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A relação entre a tutela antecipada brasileira e a mutabilidade natural de seus efeitos

CAPÍTULO 4 INTENSIDADE DA ESTABILIZAÇÃO DA TUTELA ANTECIPADA

4.2 A relação entre a tutela antecipada brasileira e a mutabilidade natural de seus efeitos

A sentença de mérito, como já afirmado, carrega ordinariamente a função de declarar o direito do caso concreto e, se necessário, de autorizar a realização de atos de execução destinados à produção dos efeitos decorrentes do julgamento do conflito de

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Cf. Paolo Biavati, que destaca que “non vi sarebbe alcun ostacolo reale ad attribuire alla decisione anticipatoria, una volta esaurita la fase del reclamo e senza che le parti abbiano inteso dar evita al giudizio di merito, un’efficacia di giucato... Si tratta, però, di un limite politico, non di un limite strutturale.” Prime impressioni sulla riforma del processo cautelare cit., p. 569. No mesmo sentido, Lea Querzola, op. cit., p. 171.

397 Aliás, a imutabilidade da eficácia de toda decisão judicial está relacionada à opção política do legislador,

eis que inexiste correlação necessária entre os dois fenômenos. Com esse entendimento, pondera José Carlos Barbosa Moreira que “se as leis em regra excluem tal possibilidade e fazem imutável a sentença a partir de certo momento, o fato explica-se por uma opção de política legislativa, baseada em óbvias razões de conveniência prática.” Cf. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Eficácia da sentença e autoridade da coisa julgada. Ajuris – Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, 28, p. 20, 1983. Essa finalidade prática que envolve a coisa julgada também foi destacada por Enrico Tullio Liebman, que assim asseverou: “Da questo pregiudizio bisogna liberarsi per dare alla cosa giudicata non più un valore logico, o psicológico, o ideologico, ma soltanto un valore pratico: l’intangibilità, l’immutabilità degli effetti della sentenza.” Cf. Effetti della sentenza e cosa giudicata cit., p. 3.

398 Esse entendimento, do qual demonstraremos discordar, tem inclusive respaldo em respeitável doutrina.

Nesses termos, afirma Andrea Proto Pisani que “il proprium della efficacia dei provvedimenti sommari non cautelari soprattutto nella loro efficaia esecutiva (ed, eventualmente, costitutiva) e non già tanto in un accertamento suscettibile di acquistare autorità di cosa giucata ex art. 2909 c.c., cioè nell’immutabilità dell’accertamento in tutti i futuri giudizi fra le stesse parti (o loro eredi o aventi causa) nei quali il diritto accertato sommariamente rilevi quale elemento della causa petendi di un diverso petitum.” Cf. Le tutele giurisdizionali dei diritti – Studi cit., p. 273. À base dessa construção está certamente a lição de Enrico Tullio Liebman, ao convidar o jurista do futuro a se libertar do peso representado pela ideia de que o acertamento do direito, sem o respaldo da imutabilidade, estaria carente de qualquer utilidade. Para o mestre italiano, “é vero proprio il contrario: una sentenza è efficace anche se può essere contraddetta da un’altra sentenza in un diverso processo.” Cf. Effetti della sentenza e cosa giudicata cit., p. 3.

pretensões das partes. É o ato processual de encerramento da fase cognitiva do processo, precedido de todas as fases procedimentais predeterminadas pelo legislador – aquelas pertinentes ao tema controvertido – e que garantem o cumprimento das garantias constitucionais de segurança que tutelam o processo civil brasileiro – contraditório, ampla defesa, isonomia, juiz natural e devido processo legal. Assim, a decisão judicial que põe termo ao litígio tem respaldo e legitimidade no valor atribuído à cognição plena e

exauriente, o que justifica, ademais, a atribuição de irretratabilidade à declaração de direito

nela contida. Essa imutabilidade da sentença e de seus efeitos decorre da coisa julgada, identificada como o mais elevado grau de estabilidade dos atos estatais.399 O instituto da

coisa julgada, nesses termos, é precipuamente vinculado à sentença de mérito pronunciada ao final do procedimento de cognição completa.400

