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Instru mentaliz ação institucionaliz ada da t ortura

No documento Tortura: de método a crime (páginas 45-55)

E se a prova de uma determinada natureza, a confissão, se apresenta como imensamente mais importante que as demais, então os meios para alcançá -la são l egítimos, especialmente quando o valor que se dá à busca (e alcance) da verdade é tamanho q ue justifica a violação da integridade física do indivíduo. Afinal, ainda não se concebia qualquer valor inerente ao ser humano , que se apresentasse como obstáculo ao procedimento persecutório.

Nesse contexto em que as premissas são controladas pelos opera dores do sistema, o raciocínio lógico é o seguinte : existe uma verdade; tal verdade é acessível pela confissão; através da tortura inevitavelmente se chega à confissão70.

Muito comumente pensa -se que a tortura, como método, é anterior ao estabelecimento do sistema inquisitório e poder -se-ia dizer que aquele sistema é condizente com uma época de barbáries e abusos contra o ser humano enquanto tal, nada tendo de absurdo no estabelecimento da tortura em seu âmago. No entanto, elucida Le Gof f que:

“A Inquisição, seguindo um novo método judiciário chamado precisamente método “inquisitório” e não mais “acusatório”,

c o ns ist ia e m int e r r o g a r o a c u sa d o p a r a o bt e r a c o n fis sã o d e su a c u lp a . E la in st it u iu u ma E u r o p a de c o n fis sã o , ma s mu it o r a p id a me nt e a c o n f is sã o fo i e xt o r q u id a p e la t o rt ur a . A t o rt u r a e r a mu it o p o u co ut iliz a d a na A lt a I d a d e Mé d ia , p o is o há b it o d a 70 B AI G E N T , Mic h a e l. A I nq u is iç ã o ( R io d e Ja n e ir o : I ma g o , 2 0 0 1 ), p. 8 9.

A nt ig u id a d e e r a l i m it á - la a o s e sc r a vo s. A I nq u is iç ã o r e ssu sc it o u - a e e st e nd e u -a aos leigos e leigas.”71.

Essa afirmação significa que a retomada da tortura em r elação aos “cidadãos comuns” – por assim dizer daqueles que não se encontram entre os escravos - obedeceu a uma necessidade trazida pela implantação da Inquisição. Quer dizer que ela só ressuscitou no meio judiciário porque, ao menos em tese, atendia crite riosamente aquilo a que se propunha a nova ordem jurídica imposta pela Igreja.

Todavia, qualquer instrumento só é útil enquanto consegue auxiliar na realização daquilo que se propõe. Cabe então a pergunta: a tortura, como ferramenta, é, ao menos em abstrat o, hábil a alcançar seus propósitos? Responder a isto demanda maiores reflexões.

Embora não tenha sido uma disposição do Tribunal do Santo Ofício nos primeiro anos após seu surgimento72, a Inquisição veio a introduzir técnicas de tortura nos procedime ntos de interrogatório aos hereges, afim de que o procedimento perseguisse sempre o m elhor dos elementos probatórios :

“Sob a aparente pesquisa intensa de uma verdade urgente,

e nc o nt r a mo s na t o rt ur a c lá ss ic a o me c a n is mo r e g u la me nt a d o d e u ma p r o va ; u m d e s a fio f ís i c o q u e d e ve d e c id ir so br e a ve r d a d e ; se o p a c ie nt e é c u lp a d o , o s so fr i me nt o s imp o st o s p e la ve r d a d e n ã o sã o in ju st o s; ma s e la é t a mbé m u ma p r o va d e d e sc u lp a se e le fo r ino c e nt e . S o fr ime nt o , c o nfr o nt o e ve r d a d e e st ã o lig a d o s u ns a o s o ut ro s na p r á t ic a d a t o rt u r a ; t r a ba lha m e m c o mu m o c o r po d o p a c ie nt e . A in v e st ig a ç ã o d a v e r d a d e p e lo su p l íc io d o

“interrogatório” é realmente uma maneira de fazer aparecer um

in d íc io , o ma is g r a ve d e t o do s – a confissão do culpado; mas é t a mbé m a ba t a lha , é a v it ó r ia d e u m a d ve r sá r io so br e o o ut ro q u e

71

LE G O F F, Ja c q u e s, A s R a íz e s me d ie va is d a E u r o p a ; t r a d u ç ã o d e Ja ime A. C la se n ( P e t ró po lis, R io d e Ja ne ir o : V o z e s , 2 0 0 7 ), p . 1 2 4 .

