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A ocupação espacial e produtiva do território quilombola de Várzea Queimada demonstra que os longos períodos de estiagem exigem uma busca constante no manejo da produção e uso dos seus recursos naturais agrícolas, limitados tanto ao sustento familiar como de promoção econômica e social da própria comunidade. O acionamento do Estado via instâncias é uma constante, principalmente diante do quadro de abandono e ausência de projeto político municipal que implemente projetos e ações de melhorias, sem uma situação de

dependência política clientelista e partidária. O quadro de autonomia diante do próprio município gera um impacto político onde a comunidade torna-se alvo de interesses e disputas e, ao mesmo tempo, de receios quanto ao uso político da mesma pelas figuras centrais da política em seu entorno. O vínculo com o MPA deslocou o papel secundário da comunidade na área para um papel central cuja importância para os membros do quilombo ultrapassam os limites do povoado, o que amplia a postura de cobrança e exigência contínua sobre as autoridades no direito ao acesso e atendimento de seus reclames. Entre as pautas e projeções por período, temos em 2013 uma preocupação com a estrutura da Casa de Farinha e aquisição de equipamentos industriais para a produção, um projeto de instalação de uma padaria e construção de uma garagem para o trator que beneficia a comunidade. Em 2015, em parceria com a COFASP, a comunidade adquire 22 (vinte e duas) cisternas (bica e produção) e assina contrato com a Caixa Econômica Federal para a construção de casas rurais pelo Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR) do governo federal.

Em 2016, é anunciada a instalação de uma cooperativa em Capim Grosso, onde os produtos das comunidades poderão ser expostos e negociados. Neste mesmo ano, é anunciada a conclusão da Casa do Mel e a aquisição de uma empacotadeira de farinha. Em 2017, a comunidade é beneficiada junto com outras pelo ganho no Edital do Licuri via CAR e com recursos que somam R$ 283 000,00 (duzentos e oitenta e três mil reais) para os projetos. A inauguração das casas construídas via PNHR ocorreu em 19 de maio de 2017.Em 2018, a Associação concorre aos Editais de interesse em mandiocultura, oleaginosas e também do

Edital Sementes Crioulas.

A busca pela inserção nas políticas públicas e a apreensão dos processos envolvendo o reconhecimento da comunidade como protagonista de suas próprias demandas colocam Várzea Queimada diante de grandes desafios, envolvendo o sentido do reconhecimento, o que vai exigir também uma mudança social, cultural e política, ao se adequar aos parâmetros exigidos pelo próprio Estado, que negara o direito de seus membros como cidadãos durante sua formação. Estes processos envolvem também uma reavaliação das territorialidades no enfrentamento político diante de um território hegemonicamente excludente e hierarquicamente estruturado, uma vez que a história do território, abrangendo o Piemonte da Diamantina, é marcada por centralidades políticas, envolvendo as atividades

produtivas tanto comerciais , como da mineração e da pecuária, o que de certa forma restringe a uma discussão envolvendo a questão das práticas agrícolas e consequente importância nas pautas sobre o desenvolvimento regional e das próprias comunidades rurais.

Entre o Estado e os cidadãos há barreiras institucionalizadas que colocam os indivíduos diante de uma estrutura burocrática, mantenedora de um sistema que naturaliza a exclusão e define pelo lugar o valor de cada comunidade ou indivíduo a partir destes processos.

As comunidades quilombolas da Bahia apresentam dentro do parâmetro exigido pelo Estado segregador, historicamente definido, índices alarmantes de analfabetismo e abandono escolar, além de sofrerem com a ausência de políticas públicas que possam amparar o risco social constante a que são submetidas. Professor Ronivaldo faz uma reflexão importante:

Toda a comunidade. Toda a comunidade reclamava. Toda a comunidade passava por, até por essa necessidade, hoje não. Porque eles se organizaram. [...]A, a associação deles aqui muito organizada [...]Muito organizada, eles buscam, eles não ficam parados. [...] Agora assim, eu vejo um pecado, um pecado por parte do poder público municipal de todos que passam, eu não estou culpando essa gestão agora. [...]Todos que passam. Tem um olhar diferenciado para, para a questão de emprego e renda também [...]Né? Da comunidade [...]É. Eu não estou falando só apenas do assistencialismo[...] As pessoas precisam ter a sua dignidade [...] Para se manter. [...] Vamos supor o que é que tem que a comunidade está recebendo por parte do governo estadual, do governo federal. [...] O municipal entrar com complemento de algo, entendeu? Pra aquelas famílias que não foram atendidas pelo estado ou pela federação. [...]Ser atendidas pelo munícipio, entendeu? [...] Porque está na roça, eu vou comprar por barganha sabendo que tem qualidade, mas na frente vender o dobro, né? [...] Mas, [...] Seus produtos estão aqui, você vai expor seus produtos aqui, você produziu? Vai expor seu produto no mercado do produtor. [...]Né? Para que não chegue a absurdos, a gente, por exemplo, eu já presenciei absurdos de uma mãe de família ir pra feira com bocapiu ou um cesto que a gente chama aqui bocapiu, sacola com quatro, cinco dúzia de ovos e no meio do caminho a fiscalização pegar e quebrar essas quatro, cinco dúzias de ovos... [...] O Estado cria uma lógica de fiscalização que não se adequa a lógica de vivencia, né? Da...[...] Do campo. [...] Pegar e levar um pra beiju roça, da roça, pra rua e se estiver ocorrendo ai fiscalização da, da ADAB lá os outros órgãos do governo, aquilo ali é complicado [...] Porque tem que passar por, por, por vigilância sanitária por isso, por aquilo, não tem que acontecer tudo isso porque o governo nunca participa ou não, não, não regulariza [...]Para que o produtor possa trabalhar [...] Se a roça não produzir a cidade não come (risos) se a roça não produz

como é que gente vai comer? (Ronivaldo Alves de Oliveira, Km 30, 2019)

Podemos destacar a partir da visão do Prof. Ronivaldo Alves de Oliveira uma preocupação que caracteriza a comunidade de Várzea Queimada e circunvizinhança, a busca por uma inserção no mercado levando em consideração às necessidade das próprias comunidades e seus limites operacionais. Para isso, é importante destacar que a excludência econômica gera também a inviabilidade produtiva, promovendo distorções sociais e o aumento da pobreza. Um dos principais problemas enfrentados por Várzea Queimada e que seus moradores objetivam superar é justamente o escoamento e a participação maior no mercado interno da região.

Neste sentido, quando estas comunidades ultrapassam estas barreiras, elas contribuem por expor a própria lógica definidora de tal configuração. Os moradores de Várzea Queimada, ao tentarem ocupar estes espaços ultrapassando estes limites, possibilitam reposicionar-se diante do lugar geográfico na formação socioespacial que ocupam ou criam, da discussão histórica envolvendo identidades de referência e afirmação, além do papel que desejam ter diante da produção socioeconômica rural.

"Tinha um um um homem que morava aqui que era mais véi do que eu, que cantava uma cantiga dos escravo [...] Que tinha um escravo [...] Que era esperto[...] Quando a escrava... vendia muita coisa tinha... Sinhá nego que também qué [...] Tudo que era...[...]Nego também qué [...] Nego também tinha, vocês não, vocês não... “esse nego é ousado, tudo que via ele qué” [...] E amarrado no porão [...] Mais uma surra e falava “canta, nego”. “Óia nego qué, óia nego qué. Quando eu vê... quando eu vejo muié bunita, fico todo saracutico de tanto que ela me qué” E lhape lhape lhape “Canta, nego”. [...] e o nego ganhava lá amarrado [...] Ele cantando e apanhando [...] Um de lá e o outro de cá [...] Num é "

(Joaquim Pereira dos Santos, Várzea Queimada, 2019)

A presença negra na formação socioespacial brasileira possui uma forte caracterização vinculada ao processo escravista. Esta construção referenda um imaginário constituído nos valores nacionais, que contribuiu por deslocar o sentido da real participação negra na produção material do território brasileiro.

Alia-se a isso o simbolismo da escravidão dentro deste processo, gerando também representações acerca do imaginário brasileiro sobre o negro. O senhor Joaquim Pereira dos Santos nos lembra, a partir de seu relato acima, que havia um julgamento moral atrelado ao lugar ocupado por este negro, o que também limitava e condicionava o seu existir cotidianamente. Por sua vez, revela também neste plano do corpo negro, no espaço geográfico, a dimensão prisional da circulação sobre o território de práticas coloniais que lhe seguia. Portanto, o seu papel já estava pré- definido a partir das marcas seculares impressas em seus antepassados pelos escravocratas, também instituído pelo futuro Estado brasileiro que omitia consequentemente sua existência como membro desta sociedade em construção.