Já a decisão que antecipa os efeitos do provimento final de mérito pretendido pelo demandante, genericamente disposta em nosso ordenamento no artigo 273 do Código de Processo Civil, em decorrência de sua constituição estrutural no direito cogente, é naturalmente inapta a desfrutar da estabilidade decorrente da incidência da coisa julgada, eis que não preenche quaisquer dos requisitos acima apontados e necessários à legitimação da condição de imutável de uma decisão judicial. O provimento antecipatório é, pois, precedido de cognição sumária, sem capacidade de produzir a eficácia jurídica atrelada à declaração do direito do caso concreto e dotado de instrumentalidade em relação à sentença de mérito. Não bastassem essas características, é informado ainda pelo elemento

provisoriedade, que por definição401 já afasta qualquer hipótese de consistente

estabilidade.402

Entretanto, como já repetido à exaustão, a prestação jurisdicional por meio de seu ordinário método de trabalho nem sempre é possível e adequada, já que em inúmeras

399 Cf. Cândido Rangel Dinamarco, Nova era do processo civil cit., p. 221.

400 Luiz Guilherme Marinoni identifica na coisa julgada a função de garantia de existência do discurso

jurídico contido na atividade do Estado de tutor dos direitos e das pessoas. Assim, destaca que “o recrudescimento da decisão judicial, ápice do discurso jurídico, é imprescindível para que o príoprio discurso tenha razão de ser, e, assim, realmente exista enquanto discurso jurídico.” Cf. MARINONI, Luiz Guilherme. Coisa julgada inconstitucional. São Paulo: Ed. RT, 2008. p. 56.

401

Federico Carpi indica que a própria estrutura antecipatória determina a perda de eficácia processual com a sentença de prineiro grau de jusridição. Cf. La tutela d’urgenza cit,. p. 75.

402 Humberto Theodoro Júnior, ao analisar a tutela cautelar (espécie pertencente ao mesmo gênero da tutela

antecipada) afirma que “como a ação cautelar é puramente instrumental e não cuida da lide (conflito de interesses, que é objeto da ação principal), a sentença nela proferida nunca é de mérito, e, consequentemente, não faz coisa julgada, no sentido técnico.” Cf. THEODORO JUNIOR, Humberto. Processo cautelar. 20 ed. São Paulo: Editora Universitária de Direito, 2002. p. 176.

situações do direito substantivo não atende às exigências de efetividade, utilidade e prontidão que se espera da atuação do Estado juiz enquanto monopolizador da função de pacificar os membros da sociedade com justiça. E essa constatação, que se reverberada na imutabilidade das decisões judiciais, pode levar o processualista a um perigoso e falso sofisma: somente as sentenças judiciais de mérito amparadas em cognição plena e exauriente seriam merecedoras da recepção da coisa julgada material.

A aceitação incondiocional dessa premissa implica evidente desequilíbrio no sistema processual. A coisa julgada material e a imutabilidade dos efeitos do preceito concreto que deve reger a relação entre os litigantes e o bem da vida controvertido, têm destacado papel na promoção da segurança403 das relações jurídicas,404 cuja presença

também se mostra relevante naquelas decisões não propriamente enquadráveis no conceito de sentença de mérito, mas que, de alguma maneira, atuam como a lei aplicada pelo juiz na defesa de interesses juridicamente protegidos. Apura-se dessas constatações o fato de que a segurança jurídica da atividade jurisdicional não só decorre do contraditório, mas também da própria estabilidade da decisão que a finaliza.

Paralelamente a essas considerações, deve-se levar em conta, ademais, que a imutabilidade da decisão judicial que define o litígio entre as partes está relacionada à própria confirmação do poder de império do Estado Democrático de Direito e sua capacidade de impor as deciões judiciais aos mebros da sociedade. A decisão judicial que define um litígio somente é capaz de efetivamente eliminá-lo mediante o encerramento categórico das expectativas das partes em alterar o destino do bem da vida controvertido.405

Assim, quando se cogita do direito fundamental à tutela jurisdicional do Estado, não se pode limitá-lo nos perímetros da decisão judicial que assegure a proteção dos interesses juridicamente amparados pelo direito material. Mais que isso, abrange também o direito de

403 Ensina Cândido Rangel Dinamarco que “a garantia constitucional e a disciplina legal da coisa julgada

recebem legitimidade política e social da capacidade, que têm de conferir segurança às relações jurídicas atingidas pelos efeitos da sentença.” Cf. Nova era do processo civil cit., p. 218.

