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Da roça ao território : identidade e prática socioespacial quilombola de circularidade cosmogônica no Piemonte da Diamantina, Bahia  

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS

FABIO NUNES DE JESUS

DA ROÇA AO TERRITÓRIO:

IDENTIDADE E PRÁTICA SOCIOESPACIAL QUILOMBOLA DE

CIRCULARIDADE COSMOGÔNICA NO PIEMONTE DA DIAMANTINA, BAHIA

CAMPINAS 2019

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FABIO NUNES DE JESUS

DA ROÇA AO TERRITÓRIO:

IDENTIDADE E PRÁTICA SOCIOESPACIAL QUILOMBOLA DE

CIRCULARIDADE COSMOGÔNICA NO PIEMONTE DA DIAMANTINA, BAHIA

TESE APRESENTADA AO INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS PARA OBTENÇÃO DO TÍTULO DE DOUTOR EM GEOGRAFIA NA ÁREA DE ANÁLISE AMBIENTAL E DINÂMICA TERRITORIAL.

ORIENTADOR: PROF. DR. VICENTE EUDES LEMOS ALVES

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELO ALUNO FABIO NUNES DE JESUS E ORIENTADA PELO PROF. DR. VICENTE EUDES LEMOS ALVES.

CAMPINAS 2019

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Biblioteca do Instituto de Geociências Marta dos Santos - CRB 8/5892

Jesus, Fábio Nunes de,

J499d JesDa roça ao território : identidade e prática socioespacial quilombola de circularidade cosmogônica no Piemonte da Diamantina, Bahia / Fábio Nunes de Jesus. – Campinas, SP : [s.n.], 2019.

JesOrientador: Vicente Eudes Lemos Alves.

JesTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Geociências.

Jes1. Lugar. 2. Vida rural - Brasil, Nordeste. 3. Diáspora Africana. 4.

Quilombos. 5. Territorialidade - Brasil. I. Alves, Vicente Eudes Lemos, 1967-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Geociências. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: From "roça" to territory : identity and quilombola sociospatial practics of cosmogonic circularity in the Diamantina´s Piedmont, Bahia

Palavras-chave em inglês: Place

Rural life - Brazil, Northeast African diaspora

Quilombos

Territoriality - Brazil

Área de concentração: Análise Ambiental e Dinâmica Territorial Titulação: Doutor em Geografia

Banca examinadora:

Vicente Eudes Lemos Alves [Orientador] Eduardo José Marandola Jr

Roberto Donato da Silva Junior Lourdes de Fátima Bezerra Carril Alessandro Dozena

Data de defesa: 30-07-2019

Programa de Pós-Graduação: Geografia Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)

- ORCID do autor: 0000-0003-2170-0252

- Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/1742685076978352

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AUTOR: Fabio Nunes de Jesus

DA ROÇA AO TERRITÓRIO:

IDENTIDADE E PRÁTICA SOCIOESPACIAL QUILOMBOLA DE CIRCULARIDADE COSMOGÔNICA NO PIEMONTE DA DIAMANTINA, BAHIA

ORIENTADOR: Prof. Dr. Vicente Eudes Lemos Alves

Aprovado em: 30 / 07 / 2019

EXAMINADORES:

Prof. Dr. Vicente Eudes Lemos Alves - Presidente Prof. Dr. Eduardo Jose Marandola Junior

Prof. Dr. Roberto Donato da Silva Júnior Profa. Dra. Lourdes de Fátima Bezerra Carril Prof. Dr. Alessandro Dozena

A Ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros, encontra-se disponível no SIGA - Sistema de Fluxo de Tese e na Secretaria de

Pós-graduação do IG.