72 “Nos primeiros tempos que sucederam o estabelecimento da in quisição, os inquisidores nã o ma nd a va m c o lo c a r o r é u à t o rt ur a , p a r a nã o inc o r r e r e m ir r e g u la r id a d e , t e nd o c o mp e t ê n c ia p a r a ist o o s ju íz e s p o p u la r e s, e m v ir t u d e d a p r o c la ma ç ã o d o P a p a I no c ê nc io I V q u e ma nd a o s ma g ist r a d o s q u e p r e ss io ne m c o m t o r me nt o o s he r e g e s, a ss a ss ino s d e a lma s e la d r õ e s d a fé e m C r ist o e d o s sa c r a me nt o s d e D e u s, fo r ç a nd o c o m q u e c o n fe s se m se u s d e lit o s e d e la t e m o s d e ma is he r e g e s c ú mp l ic e s se u s. P o r é m, no t a nd o q u e o s p r o c e sso s nã o e r a m su f ic ie nt e me nt e se c r e t o s, r e su lt a nd o e m g r a ve s p r e ju íz o s à fé , p a r e c e u ma is c o nve n ie nt e e p r o ve it o so at r ibu ir a o s inq u is id o r e s a fa c u ld a d e d e se nt e nc ia r a t o r me nt o se m int e r ve nç ã o do s ju íz e s p o p u la r e s, d a nd o lhe s ju nt o co m e la a a bso lv iç ã o mú t u a d e a lg u ma ir r e g u la r id a d e na q u a l se p o ssa inc o r r e r , co mo p o r exemplo a morte”. ( E Y ME R I C O , N ic o la u . Ma nu a l d a I nq u is iç ã o . ( C u r it iba : Ju r u á E d it o r a , 2 0 0 9 ), p. 4 9 - 5 0 ) .

“produz” ritualmente a verdade. A tortura para fazer confessar tem alguma co isa de inquérito, mas tem também de duelo”73

.

Quanto aos métodos de tortura utilizados pelo sistema, não existiu nenhum rol exaustivo de maneiras de se proced er ao tormento. A variedade era tão ampla quanto a imaginação humana podia conceber. Neste ponto, surpreende o quanto a genialidade humana, capaz de tantas proezas benignas, pôde ser tão criativa mente empregada para um propósito cruel.

E ymérico sustenta que “como o direito canônico não descreve esta ou aquela tortura em particular, podem os juízes lançar mão das que pareçam mais convenientes para pressionar o réu a confessar o seu delito, de uma vez que não sejam torturas desusas”. Cita ainda cinco gêneros usuais de tortura e quatorze outras citadas por inquisidores célebres da época74.

Contudo, fazendo a devida análise histórica do momento, Michael Baigent sintetiza os métodos efetivamente mais utilizados pela Inquisição:

" H a v ia a t o c a , o u t o rt u r a p e la á g u a , na q u a l se fo r ç a va á g u a p e la g o e la d a v ít i ma a b a ixo . H a v ia o p o t ro , o nd e a v ít i ma e r a a ma r r a d a nu m e c ú le o c o m c o r d a s a p e r t a d a s, q u e p o d ia m se r a p e r t a d a s ma is a ind a p e lo t o rt u r a do r. E ha v ia a g a r r u c ha , o u po lia , ve r s ã o e sp a n ho la d o st r a p p a d o it a lia no . N e ss e p r o c e d ime nt o a ma r r a va m - se a s mã o s d a v ít i ma à s c o st a s e d e po is a p e nd u r a va m p e lo s p u lso s nu ma p o lia no t et o , c o m p e so s a ma r r a d o s no s p é s. Le va nt a va m - na mu it o d e va g a r p a r a ma x i m iz a r a d o r, d e po is ba ix a va m - na a lg u ns p é s c o m u ma br u sq u id ã o e v io lê nc ia q u e d e s lo c a va m o s me mbr o s( . . . ). Ma is t a r d e , na c a r r e ir a d a I nq u is iç ã o e sp a n ho la , e nt r a r a m e m u so o ut r a s t é c n ic a s. A v ít i ma p o d ia se r a ma r r a d a a u m e c ú le o , po r e xe mp lo , c o m c o r d a s q u e e r a m p r o g re ss iv a me nt e a p e r t a d a s a t é e nt r a r e m no s o sso s. E ha v ia in ú me r o s o u t ro s r e fin a me nt o s, o bc e no s d e ma is p a r a se r t r a ns c r it o s. T u do q u e as d e p r a va d a s i ma g in a sç õ e s d o s I nq u is id o r e s id e a l iz a va m a c a ba v a se nd o sa nc io na d o " . 75

