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Siste ma de pr ovas tarifa das

No documento Tortura: de método a crime (páginas 40-45)

Partindo da presumida possibilidade de se alcançar a verdade real, todo o sistema inquisitório se apresenta direcionado à perseguição realidade ontológica.

Em outras palavras, todo o sistema se volta para encont rar a verdade (pecado) presumida pela acusação.

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S AMP AI O , D e n is. A V e r d a d e no P ro c e sso P e na l. A p e r ma n ê nc ia d o S ist e ma I nq u is it o r ia l a t r a vé s d o d isc u r so so br e a ve r d a d e . ( R io d e Ja n e ir o : 2 0 1 0 , Lu me n Ju r is) . p . 1 1 9 .

Especialmente quanto ao eleme nto probatório , percebe -se a função da prova absolutamente dirigida a atender unilateralmente às intenções acusatórias. Lo go, não se confere qualquer valor defensivo à prova, servindo, esta, sempre a buscar o mal e jamais a comprovar a inocência. Trata -se de um sistema que concede ao julgador uma parca liberdade na avaliação das provas, já que seu papel fica adstrito a colhê -las de acordo com o critério legal.

“A conjugação de forças para se chegar a uma decisão condenatório

r e t r at a a c a r a c t e r íst ic a in d e lé v e l d e ss e mo d e lo in q u is it ó r io , a t é p o r q u e a p r e su nç ã o d e c u lp a b i lid a d e d a q u e le s q u e r e sp o nd ia m p e la su p o st a p r át ic a d e u m d e l it o e r a a r e g r a . E sp e lh a va - se , a s s i m, nu ma a mp la d isc r ic io na r ie d a d e d e o bt e nç ã o d e e le me nt o s fá t ic o s p e lo in v e st ig a d o r , q u e t a mbé m p o ssu ía a fu nç ã o d e a c u sa r e ju lg a r . C o mo h ist o r ic iz a Fo u c a u lt , o su sp e it o , e nq u a nt o t a l, me r e c ia se mp r e u m c e r t o c a st ig o ; nã o se p o d ia s e r ino c e nt e me nt e o b je t o d e p e sq u isa . A su sp e it a imp l ic a va a o me s mo t e mp o , d a p a rt e do ju iz u m e le me nt o d e d e mo n st r a ç ã o , d a p a r t e d o a c u sa a p r o va d e u ma c e r t a c u lp a , e d a p a r t e d a p u n iç ã o u ma fo r ma il i m it a d a d e p e n a . U m su sp e it o q u e c o nt inu a ss e su sp e it o nã o e st a va ino c e nt a d o p o r isso , ma s e r a p a r c ia lme nt e p u n id o "64.

Atra vés do formalismo, o legislador restringe a o papel do ju iz, impedindo -o de avaliar a prova pela sua robustez e capacidade probatória. Ao inverso, estabelece um valor diferenciado para cada tipo de prova durante o procedimento.

A partir de tal valoração , estabelece -se, com Gre gório IX, uma estrutura de hiera rquia dentro do sistema de provas. Ou seja : certas provas têm mais valor que outras no exercício de b usca da verdade pelo inquisidor:

" O p r o c e d ime nt o inq u is it ó r io fa vo r e c e o su r g ime nt o d e min u c io s a r e d e d e r e g r a s so br e o va lo r d e c a d a me io d e p ro va , q u e r e su lt a r á no c ha ma d o r e g ime d e p r o va s le g a is. G r e g ó r io I X p ro mo ve u u ma c la ss i f ic a ç ã o d a s p r o va s, a r ro la nd o a c o n fiss ã o ( d e st a c a d a d a s d e ma is, p o r q u a nt o c o mo ve r e mo s a c o n f iss ã o no p r o c e sso p e na l c a nô n ic o e m ve r d a d e d isp e n sa a p r o va ) , a s t e st e mu n ha s, o s d o c u me nt o s, a s pr e su nç õ e s e o ju r a me nt o "65. 64 S AMP AI O , o p. c it . , p . 1 1 6 - 1 1 7. 65 B AT I S T A, N ilo . Ma t r iz e s ib é r ic a s d o s ist e ma p e na l br a s i le ir o . ( R io d e Ja ne ir o : 2 0 02, R e va n) . p . 2 3 5 .