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AGRADECIMENTOS

Para Terezinha Alves Nunes, Maria Ceci Sampaio Nunes, Fernanda Sampaio Nunes, Rita de Cássia Nascimento Sampaio Nunes, Celeste Alves Nunes, Maria Alves Nunes, Fabiana Nunes de Jesus, João Nunes de Jesus, Carlos Glerdiston Nunes da Silva, Florisilvia Alves Nunes, Diego Alves Nunes dos Santos, Hector Nunes dos Santos, Joelia Barbosa Alves de Jesus, Neuza Nunes do Nascimento, Robson Nunes do Nascimento, Prof. Dr.Vicente Eudes Lemos Alves, Prof. Dr. Eduardo Marandola Jr.,Prof. Dr. Antônio Carlos Vitte, Jamille da Silva Lima, Jacy Bandeira Nunes, Maria Dalva de Lima Macêdo, Américo Oliveira Júnior, Emanuel Tarciano Santana da Fonseca, Cristiane Kampf , Paulo Botaro, Daniel Carneiro Reis, Fernanda Caroline Silva dos Santos, Jotta Esse, Silvânia Mota Magalhães, João Edson Rufino, Maria Assunção Alves Borges, Dayvid Sena, Miriam Geonisse de Miranda, José Orlando Silva Sampaio Júnior, Rita de Cássia Bastos Arantes, Gerlane Lima Silva Dourado, Sandra Gama, Welliton da Silva Santos, Keilla P. Santos Lopes, Jariete Machado, Adenivaldo de Jesus Pereira, Célia Santana, Moema Sampaio Tavares, Ricardo Alves Oliveira Rosa, Marcos Mascarenhas, Rogério Silva Santos, João Paulino da Silva Neto, Zeni Rocha de Miranda, Joelma Ferreira, Maria Aparecida de Jesus Ferreira Souza, Jean César Moreira da Silva, Verônica Melo Pastor.

A José Jesus dos Santos, sua família e toda a Comunidade Quilombola de Várzea Queimada, em Caém, na Bahia, pela solidariedade acadêmica de vivência, conhecimento e produção de mundos.

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Nasci no brejo gelado e fui arrancada pela mão forte de um mulato Fui posta ao sol, onde sequei, fui arrumada e amarrada E agora Taboa já não me chamava No mercado repousei ao lado de ervas frescas Meu nome agora era Esteira Valia pouco, mas logo fui levada Senti a água fria O sangue quente E as lágrimas salgadas Ouvi o paó que rompia a madrugada Ouvi o som do adjá Ouvi o bater forte do coração Apoiei o medo do desconhecido Apoiei cabeças raspadas E cuidadosamente pintadas Sobre mim repousam homens Sobre mim repousam deuses Sobre mim repousam a vida e a morte Fui Taboa Virei Esteira E eternamente serei Enin (Autor desconhecido)

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RESUMO

A roça quilombola está em circularidade, com ela nos deslocamos em seu sentido diante do tempo e espaço de vivência. É um caminhar longo de descobertas e afirmações que reivindicam sua validade geográfica. Chamamos aqui de lugaridade este processo de significância e movimento, que permite ao sujeito conectar-se aos outros espaços e/ou lugares e também compor os novos lugares que, por necessidade, sejam necessários compreendê-los. Os territórios estariam assim conectados por redes de lugares experienciados e vividos que dialogam entre si em diferentes escalas espaciais. A roça é um desses lugares/territórios de mediação e redefinição dos sentidos, capaz de promover uma relação transtemporal, que pode acionar o lugar ou lugares, independente de sua força de localização geográfica, já que, na memória cultural, as distâncias reavivam e aproximam os indivíduos, além de redirecionarem suas ações e/ou deslocamentos. Terreiros, quintais, roças e quilombos não serão simples representações espaciais diante da força propulsora e cosmogônica que ultrapassara as estruturas clássicas do território brasileiro, estes constituíram espaços capazes de viabilizar um mundo marcado pela dimensão afro do pertencer. Tratando-se da origem quilombola no Brasil, a produção de lugares negros, invariavelmente, dependia da sua memória cosmogônica, cuja relação com o espaço territorial significava definir lugares de sociabilidade e resistência, ao dialogar com a temporalidade em curso, visto que a permanência e a alteridade simbólica significavam quebrar a rigidez cronológica do pensamento europeu instalado na produção e execução forçada da materialidade presente. São tramas de sentidos que nos remetem à circularidade de uma cosmogonia na busca do "remapeamento" das relações culturais. Entender a movimentação dos espaços negros mediante sua cosmovisão africana de prática socioespacial identitária de roça e quilombola significa colocar o território dos quilombos como um espaço social dinâmico e legado histórico que reside na memória e espacialidade de uma convivência coletiva marcada por vínculos identitários étnicos, culturais e religiosos, com fortes laços solidários, inclusive política e territorialmente distribuídos. Nos deslocamos e vivenciamos sobre o que conhecemos, o novo será real na medida em que experiencio ou vivo a experiência de tantos outros através da validade ou aceitação dos significados estabelecidos ou produzidos. Esta existência do indivíduo diante de fenômenos diversos, naturais e ou sociais, revela a busca presente nas geografias e seus diversos significados pensados e produzidos pelos negros brasileiros.

