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CAPÍTULO 2 FUNÇÃO E ESTRUTURA DA TUTELA SUMÁRIA

2.7 Instrumentalidade da tutela sumária

Como acima relatado, a técnica da cognição sumária, em um dos modelos que se apresenta, é estruturada no elemento instrumentalidade.268 Significado dessa proposição é a

estreita relação existente entre o juízo sumário e o sucessivo desenrolar do procedimento realizador da cognição plena e exauriente, esse sim voltado a definir o litígio e estabilizar a relação de direito material existente entre as partes. A tutela sumária assim moldada tem o escopo de assegurar a frutuosidade ou utilidade do provimento definitivo,269 razão porque

se afirma a natureza acessória do instituto.270

Quando informada pela instrumentalidade, a tutela sumária tem seus efeitos limitados no tempo, sendo certo que a partir do pronunciamento da decisão final do processo – que confere tratamento à pretensão do demandante –, perde sua eficácia por exaurimento de finalidade.271 No sistema processual brasileiro, essa regra está positivada

nos arts. 807 e 808, inciso III, do Código de Processo Civil. Há casos em que, para manutenção da função da tutela sumária, deve ela preservar sua eficácia até o momento em que a sentença de procedência se torne efetivamente imperativa.272

268

Informam Enrico A. Dini e Giovanni Mammone que a doutrina italiana por muito tempo divergiu sobre a forma de indicação desse fenômeno: “Chi parla di sussidiarietà, chi di ausiliarità protettiva, chi di preordinazione-anticipazione, chi di strumentalità cautelare, chi di complementarietà, chi di collegamento funzionale.” Cf. Op. cit., p. 38.

269 A depender do caráter conservativo ou antecipatório da tutela sumária. 270

Dino Buoncristiani aponta que a instrumentalidade “indica il rapporto intercorrente tra il provvedimento cautelare e il provvedimento principale o definitivo e sanziona la caducità del provvedimento cautelare, che nasce in funzione e in attesa del provvedimento principale ed è, pertanto immancabilmente destinato a perdere efficacia nel caso in cui il provvedimento principale non possa essere emanato o sia stato emanato.” Cf. Dino Buoncristiani, op, cit, p. 579.

271 José Roberto dos Santos Bedaque fala em extinção “pelo provimento da cognição exauriente.” Cf. Tutela

cautelar e tutela antecipada: tutelas sumárias e de urgência (tentativa de sistematização) cit., p. 147.

272

Nesse caso, como afirma Luiz Guilherme Marinoni, “quando ocorre o trânsito em julgado da sentença antes da plena realização do direito, a sentença de cognição exauriente empresta carga declaratória à tutela sumária, transformando-a em tutela de cognição definitiva.” Cf. A Antecipação da tutela cit., p. 162.

O exame mais aproximado do tema, no entanto, permite análise da

instrumentalidade sob o enfoque de dois planos distintos, quais sejam o funcional e o estrutural.

No plano funcional, verifica-se que a índole instrumental da tutela sumária é proveniente da própria relação de dependência existente entre a tutela de cognição efêmera e aquela cognitiva completa. São formas de proteção jurisdicional em que o provimento sumário tem a missão de dar suporte e servir o provimento definidor da crise de direito material. Nesse cenário, a razão de ser da tutela sumária é dar condições de existência e eficácia ao provimento final realizador da vontade concreta da lei. Deve estar a serviço da tutela definitiva, ou seja, representar o “instrumento do instrumento”.273

Sob esse enfoque, a instrumentalidade como elemento constitutivo da espécie da

tutela sumária dependente está relacionada ao emparelhamento (e necessária capacitação)

do método estatal de solução de controvérsias, o qual, em seu desenrolar ordinário e vinculado essencialmente à realização da vontade concreta da lei, é naturalmente incompatível com determinadas situações jurídicas e fáticas nas quais a atuação jurisdicional deve ser imediata. Os efeitos produzidos pela tutela sumária têm conotação preliminar, eis que voltados exclusivamente a preservar a capacidade de atuação do processo em seus moldes ordinários de tramitação, sendo notadamente incapazes de atuar diretamente na crise de direito material ensejadora da demanda. Sem o juízo de cognição completa – ao qual está umbilicalmente ligado274 –, não há como se sustentar a necessidade

da tutela sumária.275 Assim, a instrumentalidade da tutela sumária, quando amparada em

seu plano funcional, atua na essência desse provimento jurisidicional diferenciado, configurando seu componente ontológico. Esse fenômeno se manifesta, de forma geral, nas tutelas sumárias dependentes de finalidade conservativa,276 mediante a constatação da

273 Cf. Stefano Recchioni, op. cit., p. 36. 274

O que justifica, inclusive, a necessidade de indicação da ação principal (CPC, art. 801, III).

