• Nenhum resultado encontrado

Verda de real

No documento Tortura: de método a crime (páginas 35-40)

O princípio d a Verdade real alinha -se com uma estrutura de poder teocentrista da Igreja Católica, que se edifica a partir de mitos e dogmas.

A doutrina Católica estabelece a existência de um mal ao qual o homem é eternamente inclinado a participar através do pecado. O mundo material, essencialmente perverso, corrompe o fiel para longe do Reino de Deus e o atrai para o erro capital. Desta maneira, o papel da Igreja de Deus co mo guia espiritual do homem na T erra, é resguardá -lo contra as tentações do Demônio, fonte de t odo mal.

Esta lógica de enfrentamento do pecado traz um elemento essencial para o sistema inquisitorial: a inegável existência de um mal anterior.

Ora, se o homem será sempre pecador e o mal é uma força eternamente presente no mundo contingencial, então o enfrentamento do pecado parte, antes de mais nada, de combater sua existência no meio social.

Nesse sentido, passar pelo procedimento inquisitório é servir de objeto para a certificação de uma situação anterior presumidamente existente53. O

53

“Provisto de instrumentos virtualmente irresist ibles, el inquisidor tortura los pacientes c o mo q u ie r e ; d e nt r o d e su ma r c o c u lt u r a l p e s im ist a e l a n i ma l hu ma no na c e c u lp a b le ; e st a nd o c o rro mp id o e l mu nd o ba st a e x c a v a r e m u m p u nt o c u a lq u ie r a p a r a q u e a flo r e e l

papel do inqu isidor em tal contexto é o de estabelecer qual é esta hipótese real que deverá ser co mprova da e então verificar sua existência, d aí sua dupla função de acusar e julgar.

O que se as sume como a verdade real no processo Inquisitorial é justamente a hipótese predeterminada pelo investigador baseada na eterna propensão da humanidade ao pecado.

" Ass i m, c it a nd o B e t t ia l, r e t r at a S a lo q u e o p r o c e sso inq u is it ivo é in fa l ív e l, p o is o r e su lt a d o é d e t e r min a d o p r e v ia me nt e p e lo p r ó p r io ju iz - a c u s a d o r . A se nt e nç a é p o t e st a t iva e p le na , e , na ma io r ia d a s ve z e s, nã o a d mit e r e c u r so , po is o d iv ino e n c a r n a d o p e lo S a nt o O fíc io n ã o se c o nt r a d iz e nã o a d mit e q u e st io n a me nt o , o u se ja , é p e r fe it o e nã o su sc e t íve l a o e r ro . De ssa fo r ma , Ju iz - Ac u s a d o r fo r mu la u ma h ip ó t e se s e r e a liz a a v e r if ic a ç ã o . A ve r d a d e a d m it id a

como ‘adaequatio rei et intellectus’ é atingível e deve ser

a lc a n ç a d a . E st a ve r d a d e , ve r d a d e ma t e r ia l [ ve r d a d e r e a l] , já e x ist e c o mo h ip ó t e se na me nt e d o Ju iz - Ac u s a d o r, d e ve , po r o ut ro la d o , se r a t ing id a so lip s ist ic a me nt e . O c o nt r a d it ó r io p e r t ur ba e st a in v e st ig a ç ã o . A p o lu iç ã o d a p r o va d a q u e la ve r d a d e já p o st u la d a é o ma io r d e t o do s p e r ig o s. D a í r e su lt a o s i g ilo d o p r o c e sso , a a u sê nc ia d e ind ic ia d o o u do se u d e fe nso r na a q u is iç ã o d a p ro va q u e po d e r á se r v ir p a r a fu nd a me nt a r a s e nt e nç a d e c o nd e na ç ã o . D e ve - se le mbr a r a ind a q u e o mo d e lo inq u is it ó r io nã o se r e st r ing ia a p e na s no p r o c e d ime nt o c r imin a l, ma s na c u lt u r a so c ia l e na l in g u a g e m ju r isd ic io na l. P o rt a nt o , nã o só a fo r ma d e ss e s ist e ma d e v e r ia se r id e nt ific a d a , ma s, p r inc ip a l me nte, sua essência”54.