Palavras-chave: Lugar; Vida rural – Brasil, Nordeste; Diáspora Africana; Quilombos;

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ABSTRACT

The quilombola “roça” is in circularity, it moves us towards the time when and space where they lived. It is a walk along side discoveries and statements which claims their geographic validation. We call Sense of Place this process of significance and movement, which allows the subjects to connect with other places or locations as well as to compose new places. Hence, the territories would be connected by a net of experienced places, related to each other in various degrees of spatial scale. The “roça” is one of this places/spaces of mediation and redefinition of meaning. It has the capacity to promote a transtemporal relationship, regardless of its geographical location, since, in the cultural memory, distances can renew the individuals, as well as bring them closer together. “terreiros”, “quintais”, lands and quilombos will not be ordinary spatial representations in front of the cosmogonist driving force, which surpasses the classic structures of Brazilian territories; instead, they will constitute spaces capable of making possible a world marked by the African feeling of belonging. Regarding the quilombola origins in Brazil, the production of black people’s places depended on their cosmogonist memory. Such places based their relationship with the territory on the formation of social places as well as places of resistance by relating to its own time. This ancestral african places are a network of meanings which remind us of the circularity of a cosmogony in the search for “remapping” the cultural relations. To understand the movement of black people’s spaces regarding their African cosmovision of sociospatial identity practices from the quilombola “roça” means to regard the quilombola territories as social and dynamic spaces as well as historical legacy, which resides in the memory of a community characterized by their ethnical, cultural, religious and identity ties. We live, move and think, based on what we know, hence, something new will only become real as we experience it by ourselves or as we access this experience through others. This existence of an individual in the face of various phenomena, social or natural, reveals the search of the geographies and its many meaning produced by black Brazilians.

Key-words: Place; Rural life – Brazil, Northeast; African Diaspora; Quilombos; Territoriality -

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Territórios de Identidade do Estado da Bahia - 2017 ... 28

Figura 2 - Localização do povoado de Várzea Queimada em Caém, no Estado da Bahia ... 29

Figura 3 - Localização da área de estudo no Território de Identidade do Piemonte da Diamantina ... 30

Figura 4 - Certificação de Reconhecimento como Comunidade Quilombola de Várzea Queimada em 15 de agosto de 2004 ... 35

Figura 5 - Certificação de Reconhecimento como Comunidade Quilombola de Várzea Queimada em 15 de agosto de 2004. ... 36

Figura 6 - Reunião da Associação Quilombola de Várzea Queimada, 2017 ... 43

Figura 7 - Reunião da Associação Quilombola de Várzea Queimada, 2017 ... 44

Figura 8 - Inauguração da Casa de Farinha Comunitária de Várzea Queimada, 2015 ... 48

Figura 9 - Inauguração do Minha Casa Minha Vida Rural na Comunidade, 2018 .... 49

Figura 10 - Inauguração do Minha Casa Minha Vida Rural na Comunidade, 2018 .. 50

Figura 11 - Seminário Estadual de Mulheres Camponesas e Quilombolas, dezembro de 2016. ... 51

Figura 12 - Mapa da Diáspora Africana para o Piemonte e Chapada Diamantina,2019 ... 70

Figura 13 - Mapa Roteiro de Ouro Fino adaptado,2019 ... 81

Figura 14 - Joaquim Pereira dos Santos, 2017 ... 93

Figura 15 - Mata Secundária preservada, 2019 ... 95

Figura 16 - Agricultor em Várzea Queimada ,2019 ... 96

Figura 17 - Comunidade de Várzea Queimada, 2019 ... 97

Figura 18 - Extração e coleta do licuri em Várzea Queimada, 2019 ... 98

Figura 19 - Senhor Henrique, agricultor da comunidade de Várzea Queimada, 2019 ... 99

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Figura 21 – Gildásio de Sena, morador da comunidade tecendo tarrafa , 2019 .... 103 Figura 22 - Moradia na Comunidade de Várzea Queimada, 2019...121 Figura 23 - Barriguda sagrada (Ceiba speciosa) do quintal de Raimunda dos Santos, 2019 ...123 Figura 24 - Maria de Jesus, rezadeira da comunidade, 2019 ... 125 Figura 25 - Maria Helena (Lena), moradora da Comunidade de Várzea Queimada, 2019 ... 127 Figura 26 - Maria Luiza, parteira, V. Queimada, 2019...128