275 O arresto de bens do demandado somente tem justificativa a partir da existência de processo cognitivo

cuja pretensão é o reconhecimento de sua condição de devedor. Da mesma forma, a produção antecipada de provas é estimulada, necessariamente, pela futura utilização dessa prova na formação do convencimento do juiz acerca dos fatos sobre os quais incidiram a norma de direito material.

276 Paolo Biavati ressalta a instrumentalidade como característica essencial da tutela cautelar conservativa:

“secondo la lezione comune, le misure cautelari si possono distinguere in conservative ed anticipatorie. Sono conservativi quei provvedimenti cautelari che non consegnano, a chi li abbia ottenuti, l’utilità finale della domanda giudiziale, ma solo un’utilità strettamente strumentale, che non può avere, neppure volendo, vita autônoma rispetto ad un sucessivo accertamento di merito.” Cf. Op. cit., p. 565.

urgência da atuação jurisdicional do Estado juiz, em estrito cumprimento do dever de preservação da efetividade do comando judicial.

Pela perspectiva do plano estrutural,277 a instrumentalidade da tutela sumária resulta

da imposição legal inflexível da realização sucessiva do procedimento em cognição plena e exauriente, sob pena de revogação da medida e consequente perda da eficácia para a qual foi concebida. Esse fenômeno se manifesta naquelas situações em que a tutela sumária desempanha papel antecipatório, cuja pertinência está relacionada à proteção da utilidade da tutela jurisdicional final. Uma vez que, pelas peculiaridades de sua formação, vem amparado em juízo de verossimilhança, impõe o legislador que o prognóstico carregado no provimento sumário seja validado em atividade cognitiva regulada pelos valores de segurança que tutelam o processo civil nacional, apta à promoção do indispensável juízo da verdade que assegura a certeza jurídica inerente às decisões declaratórias da vontade concreta da lei. O destacado caráter dependente do provimento antecipatório previsto no ordenamento brasileiro (genérico e específico), como reflexo de sua instrumentalidade estrutural em relação ao provimento de cognição ordinária, decorre essencialmente de sua incapacidade de também agasalhar juízo da verdade278 sobre os fatos constitutivos do direito do demandante (não só o de verossimilhança), virtude que, pelo direito posto e como regra geral.279 é inerente apenas às decisões proferidas ao final do procedimento realizador da cognição plena e exauriente.

Dessa forma e com os olhos voltados ao ordenamento jurídico pátrio, a tutela

sumária dependente, quando concedida em caráter antecedente ao juízo de cognição

completa, está fadada à ineficácia quando o sujeito ativo da relação jurídica processual deixa de provocar a instauração do juízo cognitivo completo dentro do prazo peremptório

277 Para Balbi, “in sostanza, la strumentalità rispetto al merito si esprime già sufficientemente com la

possibilita di pendenza di un processo di merito e non con la sua necessità.” Cf. BALBI, Raffaele. Provvedimenti d’urgenza. Digesto. IV edizione, vol. XVI, Torino, p. 126, 1997.

278 Ovídio A. Baptista da Silva aponta que dessa premissa decorre a seguinte consequência: “cabendo ao

julgador apenas declarar a ‘vontade da lei’, e como a lei só poderá ter uma única vontade, é natural que todos os juízos baseados em ‘verossimilhança’ – posto que admitem outras soluções igualmente possíveis e legítimas – sejam desde logo excluídos, como forma de verdadeiro julgamento, enquanto proclamação da vontade (única) da lei.” Cf. BAPTISTA DA SILVA, Ovídio A. Sentença e coisa julgada: ensaios e pareceres. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 251.

279 Exceções analisadas no item específico do trabalho que verifica o significado da proposta de ruptura do

de trinta dias disposto no art. 806 do Código de Processo Civil.280 Semelhante fenômeno é

verificado na hipótese de o procedimento de cognição completa não atingir seu objetivo final (sentença definidora da crise de direito material), com extinção do processo sem julgamento de mérito.