Interessante a observação feita por Lui z Nazario a respeito do critério para a seleção do método adequado. Explica que se fazia um juízo quanto ao tormento adequado à cada indício, de acordo com sua gravidade:

73 FO U C AU LT , M ic he l. V ig ia r e p u n ir ( P e r t ró po lis: V o z e s, 2 0 1 0 ) , p . 4 2 . 74 E Y ME R I C O , N ic o la u . Ma nu a l d a I nq u is iç ã o . ( C u r it iba : Ju r u á E d it o r a , 2 0 0 9 ), p. 5 0 . 75 B AI G E N T , Mic h a e l. A I nq u is iç ã o ( R io d e Ja n e ir o : I ma g o , 2 0 0 1 ), p. 9 0 - 9 1.

“O suspeito “suficientemente torturado” era aquele que recebia

t o r me nt o s d e g r a v id a d e c o mp a r á ve l à g r a v id a d e d o s in d íc io s, se m

confessar. O “máximo justo ” era duas séries co mpletas de torturas

d u r a nt e 1 5 d ia s, u m in st r u me nt o d ife r e n t e po r d ia . O p o t ro e a p o lé e r a m a s t o rt u r a s ma is e mp r e g a d a s”. 76

Na verdade, como o suplício é anterior à inquisição, algumas das técnicas de tortura não foram criações do pr óprio período, mas adaptações de métodos já utilizadas no passado, como afirma Franco Cordero:

“La tortura es um médio clássico para arrancar la verdad.

D e sc o no c id a d e la v ie ja p r á t ic a a c u sa t ó r ia ( d e sa r r o lla d a c o m a r r e g lo a mo ld e s g e r mâ n ic o s) fig u r a e m e l C o rp u s i u ri s ; e s o b v io q u e lo s p e na l ist a s la imp o r t a ro n; e l r e t a r d o d e má s d e u m s ig lho , c o m r e sp e c t o a la d i fu s ió n d e la sa b id u r ía r o ma n íst ic a , d e p e nd e d e la u su a l in e r c ia d e l d a t o po sit ivo . P e ro ha br ía su r g id o a u n c u a nd o no la a c r e d it a r a n t e xt o s ve ne r a b l e s, p u e s se a se me ja mu c ho a l nu e vo s ist e ma y t a mb ié n a lã s o r d a lía s, d e lã s c u a le s no r e su lt a c la r a me nt e d ist ing u id a d e la p r i me r a a p a r ic ió n c o no c id a ( E st a do s V e r o ne se s, 1 2 2 8 ) , p u e s c u a nd o r e s ist e a lo s t o r me nt o s, e l a c u s a d o

purga los indício s”.77

A função específica da tortura em alcançar uma verdade real através da confissão, ganha uma conotação medicinal ao ser associada ao objetivo geral de combater a heresia. Afinal, s e o combate ao infiel era uma luta pela salvação das almas, a tortura que expiava os pecados era uma terapia para a alma.

Ademais, é notável que a espetacularização que revestia os Autos de Fé contaminava também os métodos de suplício que se valiam das ferramentas mais aterradoras quanto possíveis.

De toda feita o procedimento instituciona lizado prescreve a tortura em diversas situações78: 76 N A Z AR I O , Lu iz . Au t o s - d e - fé c o mo e sp e t á c u lo d e ma s sa ( S ã o P a u lo : A sso c ia ç ão E d it o r ia l H u ma n it a s, 2 0 0 5 ) , p. 8 0. 77 C O R D E R O , Fr a nc o . P r o c e d im ie nt o P e na l, T o mo I I ( S a nt a Fé d e B o g o t á : T e mis , 2 0 0 0 ), p . 2 2 . 78 A lé m d e st a s, E ymé r ic o a p o nt a o ut r a s h ip ó t e se s d e a p lic a ç ã o d o t o r me nt o , q ua nd o , po r e xe mp lo q u a nd o o s d e ma is me io s t ive r e m s id o in fr u t ífe r o s p a r a se c h e g a r à v e r d a d e o u q u a nd o o int e r ro g a d o co n fe ssa r o s po nt o s me no s g r a ve s ma s nã o c o n fe s sa r o s ma is g r a ve s.