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Comunidades quilombolas certificadas e Identificadas no TI Piemonte da Diamantina - 2015 ... 31 Quadro 2 - Entrevistados na Comunidade de Várzea Queimada, Caém – BA (2019) ... 37

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LISTA DE SIGLAS

ACQVQ Associação Quilombola da Comunidade de Várzea Queimada APAMC Associação da Comunidade de Várzea Queimada

CAR Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional

COFASPI Cooperativa de Assistência à Agricultura Familiar Sustentável do Piemonte

DAP Declaração de Aptidão ao Pronaf FCP Fundação Cultural Palmares

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária MPA Movimento dos Pequenos Agricultores

PBQ Programa Brasil Quilombola

PNHR Programa Nacional de Habitação Rural

RTID Relatório Técnico de Identificação e Delimitação

SEPPIR Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial SEPROMI Secretaria de Promoção da Igualdade Racial

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INTRODUÇÃO ... 15

1 ITINERÁRIOS GEOGRÁFICOS NEGROS NO PIEMONTE DA DIAMANTINA .... 24

1.1 ECOS DE QUILOMBO NO SERTÃO BAIANO: UMA REFLEXÃO EM AFROESPACIALIDADE /VÁRZEA QUEIMADA -CAÉM ... 26

1.2 RELATOS E ATOS: UMA LEITURA ASSOCIATIVISTA DO COTIDIANO DA COMUNIDADE ... 41

1.3 ESTRUTURAÇÃO E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA DA COMUNIDADE: PRÁTICA DE DECISÕES ... 46

1.3.1 Liderança e Participação das Mulheres na Política Quilombola de Várzea Queimada ... 50

1.4 INSTRUMENTALIZAÇÃO, EQUIPAMENTOS E BUSCA POR POLÍTICAS PÚBLICAS ... 52

2 A FORMAÇÃO DO TERRITÓRIO BRASILEIRO E A ESPACIALIDADE AFRICANA NA BAHIA ... 56

2.1 NEGROS NOS "SERTÕES": DIÁSPORA E DESLOCAMENTO ... 63

2.1.1 Piemonte e Interiorização: Caminhos e Lugares na Ocupação ... 64

2.2 DINÂMICA SOCIAL DOS “POVOS NEGROS” NA LUTA PELO ESPAÇO NO BRASIL ... 74

3 A ROÇA COMO UM CONSTRUCTO GEOGRÁFICO DA RURALIDADE NEGRA E QUILOMBOLA ... 86

3.1. MATO, ROÇA E DIMENSIONAMENTO DA VIDA EM CURSO ... 87

4 CIRCULARIDADE, IDENTIDADE E LUGARIDADE COSMOGÔNICA NEGRA . 108 4.1 CIRCULARIDADE E LUGARIDADE GEOGRÁFICA AFRO: ENTRE ESPAÇOS, ENTRE LUGARES ... 117

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 133

REFERÊNCIAS ... 138

ANEXOS ... 148

ANEXO A - Criação da Fundação Palmares ... 148

ANEXO B – Ata de reunião ocorrida em 20/10/2011 na Associação Quiolmbola de Várzea Queimada , 2019 ... 151

ANEXO C – Ata de reunião ocorrida em 17/08/2013 na Associação Quilombola de Várzea Queimada , 2019 ... 152

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ANEXO E – Festival do Licuri em Várzea Queimada , 2017 ... 155 ANEXO F – Participação no Fórum Social Mundial discutindo quilombos do

Piemonte da Diamantina, 2018 ... 157 ANEXO G – Repente Várzea Queimada ... 158 ANEXO H – Carta do Pres. Lula aos grevistas de fome repercutida no

movimento social na comunidade em agosto de 2018 ... 159 ANEXO I – Convite ao Grupo Jovem da comunidade para uma roda de

conversa, 2019 ... 160 ANEXO J – Imagens da Comunidade de Várzea Queimada,2019 ... 161 ANEXO K - Caminhos negros do Piemonte. Terreiro no município de Saúde/Celebração para Oxóssi, 2019...169 ANEXO L Memórias de roça e vivência no povoado de Roçado, Jacobina -BA...171

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INTRODUÇÃO

“Quando eu vim pra aqui, o meu pai me trouxe... mais minha mãe. Eu era... cheguei [...] com quatro anos de idade aqui. Eu tava nessa idade, não tinha

ninguém aqui, não morava ninguém, não

tinha...[...]E aqui... pa pa Piaba e pra ir por um matão que aqui ficava um matão, não tinha caminho. E a casa que eu morava de noite tinha que levantar pra trazer o galo do terreiro que puxava as paia da casa tudo.”

