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Um registro interessante sobre a imposição da patrilinearidade pode ser observado no artigo de Marcelo Piza (L38), que escreveu sobre os Kaingang paulistas Esse autor, ao tratar das tccnicas

A CHEFIA NA SOCIEDADE TRADICIONAL KAINGANG

9 Um registro interessante sobre a imposição da patrilinearidade pode ser observado no artigo de Marcelo Piza (L38), que escreveu sobre os Kaingang paulistas Esse autor, ao tratar das tccnicas

empregadas para forçar o casamento, registrou o depoimento de uma jovem Kaingang que se recusara a Ter fihos para prejudicar seu marido. “A moça deveria casar-se com o homem que lhe fosse escolhido para marido, por quem de direito. Si recusava, era amarrada a um poste e, depois, ao proprio marido. Encontramos, certa vez, uma india, bastante inteligente, que a nós se queixou de ter sido casada a força. Garantiu-nos, no entretanto, que ao sujo do marido não daria um filho siquer.”(P lZ A 1938:208)

1(1 Os termos ‘serviço da noiva’, e ‘preço da noiva’, são uma tradução aproximada dos termos ‘bride service’ e ‘bride w ealth’. Tais termos foram consagrados pela antropologia africanista britânica. Entretanto, a formulação de um m odelo geral que relaciona divisão sexual do trabalho, casam ento e prestações matrimoniais foi desenvolvida pela autora norte americana Jane Fischer C ollier, em seu trabalho entitulado “Marriage and Inequality on C lassless S ocieties” (1988). Neste estudo a autora propõe a existência de três grandes categorias de negociações matrimoniais, as quais cham a de ‘Bride Service M od el’, ‘Equal Bride Wealth M odel’ e ‘Unequal Bride Wealth M od el’. O m odelo do ‘Serviço da N o iv a ’ (Bride Service M odel), argumenta a autora, é característico de sociedades de caçadores e coletores, nas quais não há padrões de acumulação de riqueza, a negociação matrimonial, portanto, não en volve o pagamento, mas a prestação continuada de serviços por parte do marido para com os seus afins. N este tipo de sociedade não há espaço para a realização de elaboradas cerim onias de casamento, porque o casamento pode terminar com facilidade, caso a família da noiva entenda que os serviços não estão pagando pelos benefício sexuais que o afim está recebendo. O m odelo cham ado ‘Equal Bride W ealth’, corresponde às sociedades em que as negociações matrimoniais en volvem a

só ocorria depois de algum tempo, caso eles tivessem condições para viver afastados dos pais da noiva. Outra indicação conclusiva a respeito da uxorilocalidade entre os Kaigang encontra-se nos ensaios de Baldus (1937), e tratam do dever do “genro em governar também a sogra” caso o sogro morresse. Durante o meu trabalho de campo pude constatar que, apesar da longa história de contato dos Kaingang de Palmas, a regra da uxorilocalidade ainda é um dos critérios de residência - muitos jovens recém-casados que conheci vivem na casa do sogro.

1.5. Nominação

O pertencimento a uma metade decorre da descendência paterna. A ratificação desta identidade ocorre com a escolha de um nome para o recém-nascido. A nominação entre os Jê têm sido descrita como um importante processo de estabelecimento de identidades sociais. William Crocker (1979) ao discutir o tema da matrilinearidade entre os Canela, sugere que para os grandes ‘festivais do peixe’ as relações estabelecidas pela transmissão de nomes são mais importantes do que as relações de parentesco. Além de confirmar a importância da nominação como um processo de estabelecimento de identidades sociais entre os Canela, Crocker afirma

transmissão de riqueza entre as famílias do noivo e da noiva. Ocorre em sociedades formadas por fam ílias extensas, lideradas pelos mais velhos. N o caso do pagamento pela noiva (bride wealth ou bride price) o noivo conclui as n egociações no ato do pagamento. Geralmente nestas socied ad es existe uma cerim ónia específica para celebrar o casamento, e os produtos aceitos com o pagam ento pela noiva, geralmente, são de acesso limitado aos mais velhos. Estas são formas de garantir o controle sobre a sexualidade feminina por parte dos mais velhos, que desta forma também controlam a sexualidade, e a sociabilidade, dos homens joven s e solteiros. O caso dos Kaingang parace ser uma fusão destes dois m odelos, pois, as prestações matrimoniais envolvem serviços e pagam entos por parte do noivo, que tem sua sociabilidade controlada pela residência junto à família da noiva. Um a hipótese fraca para este tipo de negocição matrimonial talvez encontre-se no caráter sem i-n om ád ico dos Kaingang tradicionais.

que este é um fenômeno “Pan-gê”.n Jean Lave, que participou do projeto Harvard Central Brazil, discutiu extensivamente as práticas de nominação entre os Krikati. Segundo estes autores as relações baseadas na transmissão de nomes são tão importantes quanto as relações estabelecidas por parentesco, embora organizem domínios diferentes da vida social12. Os Krikatí acreditam que no nome reside a diferença fundamental entre eles e os animais selvagens. Tão logo o cordão umbilical de um recém-nascido é cortado, eles se mobilizam para proceder à cerimônia de nominação. “The child is provided with a social identity at approximately the same time he or she becomes a separate physical being”(LAVE 1979:20). Seeger chegou a conclusão semelhante ao estudar os Suyá: “The acquisition of names separates them from the animals and socialize the individual infant” (SEEGER 1981:121).