“Dá-se tormento, primeiro, ao réu que varia nas circunstâncias,

ne g a nd o o fe it o p r inc ip a l. S e g u nd o , ao he r e g e no t ó r io q u e , se nd o d e c o nhe c ime nt o p ú b lic o su a he r e s ia , t e m c o nt r a si, a in d a q u e se ja só u ma t e st e mu n ha q u e o v iu d iz e r o u fa z e r a lg o c o nt r a a fé , p o r q u e e m t a l c a so e st e t e st e mu n ho e a má r e p u t a ç ão d o r é u sã o d o is in d íc io s q u e fu nd a me nt a m se m c o mp r o va ç ã o e é o q u e ba st a p a r a c o lo c á - lo e m t o rt u r a . O t e r c e ir o , me s m o q u e nã o h a ja t e st e mu n ha a lg u ma e o c o mp o rt a me nt o d e he r e s ia t e nha ind íc io s ve e me nt e s, me s mo q u e se ja a p e na s u m, t a mbé m se d e ve d a r t o r me nt o . O q u a rt o , a ind a q u e nã o se ja o r é u r e p ut a do he r e g e , u m só t e st e mu n ho d e q u e m t e n h a v ist o o u o u v id o d iz e r o u fa z e r a lg o c o nt r a a fé , so ma nd o a u ma c ir c u n st â nc ia o u mu it o s in d íc io s ve e me nt e s, ba st a m p a r a p r o ve r o t o r me nt o . G e ne r ic a me nt e fa la nd o d e st a s c o is a s, u m t e st e mu n ho d e v ist a , u m ma u c o mp o r t ame nt o e m ma t é r ia d e fé , u m in d íc io ve e me nt e , u ma só nã o ba st a , d u a s sã o ne c e ssá r ia s e ba st a nt e s p a r a d a r t o rmento”79.

Perceba -se que , através dos suplícios, extraia -se do investigado apenas informações hábeis a confirmar a tese acusatória. É um método que serve ao acusador e nunca ao acusado , servindo a demonstrar que o único compromisso do procedimento inquisit orial é mesmo a busca da verdade previamente estabelecida pelo acusador.

Então, através dos tormentos, alimentava -se o sistema, tanto ao conferi r-lhe uma aparência de eficiência, quanto ao disseminar – pelo temor em ser alvo dos procedimentos investigatór ios – o medo entre a população, de modo a permitir o controle social desejado pela Igreja e depois pelo Estado80.

Não havia, contudo, a intenção de se dar ao tormento o caráter de pena. Não se deve confundir. À violência à integrida de física decorrente da tortura atribuía -se, ao tempo da Inquisição Católica, inclusive, um caráter medicinal. Não se considerava também um como adiantamento de pena, nem naquele primeiro momento, nem quando trazidos ao processo judicial laico, os tormentos provocados para se obt er a confissão. De fato, como bem explica

79

E Y ME R I C O , N ic o la u . Ma nu a l d a I nq u is iç ã o . ( C u r it iba : Ju r u á E d it o r a , 2 0 0 9 ), p. 4 6 . 80

“Quando todos os apelos se tornarem inúteis, será co locada a questão de tormento e a ss i m se p r o c e d e r á a o int e r ro g at ó r io , in ic ia nd o p e lo s p o nt o s me n o s g r a v e s d e q u e e st á s ind ic a d o , po r q u e a nt e s e le c o n fe ss a r á a s c u lp a s le ve s d o q u e a s g r a ve s. S e c o nt inu a r ne g a nd o , se r ã o mo st r a do s o s inst r u me nt o s d e o ut ro s su p líc io s, d iz e nd o - lhe o q u e so fr e r á se nã o c o n fe ssa r a v e r d a d e . P o r fim, s e n ã o c o nfe s sa r , p o d e r - s e - á d a r co nt in u id a d e a o t o r me nt o d u r a nt e do is o u t r ê s d ia s, ma s a c o nt inu id a d e nã o s ig n if ic a r e p e t iç ã o , p o r q u e nã o

se pode repetir sem novos indícios arrolados na causa, porém é licito continuar.”

Foucault existe diferença entre a tortura enquanto método, e a produção de suplícios através da pena:

“Inexplicável, talvez, mas certamente não irregular nem selvagem.