Assim o inquisidor deve formular a essa verdade pressuposta que servirá de parâmetro para buscar novo s indícios e organizar as prova s colhidas. Tudo com o objetivo de comprovar a hipótese formulada, como peças de um quebra -cabeça cuja tela final foi criada por ele mesmo:

“El inquisidor labora mientras quiere, trabajando em secreto sobre

lo s a n i ma le s q u e c o n fie s a n ; c o nc e b id a u ma h ip ó t e s is, so br e e lla e d if ic a c a ba la s ind u c t iva s ; la fa lt a d e l d e ba t e c o nt r a d ic t o r io a br e u m P o rt il lo ló g ic o a l p e nsa m ie nt o p a r ano id e ; t r a ma s a la mb ic a d a s e c lip sa n lo s he c ho s. D u e ño d e l t a b le r o , d isp o n e lã s p ie z a s c o mo Le c o nv ie ne : la inq u is ic ió n e s u m mu nd o v e r ba l s e me ja nt e a l o n ír ic o ;

ma l. E st e axio ma elimina todo escrúpulo de la invest igació n” (CORDERO, Franco. P ro c e d im ie nt o P e na l, T o mo II (S a nt a Fé d e B o go t á : T e mis, 2 0 0 0 ) , p . 2 3 ).

54

S AMP AI O , D e n is A V e r d a d e no P ro c e sso P e na l. A p e r ma n ê nc ia d o S ist e ma I nq u is it o r ia l a t r a vé s d o d isc u r so so br e a ve r d a d e ( R io d e Ja ne ir o : 2 0 1 0, Lu me n Ju r is) . p . 1 1 6 -1 1 7 .

t ie mp o s, lu g a r e s, c o sa s, p e r so na s, a c o nt e c im ie nt o s flu c t ú a n y se mu e ve n e m c u a dros manipulabrles”. 55

Assim, o exercício de convencimento do julgador, atualmente exercido pela defesa e acusação, naquele cenário era um exercício que partia do julgador em demonstrar , em um exercício retórico de auto legitimação , o acerto em suas press uposições acusatórias.

Adiante, o fundamento da verdade real foi basilar para todo sistema inquisitorial. A Igreja Católica conseguiu forçar sua presença nas cidades da Baixa Idade Média em grande parte pela certeza de que havia um mal a ser perseguido. Afinal, o medo do sobrenatural ainda assombrava o imaginário cristão e a Santa Sé indiscutivelmente conseguiu se aproveitar disso para justificar as Cruzadas e os Tribunais de Inquisição.

Duas das principais obras de referência inquisitorial contemporânea s ao período , o Manual do Inquisidor d e 1525 e o Martelo das Feiticeiras de 1484, são claras em demonstrar como a noção de um mal pressuposto pelo Inquisidor é essencial para ju stificar o procedimento adotado .

O Martelo das Feiticeiras discorre amplament e sobre a existências das bruxas56 e a forma como se relacionam com as forças dos demônio afim de corromper o homem57. A existência de um mal absoluto e anterior ao procedimento investigativo (tratado posteriormente na obra) é ineg ável. Os autores apenas teo rizam coerentemente a correlação entre esta maldade e o mundo material. 55 C O R D E R O , Fr a nc o . P r o c e d im ie nt o P e na l, T o mo I I ( S a nt a Fé d e B o g o t á : T e mis , 2 0 0 0 ), p . 2 3 . 56

" D o q u e já se d isse , t ir a mo s a se g u int e c o nc lu sã o : a o p in iã o ma is c e r t a e ma is c a t ó lic a é a d e q u e e x ist e m fe it ic e ir o s e br u xa s q u e , co m a a ju d a d o d ia bo , g la ç a s a u m p a c t o co m e le f ir ma d o , se t o r na m c a p a z e s, se D e u s a ss i m p e r mit ir , d e c a u sa r ma le s e fla g e lo s a u t ê nt ic o s e c o nc r e t o s, o q u e nã o t o r na imp r o vá ve l se r e m t a mbé m c a p a z e s d e p r o d u z ir ilu sõ e s, v is io ná r ia s e fa nt á st ic a s, p o r a lg u m me io e xt r a o r d in á r io e p e c u lia r " . ( KR A ME R , H . ; S P R AN G E R , J. O ma r t e lo d a s fe it ic e ir a s . ( R io d e Ja ne ir o : R o sa do s t e mp o s, 2 0 1 1 ) p . 5 6 ). 57 " S e ja p o r so lic it a ç ã o d a s br u xa s o u nã o , o s d e mô n io s sã o c a p a z e s d e p o ssu ir e fe r ir o s ho me n s d e c in c o mo d o s d ife r e nt e s. Q u a nd o o fa z e m p o r ins ist ê n c ia d a s br u xa s , ma io r a o fe nsa a D e u s e ma io r s e u p o d e r p a r a mo le st a r o s ho me ns " . ( K R AME R , H . ; S P R AN G E R , J. , o p. c it . , p . 2 6 6 ) .