(Joaquim Pereira dos Santos, Várzea Queimada, 2019)

O Sr. Joaquim Pereira dos Santos é ancião e morador da comunidade quilombola de Várzea Queimada. Ele é considerado pelos membros do grupo uma referência histórica, familiar e social, com status de autoridade responsável pela orientação, manutenção e organização da comunidade. Ao representar uma geografia do seu mundo de vivência acima, o Sr. Joaquim aciona elementos fundamentais para o entendimento e o valor da experiência na produção da vida sendo negro no Brasil. Ao acionar os termos ninguém e mato, ele demonstra que o espaço geográfico seria a garantia e o elo necessário para a sua própria existência e também da comunidade ao qual pertence. Para este intento, a família e a comunidade representam, por sua vez, a territorialidade do grupo, o porto seguro (lugar de reafirmação) e onde se desenvolverá as sociabilidades necessárias. O vazio (ninguém) como simbolismo retrata de certa forma uma exigência anterior, propositadamente definida sobre ampla área territorial nacional, também condicionadora das formas de ocupação. Muniz Sodré (2004, p. 60) observa que:

Ao desbravar uma mata e construir uma casa com suas próprias mãos, o homem faz a experiência originária de um território, isto é, de um espaço por ele marcado, ganhando a autoridade de quem foi sujeito de uma ação e pode dela falar transitivamente. Em outras palavras, de modo operativo e diretamente relacionado a um complemento real-histórico.

Esta aventura da relação espacial no lugar diaspórico negro exigirá uma projeção de mundo transplantada em seu corpo que, junto com ele, realizar –se- á nas formas visíveis e presentes recriadas em seu cotidiano de luta.

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Assim, o Sr. Joaquim e a comunidade estabelecerão laços cujo significado encontra lugar na memória e história do grupo, como registros e potenciais marcadores futuros, avaliado por Sodré (2004), ao definir o valor histórico do corpo negro sobre sua presença neste território.

Este mundo do praticado como experiência, tanto simbólica como de sentido territorial ilustrado acima, pode nos revelar tanto proposições como avaliar ações estabelecidas na produção e configuração dos espaços geográficos, inclusive do mundo que se sonha. É através destas interações humanas, carregadas também na subjetividade e objetividade do mundo, que os lugares e territórios vão adquirindo conformidades, ao estabelecer deslocamentos, limites e sentidos. A vida em comunidade é o mundo do praticado, mas também do imaginado, precedido de saberes e conhecimentos responsáveis pelo guia e reafirmação cotidiana dos códigos e valores responsáveis pelas atividades, tanto laborais, como do intelecto, através também da cultura. O quilombo é, sobretudo, uma espacialidade referencial e que, ao se projetar sobre o cotidiano da vida, aciona mecanismos validados (ou não), através da pertença cotidiana e dialética do grupo ao qual representa.

No entanto, este movimento perpassa pelo diálogo entre escalas, mundos, formas e extemporalidade do território, já que se trata de um processo histórico diaspórico, envolvendo o Brasil, a África e a Europa. Reside nisso a complexa estrutura territorial do Estado brasileiro, regido sobretudo pela manutenção e permanência de um patrimonialismo protegido no legalismo institucional com forte herança colonial. As comunidades quilombolas ou remanescentes, na Bahia, encontram-se diante de enormes desafios, já que o seu reconhecimento e titulação esbarram na própria lógica estatal nacional, em que, ao mesmo tempo que lhe permite o reconhecimento, também cria limites burocráticos que impedem a legitimidade ou o direito a autonomia territorial através da sua titulação. O imbróglio jurídico-político exige etapas que passam dos órgãos competentes à leniência de interesse ou não do Estado.

São desafios que colocam em cheque os critérios exigidos e a forma de inferência, conceituação ou certificação das próprias comunidades.

Neste estudo, envolvendo comunidades rurais negras na Bahia, tendo como referência e lócus de pesquisa a comunidade de Várzea Queimada, no município de Caém, no Território do Piemonte da Diamantina na Bahia, busca-se identificar, na prática socioespacial negra e rural de roça, a legitimidade e a

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alteridade espacial, levando em consideração a existencialidade manifesta, tanto na ocupação quanto na vivência e memória, responsáveis pela atualização do presente, quanto da permanência da comunidade no território e, consequentemente, seu direito à pertença como valoração cultural e direcionadora da produção de sentidos dos lugares.