O su p l íc io é u ma t é c n ic a e nã o d e v e s e r e q u ip a r a d o a o s e xt r e mo s d e u ma r a iva s e m le i. U ma p e na , p a r a se r u m su p l íc io , d e ve o be d e c e r a t r ê s c r it é r io s p r inc ip a is: e m p r ime ir o lu g a r , p r o d u z ir u ma c e r t a q u a nt id a d e d e so fr i me nt o q u e se p o ssa , s e n ã o me d ir e xa t a me nt e , a o me no s a p r e c ia r , c o mp a r a r e h ie r a r q u i z a r ; [ . . .] O su p líc io r e p o u sa na a r t e q u a nt it at iv a d o so fr ime nt o . Ma s nã o é só : e st a p ro d u ç ão é r e g u la d a . O su p líc io fa z c o r r e la c io na r o t ip o d e fe r ime nt o fís ic o , a q u a lid a d e , a int e n s id a d e , o t e mp o d o s so fr ime nt o s c o m a g r a v id a d e d o cr ime , a p e sso a d o c r iminoso, o nível social de suas vít imas.”81.

Além disso, o conceito de tortura que se trabalha neste ponto, ou seja , como método de obtenção da verdade e como elemento do procedimento inquisitorial, não se confunde com a aplicação arbitrária de suplícios.

“O suplício penal não corresponde a qualquer punição corporal: é

u ma p r o d u ç ã o d ife r e n c ia d a d e so fr ime nt o s, u m r it u a l o r g a n iz a d o p a r a a ma r c a ç ã o d a s v ít i ma s e a ma n i f e st a ç ã o do po d er q u e p u ne : nã o é a bso lu t a me nt e a e xa sp e r a ç ã o d e u ma ju st iç a q u e , e sq u e c e nd o

seus princípios, perdesse todo o controle. Nos “excessos” dos suplício s se investe toda a economia do poder”82

.

Existe uma diferenciação fundamental entre a imposição desregrada de dores e agressões ao corpo e a utilização metódica de sofrimento aos objeto s do procedimento inquisitório83.

No primeiro caso, nada mais há do que mera violência.

Por outro lado, na segunda hip ótese , há um método oficialmente implementado a partir de parâmetros “eficazes” para se alcançar o conhecimento daquel a verdade presumida :

81 FO U C AU LT , M ic he l. V ig ia r e p u n ir ( P e r t ró po lis: V o z e s, 2 0 1 0 ) , p . 3 6 . 82 FO U C AU LT , M ic he l. V ig ia r e p u n ir ( P e r t ró po lis: V o z e s, 2 0 1 0 ) , p . 3 6 . 83 E nã o a p e na s me t ó d ic o c o mo so le n e . H a v ia m s e s sõ e s fo r ma is d e in v e st ig a ç ã o e int e r r o g at ó r io d a I nq u is iç ã o q u e c o nt a v a m c o m a p r e s e nç a d e " u m e sc r iv ã o e s e c r e t á r io , ju nt o co m o s I nq u is id o r e s, u m r e p r e s e nt a nt e d o b isp o lo c a l, u m mé d ic o e o p ró pr io t o rt u r a do r, e m g e r a l o c a r r a sc o se c u la r p ú b lic o . T u do e r a a no t a d o me t ic u lo sa me nt e - a s p e r g u nt a s fe it a s, a s r e sp o st a s e r e a ç õ e s d o a c u sa d o " . ( B AI G E N T , Mic ha e l. A I nq u is iç ã o ( R io d e Ja ne ir o : I ma g o , 2 0 0 1) , p . 8 8 ).

“Pode-se a partir daí encontrar o funcionamento do interrogatório c o mo su p líc io d e ve r d a d e . E m p r ime ir o lu g a r , o int e r ro g at ó r io nã o é u ma ma ne ir a d e a r r a n c a r a ve r d a d e a q u a lq u e r p r e ç o ; nã o é a b so lu t a me nt e lo u c a a t o rt u r a do s in t e rro g at ó r io s mo d e r no s ; é c r u e l, c e r t a me nt e , ma s nã o se lv a g e m. T r at a - se d e u ma p r á t ic a r e g u la me nt a d a , q u e o be d e c e u m p r o c e d i me nt o be m d e f in id o , co m mo me nt o s, d u r a ç ão , in st r u me nt o s u t iliz a d o s, c o mp r ime nt o s d a s c o r d a s, p e so do s c hu mbo s, nú me r o de c u n ha s, int e r ve nç õ e s d o ma g ist r a d o q u e int e r ro g a , t u do se g und o o s d ife r e nt e s há b it o s

cuidadosamente codificados”84 .