A ló gica criada a partir desta estrutura permite afirmar um sistema de tarifação de provas, de modo a se conceber algumas provas como melhores a alcançar determinada qualidade de certeza, do que outras .

O julgador fic a adstrito a o valo r particular de cada prova segun do estabelecido abstratamente pelo legislador, embora seja dele (julgador) a autoria da hipótese acusatória que se deseja comprovar. Deverá então seguir o extremo formalismo previsto pelo procedimento, a fi m de ordenar a marcha processual e utilizar oportunamente os métodos apropriados à colheita das provas.

Note -se, por exemplo, o evidente papel das provas testemunhais n a formulação da tese acusatória. Embora o sistema lhes dê especial relevo no alcance da "verdade", ele também determina uma ritualística em sua apreciação:

“Nas causas de heresia, por respeito à fé, são admit idos

t e st e mu n ho s d e e xc o mu ng a d o s, o s c ú mp l ic e s d o a c u sa d o e in fa me s e o s r é u s d e u m d e l it o q u a lq u e r . P a r a fin s d e he r e s ia , e st e s t e st e mu n ho s va le m c o nt r a o a c u sa d o e nu nc a a se u fa vo r . [. .. ] E m r ig o r d u a s t e st e mu n ha s ba st a m p a r a fa la r e m se nt e nç a d e f in it iv a c o nt r a o he r e g e , é o q u e no s p a r e c e ma s c o n fo r me à e q u id a d e n ã o c o ns id e r a r e st a p r o va c o mo p le na , q u a nd o nã o se p o d e ju nt a r a e la a má fa ma d o a c u sa d o , ind u lg ê nc ia e s t a ne c e s sá r io a p o r q u e no p r o c e sso d e he r e s ia nã o se s e g u e a p r á t ic a d o s d e ma is t r ibu na is, ne m se fa z a c a r e a ç ã o d o r é u c o m a s t e st e mu n h a s, e ne m se d e ix a sa be r q u e m sã o e st a s, p ro v id ê nc ia s t o d a s t o ma d a s e m d e fe sa d a fé”.66

Fica claro que, n este modelo de pesos di versos, a confissão do acusado ganha o papel de regina proba rum, ou rainha das pro vas. De fato, a identidade entre a doutrina que fundamenta a liturgia Católica e aquela sobre a qual o Tribunal da Santa inquisição se j ustifica, permite a Confissão ganhar essa importância como elemento de prova.

Transformada em sacramento por Inocêncio III, a confissão torna -se o principal instrumento de descoberta dos pecados. A busca dos fi éis pela salvação e perdão pelas faltas cometi das perante a Deus, faz com que surja

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uma ilusão de que a realidade pecaminosa poderia eficientemente ser alcançada pela confissão do pecador.

Mandamento eclesiástico aparentemente pouco relevante, a confissão, revela a intenção do então Papa, Inocêncio II I, em estender a presença da Igreja Católica. Não mais até os Mouros e além do Ocidente, mas na residência de cada fiel, entre as famílias católicas e na intimidade de cada um.

Inocêncio desejava que o pequeno clero se tornasse os olhos e ouvidos da Igreja dentro das casas dos fiéis e assim a heresia poderia ser combatida e o poder da Igreja infiltrado nos capilares da sociedade.

Mais do que uma decisão com conotações políticas subtendidas, a sobrevalorização da confissão traz consigo uma perigo sa ideia int rínseca: há sempre uma verdade a ser descoberta.

Este mito, quando transportado para a Inquisição, torna a confissão uma prova de especial valor. Passa então a encabeçar, acima de qualquer elemento concretamente mais verossímil, o sistema abstrato de prova s legais.

Aquele que se torna objeto de investigação é amplamente induzido a confessar , já que apenas a con fissão serve sozinha a embasar uma sentença condenatória e dispensa maiores esforços investi gativos. Inclusi ve, tamanho era o caráter definitivo da c onfissão, que no plano secular, por vezes a confissão era pressuposto para a condenação à pena de morte:

“A just iça co mum exige que a bruxa não seja condenada à morte a menos que tenha sido declarada culpada por própria confissão” 67

.