A importancia dos processos de nominação entre os Kaingang pode ser comprovada através da leitura do próprio mito de origem, o qual atribui aos heróis culturais Kamé e Kairu a criação e a nominação dos seres da natureza. Além de definir a indissociabilidade da humanidade e da identidade dos nominados, o mito de origem Kaingang era utilizado como fonte de nomes. Os nomes Kaingang fazem parte de um acervo pertencente às metades, o qual é definido segundo critérios expressos nos processos de nominação presentes na mitologia: os Kam és são

11 "The broader reliance on name transmission relatedness for festival group recruitment together with the extent to which name tranmission is a pan-Gê phenom enon suggests the hypothesis that this principle is more ancient than the festival lineage principle which is found less w idely spread am ong the festivals."(CRO CK ER 1979:242)

12 " R elationships o f kinship and marriage organize most dom estic group activities, but relationships based on the transmission o f personal names are equally important.(.„) Both kinship and naming relationships help to maintain the continuity o f Krikati society over time (...) naming and kinship relationships organize different domains o f social life: this division o f kin-based and nam e-based organizational d evices is itself a major feature o f Krikati social organization, and much o f the organizational significance o f each set o f principles com es from the contrast and com p lex interrelations between them .”(LA V E 1979:16)

compridos (altura e largura desproporcionais); os Kairu são redondos (proporcionais) (VEIGA 1994).

A criança Kaingang recebe a dupla marcação de sua identidade social - a filiação e o nome. Como entre os Krikatí, os Kaingang atribuem um valor de humanidade aos nomes, “Eles acreditam que o ser humano é formado do organismo e de espírito, sendo este último relacionado ao nome”(VEIGA 1994:128). Os Bororo, conforme estudados por Jan Christopher Crocker (1985), também associam os nomes com a porção imaterial do ser hum ano13. Os nomes Kaingang podem também ser entendidos como capazes de proteger o nominado contra os perigos da natureza e dos próprios espíritos. “(...) daí quando ela tem três dia, fa z o batismo e d á o nome, então já pode destapá ela um pouco, por que o batismo protege, por que o sol e os Kuprig [espíritos] gostam de criança, então depois que dá o nome, ela já fica mais protegida disso d a r (FOKÂE apud OLIVEIRA 1996:111).

Ao contrário da descendência patrilinear, a qual não pode ser modificada, os nomes podem ser manipulados a fim de proteger o recém-nascido contra impurezas. Em 1997, em Palmas/Paraná, ao entrevistar Dona Luiza Mendes (84 anos), fiquei sabendo que seu filho mais velho (Dorval - 55 anos) fora batizado com nomes das duas metades, pois ele havia nascido muito fraco. Com o nome da outra metade e com as marcas das duas metades Dorval estaria fortalecido contra a doença e contra seus causadores espirituais. Veiga (1994) descreve estratégia semelhante entre os Kaingang do Posto Indígena Xapecó, acrescentando que nestes casos os nomes são considerados como nomes korég (ruins/feios), em oposição aos nomes hã

13 “The Bororo em phasize the intimate association between proper names and that immaterial aspect o f being termed ‘a ro e’,(soul). A ll such names are derived from the natural and supernatural entities associated with each clan (...)” (CROCKER 1985:63)

(bons/bonitos)14. Como vemos o nome e a nominação englobam o conflito entre a patrilinearidade e a uxorilocalidade, integrando o nominado à complementaridade entre as metades via a mediação dos heróis culturais Kamé e Kairu.

1.6. Culto aos mortos

Baldus definiu o culto aos mortos entre os Kaingang como “a base e a expressão mais forte da cultura espiritual Kaingang” (BALDUS 1937[1979]:22). O interesse de Baldus no estudo deste culto se deve em parte à perspectiva teórica por ele adotada em relação ao que chamou ‘A Mudança de Cultura Entre os índios no Brasil”. Para ele as mudanças na cultura espiritual consomem mais tempo para se efetivar do que as mudança na cultura material, o culto aos mortos é especialmente resistente às mudanças.

“É caracerístico que mesmo índios tão ‘civilizados’, como os Kaingang de Palmas e os Bororo nas missões e em Tori-paru, que já quase completamente esqueceram os deveres tradicionais a respeito de uma vida que começa, não tenham esquecido os deveres a respeito de uma vida que termina.” (BALDUS 1937[ 1979]: 174).

Os ensaios de Baldus a cerca dos Kaingang e de outros grupos indígenas no Brasil, constituem uma verificação etnográfica desta posição teórica.

A julgar pela produção acadêmica sobre os Kaingang Baldus estava certo: o culto aos mortos é central para a cultura tradicional Kaingang. Baldus, entretanto, não foi o primeiro a tratar deste tema. Mais uma vez devemos a Telêmaco Borba as primeiras informações sobre as cerimônias funerárias Kaingang. Borba limitou-se a comentar sobre as formas de sepuitamento e a descrever sumariamente as beberagens