Tudo isso corroborado por uma consistente doutrina católica que apresentava uma sistematização coerente de fundamentos para se enfrentar o mal que infectava o mundo através da in fluência sorrateira do demôni o85.

Ao contrário do que a lógica moderna, contaminada pelo humanismo do século XVIII faz pensar, a confissão obtida através dos tormentos não era considerada absurda. Certamente não parecia ser senso comum que o indivíduo subme tido à tortura falaria qualquer coisa para se ver livre e nenhuma verdade seria realmente alcançada desta forma.

Por outro lado, percebe -se nas rec omendações de Henrich Kramer, a intenção de forçar a interpretação de qualquer conduta dos interrogados, como atos típicos de uma bruxa/bruxo, de modo a justificar os métodos:

“Se desejar saber se a acusada possui o poder maléfico de preservar

o silê nc io , q u e r e p a r e se e la é c a p a z d e so lt a r lá g r ima s a o fic a r e m su a p r e se nç a , o u q u a nd o e st ive r s e nd o t o rt u r a d a . Po i s a p r e nd e mo s t a nt o p e la s p a la vr a s d e ve lho s sá b io s q u a nt o p e la p r ó p r ia e xp e r iê nc ia q u e e st e é s in a l q u a se ine q u ívo c o : ve r if ic a - se q u e me s mo q u a nd o a a c u sa d a é p r e mid a e e xo rt a d a po r co n ju r a ç õ e s so le ne s a d e r r a ma r lá g r ima s, se fo r d e fa t o u ma br u xa , n ã o va i c ho r a r , nã o o bst a nt e a ssu ma u m a sp e c t o c ho ro so e mo lhe a s bo c he c ha s e o s o lho s c o m sa l iv a p a r a d a r a imp r e ssã o d e la c r i me ja me nt o s; p e lo q u e d e ve s e r d il i g e nt e me nt e o bs e r va d a p e lo s p r e se nt e s. [ . .. ]

O mo t ivo d a inc a p a c id a d e d e d e r r a ma r lá g r ima s t a lve z e st e j a no fa t o d e q u e a gr a ç a d a s lá g r ima s é u m d o s p r inc ip a is d o ns 84 FO U C AU LT , M ic he l. V ig ia r e p u n ir ( P e r t ró po lis: V o z e s, 2 0 1 0 ) , p . 4 1 . 85 " P o r q u e a s S a g r a d a s E sc r it u r a s, na S u a a u t o r id a d e , d iz e m q u e o s d e mô n io s t ê m p o d e r es so br e o c o r po e so br e a me nt e d o s ho me ns, q u a nd o D e u s lh e s p e r m it e e x e r c ê - lo , a o q u e se fa z i lu sã o e xp líc it a e m mu it a s p a ssa g e n s" . KR A ME R , H . ; S P R AN G E R , J. O ma r t e lo d a s fe it ic e ir a s. ( R io d e Ja ne ir o : Ro sa do s t emp o s, 2 0 1 1 ) p. 5 0) .

c o nc e d id o s a o p e n it e nt e ; p o is S . B e r n a r d o no s d iz q u e a s lá g r ima s d o s hu mi ld e s p o d e m p e ne t r a r no s c é u s e c o nq u ist a r o in c o nq u ist á ve l. P o rt a nt o , nã o há d ú v id a d e q u e e st e ja m d e sa g r a d a nd o a o d e mô n io , e q u e e le u s a d e t o do s o s se u s po d e r e s p a r a c o nt ê - la s, p a r a imp e d ir q u e a br u x a p o r fim a t in ja o e st a do d e penitência”86 .

Atra vés da fundamentação doutrinária e da espetacularização promovida pelos Autos de Fé, a tortura institucionalizada no procedim ento inquisitório se mostrava como extremamente eficiente para alcançar seu s objetivos. Vista desta forma, foi logo permitida ao juízo civil pela supracitada bula Ad

extirpanda de Inocêncio IV87.

Transferir a tortura para o p rocedimento da jurisdição laica significou também a coroação , na esfera secular, de todo o sistema de tarifação de provas, bem como a perseguição irrestrita de uma verdade real. Foi a decretação definitiva , mas implícita , de que não só a alma deveria ser protegida a todo custo, ainda que sobre o padecimento absoluto do corpo, mas também a ordem pública se elevava ao status de um valor hábil a justificar o

jus punientdi .