Por sua vez, o Manual dos Inquisi dores, já referenci ado neste trabalho, coloca naquele que é submetido à Inquisição a sina de pec ador antes mesmo de qualquer processo de conhecimento58. Não se preocupa em saber se o investigado é de fato culpado, mas em localizar o pecado e identificar sua extensão. Ou seja: o mal está no mundo e o papel do inquisidor deve ser ativamente persegui -lo.

Franco Cordero bem sintetiza a mentalidade da época:

“Nace uma míst ica: descubre y elimina herejías o delitos, combate

p o t e nc ia s ma lé f ic a s e m u ma c r u z a d a c o t id ia na ; e s mé r it o su yo q u e e l mu nd o no t e r min e d e vo r a d o po r e l d ia b lo ; se fu e r a ne u t r a l, se r ía c ó mp l ic e d e l in f ie r no y lo s e sc ú p u lo s so n c o ba r d ia . 59”

Existindo uma verdade real, os procedime ntos de investigação seriam sempre razoáveis. Afinal, o que é o bem estar de um a pessoa perto da salvação de toda a humanidade? O que estava em jo go não era a ordem pública, mas a prevalência do bem sobre a influênc ia do mal.

Não havia garantia, direito ou valor que se opusesse ao método investigativo inquisitório. E ainda não se pudesse falar de Direitos Humanos, a própria noção cristã de piedade e respeito ao próximo não representava m qualquer obstáculo para o tra balho exercid o pelo Tribunal do Santo Ofício , pois desde o século X I a ideologia de luta de bem contra o mal começava a se sobrepor à benevolência cristã para com o próximo.

Ademais, na concepção criada, o herege não era entendido como digno de qualquer b enesse. Também, tamanha a crença na infalibilidade do juízo de Deus através da Inquisição, que não havia dúvidas de que somente os infiéis seriam condenados por ele. Tão cega era esta percepção, que Heinrich Kramer afirma: 58 " N u nc a ha ve r á d e so br a a p r u d ê nc ia , a c ir c u n sp e c ç ã o e a d u r e z a d o inq u i s id o r no int e r r o g at ó r io d o r é u. O s he r e g e s s ã o mu it o a st ut o s e m d is s i mu la r se u s e r r o s, fin g ir sa nt id a d e e e m ve r t e r e m fin g id a s lá g r i m a s p a r a p o d e r e m a br a nd a r o s ju íz e s ma is r ig o ro so s. U m inq u is id o r d e ve se a r ma r c o nt r a e ssa s ma n ha s, su p o nd o se mp r e q u e o q u e r e m e ng a n a r " . ( E Y ME R I C O , N ic o la u . Ma nu a l d a I nq u is iç ã o . ( C u r it iba : Ju r u á E d it o r a , 2 0 0 9 ), p. 0 3 ) . 59 C O R D E R O , Fr a nc o . P r o c e d im ie nt o P e na l, T o mo I I ( S a nt a Fé d e B o g o t á : T e mis , 2 0 0 0 ), p . 2 1 .

" O r a , e st a mo s a q u i a no s r e fe r ir a fa t o s r e a is: nã o é d e no sso c o nhe c ime nt o q u e a lg u ma p e sso a ino c e n t e já t e n ha s id o p u n id a p o r me r a su sp e it a d e br u xa r ia : D e u s nu nc a há d e p e r mit ir q u e is so a c o nt e ç a "60.

Quando é transportada para o sistema jurídico, a busca da verdade real deixa de ser um a busca pelo pecado e passa a ser pelo crime.

Contudo essa transposição não altera a forma como o sistema enxerga o investigado, pois a sua culpa continua sendo um pressuposto da investigação que legitima o uso dos métodos necessários à averiguação. Fouca ult esclarece a questão ao explicar o fundamento de utilização da tortura:

" C o mo p o d e u ma p e na se r u t iliz a d a c o mo u m me io , s e p e r g u nt a r á ma is t a r d e . C o mo se p o d e fa z e r va le r a t ít u lo d e c a st ig o o q u e d e ve r ia se r u m p r o c e sso d e d e mo n st r a ç ã o ? A r a z ã o e st á na ma ne ir a c o mo , na é p o c a c lá ss ic a , a ju st iç a c r imin a l fa z ia fu nc io na r a d e mo n st r a ç ã o d a ve r d a d e . As d i fe r e n t e s p a rt e s d a p ro va nã o c o nst it u ía m o u t ro s t a nt o s e le me nt o s ne u t ro s; nã o lhe s c a b ia se r e m r e u n id a s nu m fe ix e ú n ic o p a r a d a r e m a c e r t e z a fin a l d a c u lp a . C a d a in d íc io t r a z ia c o ns ig o u m g r a u d e a bo min a ç ã o . A c u lp a nã o c o me ç a va u ma ve z r e u n id a s t o d a s a s p r o va s ; p e ç a p o r p e ç a , e la e r a c o nst it u íd a p o r c a d a u m d o s e le me nt o s q u e p e r mit ia m r e c o n h e c e r u m c u lp a d o . A ss i m u ma me ia - p r o va nã o d e ixa va ino c e nt e o su sp e i t o e nq u a nt o nã o fo sse c o mp le t a d a ; fa z ia d e le u m me io - c u lp a d o , ; o

