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Tortura: a verda de a t odo cust o

No documento Tortura: de método a crime (páginas 80-87)

CAPÍTULO 2: A TORTU RA CO MO INSTRUMENTO DE OBTEN ÇÃO DA VERDA DE REAL E NQUANTO C ORRESPONDÊNC IA

2.4 Tortura: a verda de a t odo cust o

Retomando o início do ponto anterior, fez -se uma breve referência sobre o que se pode entender por processo e seus fins. Pois bem. A necessidade que ora se afigura é a de esclarecer que em se falando de processos judiciais, normalmente se observa um conflito de interesses. Na ceara penal não é diferente.

Contemporaneamente, nesse campo, fala -se no interesse do Estado pelo

jus puniendi - e mais remotamente pela ordem social, em oposição ao

interesse do Indivíduo pela liberdade.

Realidade completamente diversa é a do ocidente no período compreendido os séculos XIII e XV III. Nele, pela vigência dos métodos inquisitórios, cabia a seguinte referência:

“E aí, em virtude do grande problema causado pelo silêncio obst inado das

br u xa s, su r g e m vá r ia s q u e st õ e s q u e o Ju íz p r e c isa c o ns id e r a r , a s q u a i s se r ã o t r at a d a s e m d iv e r so s t ó p ic o s. A p r ime ir a é q u e o Ju iz nã o d e ve s e a p r e ssa r e m su b me t e r a br u x a a e xa me , e mbo r a d e va p r e st a r a t e nç ã o a c e r t o s s ina is i mp o rt a nt e s. N ã o d e ve se a p r e ss a r p e la se g u int e r a z ã o : a me no s q u e D e u s, a t r a vé s d e u m sa nt o A n jo , o br ig u e o d e mô n io a nã o a u x i l ia r a br u xa , e la se mo st r a r á t ã o in se ns ív e l à s d o r e s d a t o rt ur a q u e lo g o se r á d i la c e r a d a me mbr o a me mbr o se m c o n fe s sa r a me no r p a r c e la d a ve r d a d e . Ma s a t o rt u r a nã o po d e se r ne g l ig e nc ia d a p o r e sse mo t ivo , po is ne m t o d a s e la s t ê m e sse p o d e r , e t a mb é m o d ia bo , à s ve z e s p o r co nt a p r ó pr ia , p e r mit ir á q u e c o n fe sse m o s c r ime s se m se r c o mp e l id o p o r

qualquer santo anjo”.143

Nesse contexto, há, de um lado, o interesse da Igreja pela descoberta da verdade herética – e indiretamente pela salvação das almas, e do outro o interesse do demônio pela corrupção das almas. Ao centro, jaz, como mero objeto, o homem (e talvez o Ma rtelo das Feiticeiras sempre se refira ao acusado através do termo "bruxa" para que o leitor da obra se esqueça de que está a se tratar de um ser humano comum ), vítima dos métodos que deixam em

143

KR A ME R , H . ; S P R AN G E R , J. O ma r t e lo d a s fe it ic e ir a s. ( R io d e Ja ne ir o : R o sa do s t e mp o s, 2 0 1 1 ) , p . 4 2 9.

seu c orpo as marcas de busca incessante de indícios de um crime contra as leis de Deus.

Com o passar dos séculos a Igreja foi trocada pelo Estado, o demônios pelos opositores ao interesse público, mas o corpo humano continuou sendo o objeto de investigação.

Esse sim é o grande foco ora assumido: demonstrar como a implementação da correspondência, através da tortura, reduziu o h omem de sua condição humana, em um passado ainda influente na modernidade.

Como oportunamente se frisou, o método inquisitivo explorad o em um âmbito jurídico de ausência de valores, principalmente valores ligados ao homem, sujeita os indivíduos aos destemperos de uma ordem criada com propósitos transcendentais. O sistema não sela nenhum compromisso exceto consigo mesmo. Neste contexto a integridade física é tão importante quanto a integridade de qualquer objeto passível de investigação.

Por isso a tortura encontrava um caminho livre para se perpetrar, e como uma ideia que se enraíza paulatinamente no imaginário popular, a metodologia dos tormentos ganhou adeptos.