O reconhecimento das comunidades quilombolas no Piemonte da Diamantina é um processo em curso recente. Dezesseis anos após a constituição de 1988, ocorre o reconhecimento em sua etapa inicial, marcada sobretudo pela autoidentificação e certificação. O reconhecimento das comunidades negras, no âmbito do território, representou o início de um processo, que vai culminar na ampliação e incessante busca por municípios vizinhos e outras comunidades rurais, pela inserção política e cultural presentes no processo de reconhecimento. Ao mesmo tempo, na Bahia, este reconhecimento já envolve um grande contingente de lugares que, posteriormente, poderão ser alçados à categoria de territórios, cujas titulações representam em termos legais a garantia oficial destas mesmas comunidades no acesso à legitimidade e direitos na ocupação territorial do ponto de vista identitário, étnico e cultural.

A titulação acaba por se tornar mais que a autoidentificação tornando, convertendo-se num dos maiores desafios para estas comunidades, visto que um emaranhado jurídico, envolvendo instâncias e políticas públicas, que sofrerão variações, tanto em âmbito governamental como jurisdicional, contribuirão para o congelamento e interrupção no avanço e inserção real das comunidades negras rurais e urbanas.

Surge, assim, para além do conteúdo racial exigido pelo Estado, o maior desafio para estas comunidades: o reconhecimento de sua terra de vivência, uma vez que se encontra fortemente atrelada ao componente identitário e étnico, na prática socioespacial de sua ocupação em roças, terreiros, vias, quintais e manifestações simbólicas objetivadas na externalidade de sua cultura em movimento. No entanto, um outro componente muito importante e que não é novo nestas comunidades, mas que fundamenta e alimenta suas ações e projetos de vida, está no espaço geográfico, o da roça.

Na maioria das comunidades negras rurais e até urbanas do Piemonte da Diamantina, a roça é o elo e o lugar que permitirá estabelecer ligação com o território, o mundo, a ancestralidade manifesta na sua religiosidade, a cultura e o

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trabalho. Ela possibilitará, também, que sua identidade opere e dialogue entre variâncias, escalas e projeções diante da hegemônica territorialidade nacional.

A roça é o lugar, o território e o principal espaço africano no Brasil, referenciado historicamente na territorialidade do quilombo. Estes múltiplos sentidos acolhem seu significado, mesmo em uma provável transição na busca de sua oficialidade através de uma titulação, o que permitiria, de certa forma, a obtenção da autonomia que lhe impulsiona. No entanto, é na sua geograficidade que poderemos entender o seu papel na configuração territorial brasileira, caracterizado na sua permanência e imanência, independente do contexto político e social em que nos deparamos no país.

O território não nasce com a colonização, mas dele mesmo se dissocia, ao desconsiderar os aspectos presentes antes deste processo, inclusive a prática de roça (roçagem) comum aos grupos indígenas. No entanto, reside neste, entre tempos e mundos, o sentido que o termo vai adquirir ao longo da invasão colonial como mata e, ao mesmo tempo, espaço, extensão geográfica ou substrato de uma “ocupação” dos sertões. De certa forma, sua condição de fresta aparece como limiar entre a fronteira produtiva, o sonho e o alcance almejado pelos explorados e, consequentemente, uma reserva territorial do trabalho compulsório diante da dimensão e configuração colonial (vide as relações resultantes do escravismo e revestida de legalidades atuais, inclusive no rural).

A abordagem metodológica nesta pesquisa apresenta uma tríade na análise, cujos temas principais envolvem a materialidade e a imaterialidade do território brasileiro, mediante as visões sobre sua formação socioespacial, levando em consideração autores como: Moura (1994), Moraes (2002), Reis (1996), Carril (2006) e Neves (2007). A dimensão da lugaridade e consequente possibilidade de desconstrução epistêmica presentes na objetividade hegemônica da representação geográfica instaurada tem como enfoque principal autores presentes na geograficidade dos fenômenos culturais, envolvendo a prática e a apropriação geográfica dos lugares, através do pensamento de Relph (2012), Seamon (1996), Casey (1993) e Massey (2008). Na etapa seguinte, serão destacados os passos da espacialidade negra sob o âmbito da filosofia e cosmogonia africana e afro-brasileira, reconhecendo na prática socioespacial de sua movimentação sobre o território da ocupação colonial, tendo como referência o processo diáspórico africano no Brasil e a ocupação espacial através dos rios, dos caminhos coloniais e das

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fugas, além da transtemporalidade da ancestralidade africana em povos de roças, fundamentado em Ngoenha (1994), Sodré (2005 ) Fiabani (2005), Wanderley (1998), Flavio Gomes (2015) e Walter (2009), na busca e entendimento sobre os conhecimentos importantes presentes nas comunidades rurais negras e quilombolas.