Esta espacialidade negra não poderá ser compreendida mediante o olhar fragmentado sobre seu estabelecimento como grupo humano no Brasil desvinculado de uma dinâmica socioespacial com características híbridas e dialógicas, visto que, frente ao padrão e modelo hegemônico de normatização imposta, exigia-lhes a operacionalização imediata de técnicas e consequentemente uma avaliação do seu sentido e apropriação.

Para isto, torna-se necessário reavaliar esta construção territorial à luz dos processos vinculantes e nacionalmente instituídos. Neste sentido, a produção agrícola, a urbanização, a produção econômica e os aparelhos institucionais tornaram-se motores de uma funcionalidade adequada ao ideário pujante de um espaço nacional através da eleição de um aparato técnico, que representava também os ideais de uma modernidade anunciadora, cuja redenção seria além da continuidade da participação brasileira no sistema capitalista em expansão, do fortalecimento da industrialização e, consequentemente, do território em formação.

Se o território apresenta um caráter extremamente funcionalista, o seu sentido e oficialidade representa também a simulação de uma ordem política e econômica condutora de sua delimitação, já que a centralidade e os limites operacionais da época tinham como ponto inicial as cidades brasileiras e as metrópoles europeias.

Portanto, a ocupação exigia uma produção de espacialidades e construção de objetos simbólicos para dotar o território de uma aparência e naturalmente permitir o seu imediato reconhecimento e poder. Se a cidade protagonizava a produção de um “acontecer” sobre o território ou nos diversos territórios, já que na prática havia uma confusa administração das elites locais frente aos ditames oficiais, o que nos indica especificidades na configuração territorial brasileira, as áreas rurais não pareciam estar totalmente submissas às orientações, já que no seu interior emergiam constantes conflitos e ao mesmo tempo representava também a sustentação econômica da colônia.

Este ir e vir entre uma litoralização e interiorização constituía o cerne de todo um fluxo vinculado ao movimento de negros, colonos e indígenas em torno de ciclos produtivos. A circulação resultante permitirá que os objetos culturais materializados através do projeto europeu de ocupação no território brasileiro, apresente uma fixação dos agrupamentos humanos ao espaço. Evidente, a mobilidade e o tráfego indicavam os entraves e avanços desta ocupação.

Por sua vez, é no entre espaços (rurais e urbanos, sertão e litoral, cidades e vilas, capitanias e metrópole), entre relações (negros, indígenas e brancos, colonos e escravos, ricos e pobres, intelectuais, políticos e o povo) que podemos encontrar uma territorialidade reveladora da reificação e cristalização dos limites espaciais definidos.

Neste cenário conflituoso, o território brasileiro colonial e capitalista será palco de insatisfações dos grupos sociais subalternos já que, tanto no campo como na cidade, estavam alijados de direitos e representatividades. A elite brasileira estabelecerá o território como prioridade equipando as instituições mediadas por agentes políticos e jurídicos que se apropriaram e criaram determinações legalistas que fortaleciam seus interesses.

Segundo Carril:

A análise da formação territorial capitalista brasileira é fundamental para a compreensão da segregação espacial e racial. Partimos da premissa de que a condição social do negro brasileiro, instituída no processo de escravidão, manteve -se sendo parte contínua das bases de produção e de reprodução do capital na agricultura e, mais tarde, no espaço urbano (CARRIL, 2006, p. 54)

A formação dos quilombos no Brasil acompanha a ocupação territorial e a designação produtiva das diversas áreas do país em momentos distintos ou simultâneos num contexto capitalista fortemente marcado pelo escravismo. O termo denota espacialidade nas ações e territorialidade na efetivação de uma ordem social pautada num conjunto de valores coletivos e de busca legitima de alteridade. Podemos destacar na visão de Fiabani (2005, p. 253), entre os fatores determinantes para o seu surgimento, “o assinalado desejo latente de autonomia do cativo, que jamais deixou de se opor à apropriação de sua liberdade-força de trabalho” e as “condições geográficas” vigentes onde havia:

[...] território com relevo favorável – densas matas, presença de rios,

montanhas escarpadas, pântanos e mangues – facilitava o

estabelecimento e a estabilidade de um quilombo, dificultando sua identificação-repressão (FIABANI,2005, p. 254).