“Os defensores da tortura procuram aplicar a repulsa que sentem

t o do s o s c o r a ç õ e s se n s ív e is à s i mp le s ima g in a ç ã o d o t o r me nt o . P o u co so fr e o t o rt ur a d o , d iz e m e le s ; t r a t a - se d e u ma d o r p a ssa g e ir a q u e nu nc a c h e g a a e x ig ir a int e r ve nç ã o d e mé d ic o o u c ir u r g iã o ; sã o e xa g e r a d a s a s su p o st a s d o r e s. E sse é o pr ime ir o a r g u me nt o co m q u e se t e nt a su fo c a r o c a la fr io na t u r a l d e sp e r t a do na hu ma n id a d e p e la ideia da tortura”.144

Muito feliz foi Pietro Verri em sua observação. O ilustre pensador repara, que o primeiro embate daquele instrumento de flagelos, é a repulsa humana natural. Por conseguinte, a primeira consequência decorrente de sua implementação é a imposição de uma metodologia que, por natureza, nasce odiosa aos olhos da sociedade. Res ta assim a seus defensores, afirmar

144

que o método não é tão absurdamente repugnante. Nisso se constituiu um primeiro argumento.

Não somente sobre ele se justifica a manutenção da tortura. Há que se afirmar sua necessidade no exercício da jurisdição, e ess a necessidade só existirá enquanto se crer que através dela (tortura) é possível alcançar qualquer verdade.

Mas como uma oposição à semelhante raciocínio só ganhou expressão no século XV III, por muito a percepção foi a de se tratar de um mal necessário. Este é o segundo argu mento trazido por Verri como proveniente daqueles partidários da tortura:

“Tal deve ser o sentimento de todo aquele que, ao distribuir o senso

d e hu ma n id a d e , nã o p r o c e d a à in ju st a p a r t ilh a d e c o nsa g r á - la int e ir a me nt e à p ie d a d e p a r a c o m o s c id a d ã o s su sp e it o s, se m r e se r va r n a d a p a r a a ma io r ia d o s c id a d ã o s ino c e nt e s. E st a é a se g u nd a r a z ã o e m fa vo r d a t o rt ur a , in v o c a d a po r q u e m a t u a lme nt e d e fe nd e o c o st u me c o mo be né f ic o . , o po rt u no e a t é me s mo

necessário para a salvação do Estado”.145

Perceba -se que as duas justificativas trazidas não negam os suplícios aos indivíduo investigad o, mas admitem -nos (i) aceitáveis ou (ii) necessários.

Se então a tortura estava, por assim dizer, “afirmada”, não obstante a repulsa que lhe acompanha a prática, por toda crueldade a que é inerente, como esperar que o sistema inquisitorial obedeça, na produção das provas, qualquer limite pautado no respeito para com o ser humano? Afinal, aquele que pode (macular) mais pode também (macular) menos. Tão o é que o "Santo Inquisidor " Heinrich Kramer leciona:

“E enquanto estiver sendo interrogada a respeito de cada um dos

p o nt o s, q u e se ja su b me t id a à t o rt u r a c o m a d e v id a fr e q u ê nc ia ,

145

c o me ç a nd o - se c o m o s me io s ma is br a nd o s; o Ju iz nã o d e ve se a p r e ssa r e m u s a r o s me io s ma is vio lentos”.146

Seu ensinamento de que "deves torturar" não é acompanhado de qualquer "exceto se" ou "até que". É uma carta branca para a crueldade descabida, e portanto, a prova produzida aí não está limitada no tempo, no espaço e muito menos na forma147.

Aliando isto, ao supra citado posicionamento da verdade real, através da correspondência, “como objetivo processual, passou -se a compreender que quaisquer meios de apuração serviriam como instrumento para revelar o oculto e contribuir para a descoberta do acontecido”148.

Em um retorno analítico a esta era sombria, torna -se claro que as noções humanistas introjetadas nas legislações sob a forma de garantias e Direitos Fundamentais149, são uma a uma a uma afastadas, por um mesmo argumento que alimenta ao mesmo tempo que é alimentado por um sistema criado "para" - e não "com " - o correspondismo.