A inserção dos quilombos na formação territorial brasileira com base no papel da materialidade na apropriação geográfica dos espaços rurais e o reposicionamento conceitual dos significados operacionalizados para o entendimento da espacialidade negra frente aos contextos estabelecidos leva em consideração o lugar em movimento e junto com ele também nos deslocamos em seu sentido diante do tempo e espaço de vivência. É um caminhar longo de descobertas e afirmações, que ratificam sua validade geográfica. Chamamos aqui de lugaridade este processo de significância e movimento, que permite ao sujeito conectar-se aos outros espaços e/ou lugares, e também compor os novos lugares que, por necessidade, caracterize o fenômeno da lugaridade na movimentação dos espaços negros, mediante, principalmente, sua cosmovisão africana e prática socioespacial identitária de roça e quilombola.

Os estudos que fundamentam esta pesquisa pautam-se nos conceitos de Território e Lugar. O primeiro como multiescalar, o segundo como recorte categórico que fundamenta o lugar de uma territorialidade marcada fortemente pelos elementos identitários.

Este espaço de articulação presente nas relações socioterritoriais negras do Piemonte da Diamantina é caracterizado por um cenário desafiador por expor, ao mesmo tempo, as contradições dos modelos de desenvolvimento na Bahia e também o impacto de políticas públicas de valorização e inclusão territorial das comunidades remanescentes de quilombo e autoreferenciadas.

Segundo Moraes (2009), é nos estudos sobre a Geografia Histórica que encontraremos elementos essenciais para uma abordagem que possa suprir o vácuo existente nos estudos coloniais propriamente geográficos.

Hissa (2017) observa que nos “modos de fazer” ciência a ação e o sentido da pesquisa acadêmica invariavelmente passa pelo sujeito e as interrogações que lhe acompanham. Estas também estão presentes na vida e no cotidiano onde somos confrontados e questionados pela forma como aceitamos ou recusamos os códigos necessários para participar e questionar o mundo, interrogando a si próprio através

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de uma reinvenção criadora e cuja ciência terá o papel de desvendar. Evidente dentro de uma sociedade que opera sobre a égide de um tempo cronometrado de produção acadêmica e que segue uma lógica de ranking quase fabril, teremos consequentemente uma limitação prática da criação, invenção e reflexão que serão submetidos e /ou impossibilitados diante da força dos eventos operacionais, envolvendo também uma totalidade operacional ameaçadora e que insiste em se manifestar nas desigualdades e contradições que tentam impedir uma leitura crítica da realidade.

É dentro deste contexto, de uma realidade onde o reconhecimento destas comunidades e de uma legalidade estatal com forte caráter geográfico (definições, limites, propriedade e dimensões), que os embates políticos e sociais emergem, provocando disputas e interesses, o que exige da investigação um caráter sócio-histórico e dialético da realidade, com base nas contradições do objeto pesquisado, no âmbito das construções sociais.

Tratando-se de um grupo social com fortes traços culturais e identitários, legitimadores de práticas espaciais que dialogam com a imaterialidade, a simbologia e a ancestralidade, dentro de um território predominantemente hegemônico e materialmente cristalizado, destaca-se o enfoque etnográfico, cuja espacialidade da cultura cotidiana constitui um registro sistemático de modo de vida dos sujeitos investigados e que acontece a partir de um processo interpretativo, como afirma Ghedin e Franco (2008), tornando-se então fundamental para o entendimento da espacialidade negra. Neste paradigma, a dicotomia entre sujeito e objeto, coleta e análise de dados acabam por compor um processo de interação e simultaneidade substanciado na reflexão.

