetiam a mesma cousa até alto dia. O cacique Imbaracahy era sempre o que presidia a estes actos, e lhes dava regularidade com certas formalidades e cerim onias que pareciam religiosas, e perguntando-lhe eu a significação de tantos festins, respondeu-m e que tudo era em louvor do Pahy Tupan (D eu s)...’’(ELLIOT 1847:442 a pu d

poucos estudos dedicados integralmente a este tema25. Diferentemente, o xamanismo tem inspirado muitos trabalhos entre grupos Amazônicos. Há, pode-se dizer, uma tradição de estudos xamanísticos a respeito dos grupos do alto Rio Negro. Reichel- Dolmatoff, que publicou em 1967 estudo sobre os Desana, tratou do simbolismo associado ao xamanismo Tukano, estabelecendo um contraste entre a figura do payé e a figura do Kumu. Ambas são autoridades religiosas - ele argumenta - o que as difere é a posição que ocupam na estrutura social: a posição do payé é liminar; aquela do Kumu é central. Isso não significa que o payé é menos importante. Na verdade, o próprio Dolmatoff afirma que o payé tem uma função econômica central na vida dos Desana “pues el payé és el intermediário entre el cazador y los ‘dueños’ mágicos de los animales”(DOLMATOFF 1967[1986]:41)26. O Kumu, diz Dolmatoff, é uma espécie de sacerdote, cuja principal função é “conservar las tradiciones que explica en largos consejos”(IDEM). A distinção payé!Kumu nos ensina que mesmo em uma sociedade na qual a atividade xamânica é central, a figura do xamã mantém um caráter marginal em relação ao tradicionalismo que envolve a manutenção do poder político. Entre os Desana este é o papel do Kumu, que mesmo depois de morto inspira seus seguidores os quais retornam ao local de seu enterramento, retiram os ossos dos dedos do K umu, os queimam e comem, para compartilhar de seu poder e da sabedoria. Preservando as especificidades, tal distinção pode ser transposta para o contexto Kaingang; neste caso o Kuiã ocuparia posição liminar e o P a í ocuparia posição central.

TO M A SIN O 1995:103)

25 Crépeau (1997) se insere nesta discussão, comparando o xam anismo Bororo e Kaingang. Embora os