“Cambian lãs técnicas; no hay debate contratictorio; todo se lleva a

c a bo se c r e t a me nt e ; e n e l c e nt r o e st á , p a s ivo , e l in v e st ig a d o ; c u lp a b le o no , sa be a lg o y e st á o b li g a d o a d e c ir lo . la t o rt u r a e st imu la lo s flu jo s ve r ba le s c o nt e n id o s. S o be r a no d e la p a r t id a , e l in q u is id o r e la bo r a h ip ó t e se s d e nt r o d e u m ma r c o p a r a no id e ; y a s í su r g e e l c a su ís mo imp u r o d e lã s c o n fe s io ne s c o nt r a lo s c o rr e o s, a ve c e s o bt e n id a s c o m p r o me s a s d e impunidad”.150 146 KR A ME R , H . ; S P R AN G E R , J. O ma r t e lo d a s fe it ic e ir a s. ( R io d e Ja ne ir o : R o sa do s t e mp o s, 2 0 1 1 ) , p . 4 3 3 147

C o mo a fir ma se r d ive r so s d o s d ia s d e h o je : C O N D E , Fr a n c isc o Mu ño z . La B ú sq u e d a de la ve r d a d e n e l p r o c e so p e na l . Ar g e nt in a : E d it o r ia l H a m mu r a b i S R L, 2 0 0 0 ) , p. 4 6.

148

P I N T O, Fe li p e Ma r t ins. I nt ro d u ç ã o c r ít ic a a o Pro c e sso P e na l . ( B e lo H o r iz o nt e : D e l R e y, 2 0 1 2 ) , p. 1 6

149 “Em el processo penal, La búsqueda de La verdad está limitada además por el respeto a u na s g a t a nt ía s q u e t ie ne n inc lu so e l c a r á c t e r d e d e r e c ho s hu ma no s r e c o no c id o s c o mo t a le s e m t o do s lo s t e xt o s c o nst it u c io na le s y le ye s p r o c e sa le s d e t o do s lo s p a íse s d e nu e st r a á r e a d e c u lt u r a . ( C O N D E , Fr a nc isc o Mu ño z . La B ú sq u e d a d e la ve r d a d e n e l p r o c e so p e na l. Ar g e nt ina : E d it o r ia l H a m mu r a b i S R L, 2 0 0 0 ) , p. 1 1 2) . 150 C O R D E R O , Fr a n c o . P ro c e d im ie nt o P e na l, T o mo I I ( S a nt a Fé d e B o g o t á : T e mis , 2 0 00), p . 1 9

E por isso não se atribui limites à investigação. Ela pode começa com um, ou com quantos indivíduos forem, e pode terminar com ainda outros. A ideia de individualização das penas é desconhecida e a presunção de inocência inexiste151.

Aliás, tanto é incapaz de deter a máquina inquisitória, a preocupação com o tormento de inocentes, que Verri, da mesma forma que Beccari a, formula a contundente crítica:

“[...] ou o crime é certo ou é apenas provável. Se o crime é certo,

o s t o r me nt o s são inú t e is , e a t o rt u r a é ap lic a d a d e s ne c e ssa r ia me nt e , me s mo q u e c o nst it u ís se u m me io p a r a d e s ve nd a r a ve r d a d e , já q u e , e nt r e nó s, o r é u sa b id a me nt e c u lp a d o é c o nd e na d o , a ind a q u e nã o c o n fe s se o c r ime . N e st e p o nt o , po rt a nt o , a t o rt ur a se r ia u ma in ju st iç a , p o r q u e nã o é ju st o fa z e r u m ho me m p a d e c e r d e s ne c e ssa r ia me nt e , e p a d e c ime nt o s d a ma io r g r a v id a d e . S e o c r ime , p o r o ut ro la d o , é a p e n a s p r o vá v e l [ . . . .] é e v id e nt e q u e se r á p o ss íve l q u e o p ro vá ve l c u lp a d o se ja d e fa t o ino c e nt e ; e nt ã o , é u ma su p r e ma in ju st iç a q u e se e x p o n ha a lg u é m q u e t a lve z se ja ino c e nt e a ma u s - t r at o s c e rt o s e a c r u d e l ís s i mo s t o r me nt o s, e su b me t e r u m ho me m ino c e nt e a t a is su p l íc io s e mis é r ia s é t a nt o ma is in ju st o na me d id a e m q u e se a g e c o m a p r ó p r ia fo r ç a p ú b lic a c o n fia d a a o s ju íz e s p a r a a d e fe sa d o inocente contra os ultrajes”.152

O próprio sistema não vê limites em se organizar de forma a garantir o melhor "funcionamento" mesmo que tenha de conviver com disposições contraditórias em seu seio legal:

“Se é injusto que um irmão acuse criminalmente o o utro, com tanto mais

r a z ã o se r á in ju st o e c o nt r á r io à vo z d a na t u r e z a q u e u m ho me m se t o r ne a c u sa d o r d e s i me s mo e q u e a s d u a s p e sso a s, a d o a c u sa d o r e a d o

acusado, se confundam numa só”.153

Deste problema, como se pôde ver, ainda decorrem a impossibilidad e de estabelecer um pleno contraditório e a separação entre o órgão julgador e o

151 Ma s se ho u ve r c o mo se nt ir u ma br isa d e st a g a r a nt ia , e la lo g o é le va d a p e la fo me d o s s ist e ma e m a l i me nt a r su a s ba se s: " P o is a ju st iç a c o mu m e x ig e q u e a br u xa nã o se ja c o nd e n a d a à mo r t e a me no s q u e t e n h a s id o d e c la r a d a c u lp a d a p o r p r ó p r ia c o n fis sã o " ( KR A ME R , H . ; S P R AN G E R , J. O ma r t e lo d a s fe it ic e ir a s. ( R io d e Ja ne ir o : R o sa d o s t e mp o s, 2 0 1 1 ) , p . 4 2 8. ) e se a c o n fis sã o se d á me d ia nt e o su p líc io a c o nc lu s ã o é d e q u e se r ino c e nt e nã o sa lva n ing u é m d a t o rt u ra .

152

V E R R I , P ie t r o . O bse r v a ç õ e s so br e a t o rt u r a ( S ão P a u lo : Ma rt in s Fo nt e s, 2 0 0 0 ) , p . 9 6 153

acusador, elementos tão importante para a manutenção das garantias humanitárias.

E, por fim, mas não menos absurdo, até suas próprias falhas e incoerências são revertidas cont ra os acusados. Admitindo que a tortura pode ser fonte de falsas correspondências entre fatos e representações, o Martelo das Feiticeiras prescreve que a "Bruxa" seja submetida à novo tormento para esclarecer a dúvida, ao invés de recomendar que a tortura seja deixada de lado:

“E notar que, se confessar sob a tortura, deverá ser então levada

p a r a o ut ro lo c a l e int e r r o g a d a no va me nt e , p a r a q u e n ã o c o n fe s se t ã o

somente sob a pressão da tortura”.154

Percebe -se contudo, que, não obstante o papel do humanismo de influenciar o surgimento de normas processuais consonantes com a dignidade humana, tal não é o bastante para extirpar as premissas inquisitoriais de um modelo de processo pretensamente acusatório. O modelo inquisitivo foi criado para se retro alimenta r entre seus objetivos e seus métodos, logo, o único meio de romper com o ciclo é com a eliminação de um desses elementos de auto sustentabilidade.

Embora a busca da verdade seja indispensável ao processo , a construção judicial na verdade não precisa ser através do correspondismo. Daí o afastamento da lógica que alimenta o modelo inquisitorial poder ser alcançado através do abandono d a pretensão de se alcançar uma verdade correspondista no processo penal155.

Desse modo, enquanto a humanização judiciária es panta apenas os métodos (dentre eles a tortura) que têm o homem como mero objeto e torna o processo um lugar menos hostil para o ser humano, a desarticulação da correspondência anula as bases que sustentam a ordem inquisitorial. Sua

154

KR A ME R , H . ; S P R AN G E R , J. O ma r t e lo d a s fe it ic e ir a s. ( R io d e Ja ne ir o : R o sa do s t e mp o s, 2 0 1 1 ) , p . 4 4 5

155

P a r a me lho r se a p r o fu nd a r : P I N T O , Fe l ip e Ma r t in s. I nt r o d u ç ão c r ít ic a a o P ro c e sso P e na l. ( B e lo H o r iz o nt e : D e l R e y, 2 0 1 2 ) .

existência passa a ser injustificada uma vez que não há uma verdade imutável a se buscar através de cada processo.

Se a pretensão dos ordenamentos jurídicos modernos é a de um processo penal puramente acusatório (ao menos na fase judicial), é indispensável o câmbio da busca pe la correspondência, por uma verdade que se assume construída através do procedimento jurisdicionalizado.

Como o sistema inquisitório apresenta , como justificativa para o emprego d os tormentos , a busca dessa correspondência, s omente repudiando o correspon dismo, se abre espaço para o estabelecimento de um procedimento judicial verdadeiramente humanizado.

CAPÍTULO 3: O ROMPIMENTO PARADI GMÁTI CO: HUMANIS MO

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