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Ou seja, “sabendo-se que a insegurança é gravíssimo fator perverso que prejudica os negócios, o crédito, as relações familiares e, por isso, a felicidade pessoal das pessoas e grupos.” Cf. Cândido Rangel Dinamarco, Instituições de direito processual civil cit., vol. III, p. 294.

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“Por isso, a jurisdição não é apenas um meio de resolver litígios, mas fundamentalmente uma manifestação estatal voltada a eliminá-los, ou melhor, a solucioná-los definitivamente, fazendo com que os envolvidos reconheçam seu fim.” Cf. Luiz Guilherme Marinoni, Coisa julgada inconstitucional cit., p. 56.

uma tutela jurisdicional não mais sujeita a discussões e, por isso, dotada de imutabilidade.406

A partir do momento em que se ilumina o caminho da solução do litígio pela via da tutela sumária antecipada e autônoma, razoável também que se garanta ao beneficiário da tutela jurisdicional a segurança em relação ao bem da vida que lhe foi assegurado e negado ao seu adversário. Somente assim pode-se alcançar o equilíbrio pleno do sistema processual, afeiçoando o processo ao modelo ideal de provedor de resultados céleres e estáveis, mas também garantidor da justiça e segurança àqueles que a ele se sujeitarão.407

Mas antes de se aprofundar na demonstração da pertinência em se proceder ao “salto duplo” descrito no item anterior como caminho necessário à concessão de estabilidade à tutela antecipada estruturada nos moldes propostos no estudo, de rigor uma singela e pragmática passagem de olhos em situação processual, senão idêntica, muito próxima à tutela sumária autônoma em debate, e que sem maiores perplexidades, já usufrui da condição de segurança decorrente da coisa julgada material.

Quando a fase de conhecimento do processo desenrolado sob o procedimento ordinário é antecipadamente finalizada, nos moldes do artigo 330 do Código de Processo Civil, por força da ausência de impulso processual defensivo do réu (revelia, inciso II), com imposição da vontade concreta da lei por sentença de mérito produtora de eficácia jurídica e de efeitos pretendidos pelo autor da ação, nada impede que, após a intimação408

das partes acerca do teor da decisão que venha a acolher a pretensão do demandante, permaneça o derrotado em situação inercial, deixando transcorrer in albis o prazo para interposição de recurso de apelação, dando ensejo ao trânsito em julgado do provimento de mérito. Nessa situação fica claro que, ainda que não se tenha materializado o contraditório

406 Aponta José Rogério Cruz e Tucci que “deriva desse fenômeno um duplo aspecto revestido de

significativa conotação jurídica: de um lado, as partes não mais poderão submeter novamente a matéria decidida à apreciação do Poder Judiciário e, de outro, o Estado tem o dever de não reexaminar a controvérsia, já decidida, em sucessiva oportunidade.” Cf.:Limites subjetivos da eficácia da sentença e da coisa julgada civil cit., p. 168.

407 Cândido Rangel Dinamarco, com usual precisão, faz a síntese do indispensável equilíbrio entre as

exigências da segurança e efetividade do processo civil, nos seguintes termos: “o processo deve ser realizado e produzir resultados estáveis tão logo quanto possível, sem que com isso se impeça ou prejudique a justiça dos resultados que el produzirá.” Cf. Nova era do processo civil cit., p. 219.

408 Que no caso de revel sem advogado constituído nos autos, ocorre pela simples publicação da sentença no

respectivo cartório do juízo, dispensando-se, para efeitos de contagem de prazo recursal do demandado, a publicação em órgão oficial ou a ciência pessoal do sucumbente por mandado judicial, conforme artigo 322, caput, do CPC.

efetivo e sob os moldes da cognição completa, autoriza o sistema processual a definição do litígio por decisão denominada “sentença de mérito”, cujos efeitos são blindados pela coisa julgada material. Com essa suposição, de ocorrência não rara no cotidiano forense, se atesta que, a exemplo do que ocorre no fenômeno de adequação do juízo de verossimilhança ao amparo de provimento definidor da demanda, não é a realização efetiva do contraditório em cognição plena, mas sim a provocação e oportunidade processual a fazê-lo é que se apresenta como condição indispensável para que a decisão do juiz, que aplica a lei ao caso concreto e define a crise de direito material submetida ao judiciário, adquira autoridade de coisa julgada material.409