Mas se a tortura frequentemente conseguia extrair a confissão de seu objeto, por outro lado a típica imagem de “eficiência” começou a ser manchada. S ua ampla utilização levou ao surgimento de testemunhos falsos e denunciações vazias, como aponta Ru y Rabelo :

“Mas o pior é que além de submeterem também as testemunhas aos

t o r me nt o s, fa c i l it a va m o a p a r e c ime nt o d e fa lso s t e st e mu n ho s. A ss i m, q u a nd o p u b l ic a r a m u m e d it a l c o m p e na d e mo r t e q u e ne n hu m mo r a d o r fo sse o u sa do a t er e m su a c a sa a r ma a lg u ma o fe ns iv a d e q u a lq u e r q u a lid a d e e c o nd i ç ã o q u e fo sse ; e q u e t o do ne g r o c a t ivo , q u e d e c la r a s se q u e se u se n ho r t in ha a lg u ma a r ma , lh e d a r ia m a l ib e r d a d e . C o me ç a r a m a su r g ir in ú me r o s d e p o ime nt o s fa lso s e mu it o s fla me n g o s se c o n c lu ír a m c o m ne g r o s p a r a e xt o r q u ir

dinheiro dos senhores portugueses”88 . 86 KR A ME R , H . ; S P R AN G E R , J. o p . c it . , p. 4 3 5 . 87 N A Z AR I O , Lu iz . Au t o s - d e - fé c o mo e sp e t á c u lo d e ma s sa ( S ã o P a u lo : A sso c ia ç ão E d it o r ia l H u ma n it a s, 2 0 0 5 ) , p. 8 8. 88 P I N H O , R u y R a be l lo . H ist ó r ia d o d ir e it o p e na l br a s i le ir o : p e r ío d o co lo n ia l ( S ã o P a u lo : E d . D a U n iv e r s id a d e d e S ã o P a u lo , 1 9 7 3) , p. 1 7 4.

Talvez a situação retratada, já na primeira metade do século XVI, tenha sido o primeiro indício de insustentabilidade do sistema investigativo que usa a tortura como método. Não é por menos.

De fato, a utilização ampla do suplício colocava o particular em situação de constante ameaça de violência pelo Estado , em razão de mera suspeita de ilícito crim inal . Essa imensa pressão tornou intermitente o medo de ser submetido ao procedimento em razão de uma denúncia vazia apresentada por qualquer pessoa mal intencionada. Mais ainda, que o procedimento seja utilizado como instrumento de interesses particulares escusos de membros corruptos do poder público.

Note -se que dessa forma se abre espaço para as ferramentas de persecução inquisitória possam ser utilizadas, ainda que indiretamente, pelos particulares uns contra os outros. A exemplo, note -se a alarmante si tuação que se instaurou na Espanha e é fidedignamente retratada por Michae l Baigent : " N a E sp a n ha , c o mo e m o u t r a s p a rt e s, a s p e sso a s va l ia m - se d o a p a r a t o d a I nq u is iç ã o p a r a a c e r t a r ve lha s c o nt a s, t ir a r v in g a nç a p e sso a l d e v iz in ho s o u p a r e nt e s, e li m in a r r iva is no s ne g ó c io s o u no c o mé r c io . Q u a lq u e r u m p o d ia d e nu nc ia r o u t ro s, e o ô nu s d a ju st if ic a ç ã o fic a v a c o m o a c u sa d o . As p e sso a s c o ma ç a r a m c a d a ve z ma is a t e me r o s v iz in ho s, p a r c e ir o s o u c o nc o r r e nt e s p ro fiss io na is, q u a lq u e r u m c o m q u e m p u d e sse m t e r u m a t r it o , q u a lq u e r u m q u e ho u ve sse m a lie n a d o o u a nt a go n iz a d o . A f i m d e a d ia nt a r - se a u ma d e nú nc ia d e o ut ro s, a s p e s so a s mu it a s ve z e s p r e st a va m fa lso t e st e mu n ho co nt r a si me s ma s. N ã o e r a r a ro q u e p a rt e s int e ir a s d e u ma c o mu n id a d e c o n fe ss a s se m e m ma s s a , p r e nd e nd o - se a ss i m c o m

No documento Tortura: de método a crime (páginas 45-55)