Para tanto, não apena s a tortura se apresentava como método (embora o mais eficiente) , conforme se verá adiante, mas toda forma de engodo e astúcia que se fazia possível:

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KR A ME R , H . ; S P R AN G E R , J. O ma r t e lo d a s fe it ic e ir a s. ( R io d e Ja ne ir o : R o sa d o s t e mp o s, 2 0 1 1 ) p . 4 2 8.

“Um deles, segundo Frei Manuel Calado, era a fraude. Os

ho la nd e se s ma nd a va m a o s c o nd e na d o s, c o mo se fo sse m sa c e r d o t e s c a t ó lic o s, p r e d ic a nt e s c a lv in ist a s: lo g o a c u d ia m o s p a st o r e s

protestantes “co mo lobos carniceiros e lhes met iam em cabeça que

e r a m S a c e r d o t e s, e co n fe sso r e s, e q u e lhe s c o n fe s se m a c u lp a , p o r q u e ha v ia m p r e so s, q u e e le s o s fa z ia m a ju d a r ia m a liv r a r , e c o m su a s r a z õ e s s a t ír ic a s fa z ia m vo mit a r a a lg u ns ig no r a nt e s a s c u lp a s, q u e se nã o p o d ia m ve r if ic a r s e nã o p o r su a s c o n f is sõ e s, e lo g o ia m d iz e r a o s d o su p r e mo C o ns e lho , e a o F isc a l o q u e o s p o br e s ig no r a nt e s lh e s d iz ia m, à s ve z e s d iz e nd o d e su a s c a s a s o q u e ne m p o r p e nsa me nt o t in ha m o u v id o ; e o s min ist r o s d a ju st iç a , e o F isc a l só co m o s d it o s do s P r e d ic a nt e s p ro nu nc ia va m a se nt e n ç a d e

morte”68 .

Perceba -se que , não obstante a existência de um procedimento formal para a instrução probatória, a confiss ão do investigando supre qualquer deficiência ou ilicitude observada na colheita das provas.

Ademais, todo o conteúdo trazido aos autos volta -se diretamente a obter a confissão, como se alcançá -la fosse a chancela final de que o sistema é eficiente em pers eguir o herege.

E desta forma se estabelece a relação entre os níveis de tarifação de prova. Aquelas co m menos valor s e voltam para servir aquelas de maior valor, e assim sucessivamente até que ao fim todas sejam empe nhadas a alcançar a confissão:

“Tendo tomado tais precauções, e depo is de dar à bruxa Água Benta

p a r a be be r , q u e t o r ne a int e r ro g á - la , e xo r t a nd o - a a co n fe ssa r a ve r d a d e d e t o do mo d o , co mo no int e r r o ga t ó r io a nt e r io r . E e nq u a nt o e la e st ive r se nd o su sp e nsa d o c hã o , c a so se ja t o rt u r a d a d e ssa fo r ma , q u e o Ju iz Le ia o u fa ç a le r p a r a e la o s d e p o ime nt o s d a s t e st e mu n ha s

com os seus no mes, dizendo: “Vê! Foste condenada pelas testemunhas.” Além disso, se as testemunhas se mostrarem

d isp o st a s a c o n fr o nt á - la fa c e a fa c e , o Ju iz d e ve r á p e r g u nt a r - lh e se ir á c o n fe ssa r o s c r ime s c a so c o lo q u e a s t e st e mu n ha s p e r a nt e e la . S e c o nse nt ir , q u e se ja m t r a z id a s a s t e st e mu n ha s e q u e p o st e m d ia nt e

dela, para que seja coagida a confessar alguns dos crimes”69 . 68 P I N H O , R u y R a be l lo . H ist ó r ia d o d ir e it o p e na l br a s i le ir o : p e r ío d o co lo n ia l ( S ã o P a u lo : E d . D a U n iv e r s id a d e d e S ã o P a u lo , 1 9 7 3) , p. 1 7 0. 69 KR A ME R , H . ; S P R AN G E R , J. O ma r t e lo d a s fe it ic e ir a s. ( R io d e Ja ne ir o : R o sa d o s t e mp o s, 2 0 1 1 ) p. 4 4 0 - 4 4 1 .

É de se notar que o sistema de provas tarifadas é também responsá vel por retroalimentar a máquina inquisitiva. Não apenas por se basear inteiramente na existência de uma verdade real, como foi oportunamente tratado, mas por dar à confissão aquele papel de rainha das provas.

No documento Tortura: de método a crime (páginas 40-45)