No plano em análise, a instrumentalidade da tutela sumária tem natureza teleológica,281 e representa do legislador ordinário à admissão da interferência estatal na

relação intersubjetiva das partes, com satisfatividade,282 sem a integral observância das

garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório, as quais somente serão usufruídas pelo demandado no momento de tramitação do juízo cognitivo completo. Diferentemente do que ocorre no provimento sumário conservativo (naturalmente inidôneo a ditar uma disciplina definitiva ao conflito), a tutela sumária provida de conteúdo antecipatório atinge a realização prática dos efeitos do provimento final de mérito, revelando-se inapta a dar solução com eficácia jurídica à crise de direito material sobre a qual recai a atividade jurisdicional. A instrumentalidade definida por sua estrutura, portanto, resulta apenas da vontade política do legislador283 (e não de necessidade lógica284),

que retira da tutela sumária dependente (tutela sumária cautelar) sua competência para definir juridicamente o litígio entre as partes.

280 Remo Caponi identifica nessa regra de perda de eficácia do provimento cautelar por ausência de

instauração do processo de cognição plena a “notevole intensità di questo rapporto di strumentalità”. Cf. La tutela sommaria nel processo societario in prospettiva europea cit., p. 1371. Já Stefano Recchioni visualiza nessa relação um nexo de natureza adicional à instrumentalidade, consistente na condicionalidade de efeitos jurídicos. Assim, conclui que “la caducazione della misura cautelare avviene per il venir meno non già del nesso di strumentalità, ma appunto di quello di condizionalità perché, come visto, la misura cautelare è condizionata risolutivamente quanto alla sua efficacia ad una serie di eventi, e non anche ad una pretensa inefficacia sopravvenuta del nesso di strumentalità.” Cf. Op. cit., p. 41.

281 Por isso, não se pode concordar com a afirmação de José Roberto dos Santos Bedaque no sentido de que a

tutela jurisdicional antecipada representa “medida ontológica e estruturalmente provisória e instrumental”, eis que tais elementos decorrem, na verdade, da opção do legislador e não da essência do instituto. Cf. Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumárias e de urgência (tentativa de sistematização) cit., p. 317. O próprio professor Titular das Arcadas acaba por corroborar com esse entendimento, ao analisar a instrumentalidade da tutela cautelar, informa que “a adoção de uma ou de outra solução, pois ambas acabam por produzir efeitos diretos na relação material, depende exclusivamente da vontade política do legislador.” Cf. Ibidem, p. 147.

282 “Satisfatividade fática não se confunde com satisfatividade jurídica, visto que somente essa, por se tornar

definitiva, tem aptidão para representar a solução da controvérsia, transformando-se na regra emitida para o caso concreto.” Cf. Ibidem, p. 318.

283

“Natualmente l’opzione a favore dell’una o dell’altra tecnica è rimesa all’esclusiva valutazione del legislatore, le cui considerazioni non sempre sembrano improntante a criteri di logicità processuale.” Cf. Enrico A. Dini e Giovanni Mammone, op. cit., p. 47.

284

Assim, Paolo Biavati afirma que “sono invece anticipatori quei provvedimenti che attribuiscono a chi li abbia attenuti un’utilità finale, che, tuttavia, si presenta come provvisoria e che suppone (ma non per necessità logica) una conferma di merito.” Cf. Op. cit., p. 564.

No sistema processual brasileiro, a tutela antecipada do procedimento ordinário, disposta no art. 273 do Código de Processo Civil, está alojada no compo das tutelas

sumárias dependentes, uma vez que de fácil constatação o elemento instrumentalidade em

sua composição fundamental. Sua vocação instrumental, por sua vez, é ditada pelas atribuições institucionais a ela conferidas intencionalmente pelo legislador, condição essa identificada fora dos limites de sua formatação essencial. Em termos mais precisos, a tutela sumária sob análise é subordinada a outra tutela cognitiva completa por expressa disposição legal, aqui identificada por instrumentalidade estrutural, de onde se extrai a constatação de que a obrigatoriedade ou eventualidade do contraditório completo subsequente (e da autonomia ou instrumentalidade do provimento) está relacionada a critérios de conveniência e oportunidade legislativa. Sem a intenção deliberada de antecipar conclusões do trabalho, constata-se que a capacidade de definição material e jurídica do conflito pela tutela antecipada da pretensão jurisdicional está ao alcance do legislador, que pode retirar sua característica instrumental e dotá-la de autonomia e estabilidade para realização da vontade concreta da lei.