Aqui, a localização e o caráter estratégico de uma prática espacial revelavam a busca de uma outra representação socioespacial calcada no domínio de técnicas e conhecimento sobre o território necessários a defesa do grupo.

No entanto, a organização territorial do quilombo apresentava em seu interior cativos e não cativos, visto que estava amparado na rejeição aos maus tratos e esforços produtivos constantes nas fazendas. Fiabani (2005) destaca ainda que o contingente populacional se dividia entre negros, indígenas, soldados deserdados e

ex-colonos, numa síntese conjunta dos problemas no interior da colônia. Segundo Reis:

A fuga que levava à formação de grupos escravos fugidos, aos quais frequentemente se associavam outras personagens sociais, aconteceu nas Américas onde vicejou a escravidão. Tinha nomes diferentes: na América espanhola, palenques, cumbes etc.; na inglesa, marrons; na francesa grand marronage (para diferenciar da pett marronage, a fuga individual, em geral temporária). No Brasil esses grupos eram chamados principalmente quilombos e mocambos e seus membros, quilombolas, calhambolas ou mocambeiros (REIS, 1996, p. 10).

A presença negra no Brasil historicamente remonta ao século XVI e na medida em que se estruturava o sistema produtivo ampliava-se o contingente humano a ponto de representar uma maioria populacional em algumas capitanias; Bahia, Ilhéus e Pernambuco.

Moraes (2005) afirma que o trabalho compulsório fundamentou o projeto hegemônico europeu e a consequente instauração do sistema capitalista no Brasil. Técnica e produção ao mesmo tempo instaladas sobre uma base espacial escravocrata geraria invariavelmente distinções quanto à sua interpretação e validação, já que desprovido de liberdade, o negro participava como objeto na produção de objetos espaciais sobre o território e paralelamente recriava seu espaço africano por aqui.

Para Reis (1996), o lugar de formação de uma sociedade afro-brasileira passava também pela senzala. O que seria a senzala no arranjo do espaço colonial senão um espaço reserva do casarão colonial?

As resistências oferecidas pelos escravos vão sendo compreendidas por sua relação com os níveis de tensões encontrados no período escravista e entre as regiões onde a economia se dinamizara pela maior utilização da mão-de-obra negra. Analisa-se, também, a contribuição da formação de quilombos para a ruína do sistema. No próprio bojo do processo de crise da instituição escravista haveria uma teia de embates que se constituíam à medida que se ampliavam: o apoio aos movimentos abolicionistas, o crescimento das fugas e as investidas dos escravos contra seus senhores tornavam-se constantes (CARRIL, 2006, p. 46).

Sem dúvida, a projeção material do espaço colonial nos revela em suas entranhas o sentido de um território que objetivado no controle, funcionalidade e hierarquia social possui uma ambiguidade no seu cerne. Reis nos lembra que:

Para criação dessa nova sociedade, decerto contribuíram fundamentalmente instituições e sobretudo visões de mundo trazidas pelos africanos, os quais não eram tabula rasa sobre a qual o senhor, governo e igreja coloniais inscreviam seus desejos de dominação. As trocas culturais as alianças sociais foram feitas intensamente entre os próprios africanos, oriundos de diversas regiões da África, além é claro, daquelas nascidas das relações que desenvolveram com os habitantes locais, negros e mestiços aqui nascidos, brancos e índios (REIS, 1996, p.12).

Santos (1997), observando a geograficidade presente no espaço marcadamente híbrido e potencializador das “ações humanas”, destaca a intencionalidade e a perspectiva relacional “na contemplação do processo de produção e de produção das coisas, considerados como um resultado da relação entre o homem e o mundo, entre o homem e o seu entorno (SANTOS, 1997, p. 73). Esta ação potencializadora produz no território cisões e relocamentos de sentidos, transformando seu conjunto de objetos em peças fundamentais de um determinado sistema e ou arranjo geográfico. Sodré (2002) identifica no espaço da extensão cartesiano um “positivismo” através de uma corporalidade consequente que se manifesta no homem. Este princípio fundamentará o olhar das ocupações europeias, cuja base material revelaria o poder cultural espacializado globalmente mostrando a pretensão universalista dos referidos projetos. Se do ponto de vista material “as coisas” e “os seres” parecem se confundir, do ponto de vista existencial, elas coexistem, já que não poderemos retirar a valoração dos sentidos estabelecidos para a funcionalidade de qualquer coisa, inclusive o espaço racionalizado pelo sistema capitalista. O “espaço coisa”, apropriado e reprodutor do capital fornecerá ao europeu instrumentos técnicos de transformação e adequação dos lugares ao seu julgo.