indício, apenas leve, de um crime grave, marcava alguém co mo “u m pouco” criminoso. Enfim, a demo nstração em matéria penal não

o be d e c ia u m s ist e ma d u a list a ; ve r d a d e ir o o u fa lso ; ma s u m p r inc íp io d e g r a d a ç ã o c o nt inu a : u m g r a u a t ing id o na d e mo nst r a ç ã o já fo r ma va u m g r a u d e c u lp a e imp l ic a va c o n se q u e nt e me nt e nu m

grau de punição”61 .

Assim, busca da verdade real, pelo sistema investigatório inquisitorial, vai ao encontro desta verdade ontológica – de um indivíduo previamente pecador62 – e com ela é bem sucedida ao justificar os métodos inquisitórios. 60 KR A ME R , H . ; S P R AN G E R , J. O ma r t e lo d a s fe it ic e ir a s. ( R io d e Ja ne ir o : R o sa d o s t e mp o s, 2 0 1 1 ) p 2 7 7 . 61 FO U C AU LT , M ic he l. V ig ia r e p u n ir ( P e r t ró po lis: V o z e s, 2 0 1 0 ) , p . 4 3 . 62 U ma r e fle x ã o ne c e ss á r ia é d e q u e , no c a mp o d a fé , e x ist e u ma d o u t r in a q u e e st a be le c e a e x ist ê nc ia p e r p é t u a d e u m ma l q u e t e nt a o se r hu ma no . No mu nd o d o s ho me n s, c o nt u do , o c r ime nã o é p r e d e t e r min a d o p e la s le is. S u a v e r if ic a ç ã o nã o p o d e se r p r e su mid a , p o is nã o se su p õ e su a e x ist ê nc ia . A f in a l, o c r ist ia n is mo nã o v is lu mbr a u m mu nd o se m p e c a d o , ma s é p o ss íve l u ma so c ie d a d e se m c r ime s. P o r isso me s mo a no ç ã o d e ve r d a d e r e a l é , já na su a o r ig e m, p e r n ic io sa à fo r ma ç ã o d e u m D ir e it o P ro c e ssu a l P e na l c o n st r u íd o a p a r t ir d o p r inc íp io d o E st a do d e I no c ê nc ia ( C o ns t it u iç ã o Fe d e r a l d e 1 9 8 8 , a r t . 5 .º , LV I I : n in g u é m se r á c o ns id e r a d o c u lp a d o a t é o t r â ns it o em ju lg a d o d e se n t e nç a p e n a l c o nd e n a t ó r ia ) .

Denis Sam paio, citando Jacinto, é feliz em demonstrar que nisso reside o verdadeiro mérito da Inquisição:

“Portanto, de forma resumida, expõe Jacinto que a inquisição,

e n f i m, nã o in v e nt o u a t o rt u r a , ma s o me io q u a se p e r fe it o p a r a ju st if ic á - la : o s me c a n is mo s d o s is t e ma in q u is it ó r io . E sse s me c a n is mo s sã o p e r fe it a me nt e d ifu nd id o s à c u lt u r a so c ia l, o q u e a u t o r iz a su a a p lic a ç ã o ind is c r im in a d a . O he r e g e é a q u e le q u e se r e c u sa a r e p e t ir o d isc u r so d a c o ns c iê nc ia c o le t iv a . I nt e r p r et a nd o a fo r ma ma nu a l ís it ic a d a I nq u is iç ã o , B o ff e xp õ e q u e c u r io s ís s i mo s

são os ‘dez truques dos hereges para responder sem confessar’ e os ‘dez truques do inquisidor para neutralizar os t ruques dos hereges’.

A ma l íc ia d a me nt e d o inq u is id o r é c o mp le t a . A a st ú c ia é r e fin a d íss i ma . C o mo fa z ia m o s in t e rro g a d o r e s mi l it a r e s d a r e p r e ssã o p o lít ic a , d e v e - se , d iz o Ma nu a l, d a r a imp r e ssã o d e q u e

sabe tudo”63 .

E se é através da busca da verd ade rea l que se justifica o sistema (inquisitório), então a verdade real é referencial tanto para o sistema de provas tarifadas como para a utilização da tortura, ainda que de modo intrínseco.

No documento Tortura: de método a crime (páginas 35-40)