Assim é que, a partir do século XV, a objetivação das coisas e dos seres é realizada por um sujeito que constitui o seu olhar como soberano num espaço homogeneizado. Os planos políticos passam necessariamente pelas estratégias ‘oculares’, que levaram ao remanejamento dos cadastros e dos territórios (SODRÉ, 2002, p. 28)

O surgimento do quilombo está situado neste momento dentro de eventos geradores de práticas hegemônicas, ao mesmo tempo que se torna outro evento. Para Santos (1997), o “evento é o resultado de um feixe de vetores, conduzido por um processo, levando uma nova função ao meio preexistente”, ou seja, o quilombo num contexto de escravismo, industrialização e internacionalização, infraestrutura, delimitações de fronteiras e formação do Estado-Nação.

No entanto, uma avaliação se faz necessário. Os eventos não são forças externas que controlam e conduzem intencionalidades e referendam projetos hegemônicos de mundo, reside aí o hibridismo espacial destacado por Santos, ao demonstrar que os atores sociais permitem, legitimam ou se apropriem da sua funcionalidade. Se os quilombos rurais estavam amplamente estruturados entre áreas, fronteiras agrícolas, os instrumentos utilizados para sua efetivação eram redefinidos a partir do olhar do outro (do negro, do indígena) na composição socioespacial dos sítios. Neste sentido, não há somente um redimensionamento das técnicas, mas sua apropriação para a utilização de outra espacialidade que, na contemporaneidade, representará “os de baixo”.

A racionalidade como cânone e parâmetro de compreensão da realidade produzida na sociedade moderna contribuiu para a reificação de um território cujos fundamento e escalas de apropriação sedimentassem um projeto de poder representado, sobretudo na materialidade do espaço geográfico. Esta materialidade dominante e geradora de práticas espaciais fragmentárias permitiu que uma cisão se estabelecesse na interpretação e compreensão da realidade constituída, promovendo nas grandes estruturas sistêmicas o papel de mediação e finalismo na interpretação e sentido da totalidade/mundo que se anunciava.

O controle, a padronização e os modelos estabelecidos encerravam assim o papel determinante do Estado-nação clássico, constituído por um sistema territorial/espacial funcionalista, cujo finalismo amparava-se na produção de um arranjo espacial fortemente centralizador, hierárquico e dominante. Ao mesmo tempo, este espaço permitia a eleição dos lugares, possibilitando, assim, a ascensão de pessoas ou grupos na construção e na apropriação das diversas escalas geográficas configuradoras de uma dada formação territorial.

De acordo com Santos (2019, p. 60), é necessário "buscar através da análise as formas de sugerir outras maneiras de combinar o que aí está". Para isto, é necessário perceber que no quadro da modernidade configuradora dos espaços

formalizados pelo processo global esboça-se também uma reação ao universalismo global através de proposições das sociedades envolvidas, revelando nas contradições presentes nas vozes, nos silêncios e nas reações. Assim, a importância desta força geradora e ressignificadora propiciará que o Estado, cuja temporalidade legitimadora das projeções políticas parece ser colocada em cheque, possa redefinir o seu sentido territorial, tarefa complicada, tratando-se do Brasil onde a cidadania ainda precisa ser construída.

Eu creio que isso vai se dar no Brasil também com um pouco mais de dificuldade em função da história do próprio Brasil. Quer dizer, um país que nunca pode construir uma ideia de cidadania, que nunca teve uma cidadania. Então, essa ausência de cidadania tem uma implicação na produção de um projeto nacional (SANTOS,2019, p. 60)

Uma vez inseridos na composição de uma modernidade tardia, cujas ações formuladoras de um projeto de nação, de Estado, pensado e "tutorado" pelas elites que o moldaram estruturalmente, a formação do território brasileiro expõe uma ambiguidade que retrata o utilitarismo de seu uso e funcionalidade, já que sua