Ainda sobre a abordagem metodológica, esta buscou superar dicotomias e reposicionar nossa preocupação geográfica com a representação de um espaço complexo e diverso que possa nos conduzir ao encontro das teorias. Sem dúvida, o estabelecimento de novas concepções e abordagens dinâmicas, não estáticas e que incluíssem os temas da diferença e da alteridade, da imagem, da estética e as dimensões do espaço e do tempo instituíram grandes desafios.

Partindo do princípio que toda mudança pressupõe apropriação do espaço e que no seu bojo está o fundamento social que lhe dá significado, a garantia de participação da comunidade na discussão e a produção da análise territorial concernente passam pelos instrumentos qualitativos, cujo tratamento

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permita que os comportamentos que impulsionam a busca por reconhecimento, alteridade e direito ao espaço sejam revelados.

Desta forma, o caráter metodológico qualitativo da investigação amparou-se na obamparou-servação participante, reflexão, narrativas (oralidade), escuta amparou-sensível e referenciada nas comunidades investigadas. A interpretação dos dados levou também em consideração os resultados obtidos nos outros instrumentos da pesquisa (questionários, entrevistas), objetivando a compreensão da realidade frente aos diversos aspectos que caracterizam uma dada totalidade.

Neste sentido, a história dos povos e o presente como continuidade de um pretenso progresso técnico unificador demonstram que as intenções e propósitos, invariavelmente, passam pela ideia objetivada onde somente se realizará na materialidade do espaço geográfico. Logo, os processos históricos demonstram que há um conjunto de possibilidades de entendimento da organização social dos espaços através de combinações reveladoras de caminhos a serem trilhados cuja validade dará sentido à realidade constituída.

Inicialmente, traçando itinerários em capítulo inicial, situamos a linha visível e que nos apontam conexões posteriores que ampliam e alimentam esta análise mediante a estrutura apresentada, discutindo-se na sequência estruturas que representam escalas de apropriação e que se manifestam em categorias geográficas. No capítulo intitulado A Formação do Território Brasileiro e a

Espacialidade Africana na Bahia fundamenta a ocupação territorial brasileira, tendo

como pressuposto a ocupação e a configuração territorial sob a perspectiva e a influência da diáspora africana no Brasil e na Bahia. Esta preocupação ocorre em função de um questionamento aparentemente simples, mas que significa na verdade uma lacuna aos estudos geográficos que tratam da questão quilombola. Qual a origem destes povos africanos que vivem nas comunidades e povoados negros quilombolas no interior do Piemonte da Diamantina já que a questão racial se movimenta na direção da questão étnica? Como a roça e o negro aparecem e fundamentam estudos envolvendo a formação territorial brasileira?

O capítulo intitulado A Roça como um Constructo Geográfico da

Ruralidade Negra e Quilombola discutiu o surgimento da roça e sua distribuição

espacial presente na sociabilidade rural baiana. Para tanto, destacaram-se os traços fundantes relacionados aos deslocamentos da comunidade de Várzea Queimada, o processo histórico de redefinição da comunidade, o movimentar-se politicamente e o

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diálogo do rural com o urbano, através dos moradores da roça e seu modo de vida, no entorno de Jacobina e municípios vizinhos, além das diferentes assimilações históricas do sentido espacial atribuído na vivência local.

O capítulo final discutiu A Circularidade, Identidade e Lugaridade

Cosmogônica Negra, que tem como referência principal o conhecimento griot e

cosmogônico vinculado a ancestralidade africana presente na cultura e nas manifestações religiosas. O pressuposto da análise está vinculado ao pensamento filosófico africano e aspectos presentes no pan-africanismo, calcada nas identidades manifestas, considerando a diáspora negra dentro de um espaço fragmentário e territorialmente delineado cujo processo identitário se constrói a partir de uma territorialidade marcada fortemente pela imaterialidade e simbolismo. Aqui, o vivido também surge como negação ou afirmação dos parâmetros institucionais hegemônicos, dialoga com o sentido da permanência cultural e material, reinventando-se na espacialidade transtemporal. A circularidade faz da geograficidade quilombola e negra o mecanismo direcionador que dialoga com o passado de seus ancestrais e o presente de sua prática socioespacial.

A identidade como referência e autodeclaração se constitui na base fundamental para o reconhecimento das comunidades remanescentes quilombolas. É o início de um processo cuja característica principal recorrerá ao início da formação social brasileira resultante, neste caso, da retirada dos povos africanos dos seus locais de origem e como contingente populacional determinante para a configuração social do país. De comunidades isoladas e à margem das políticas públicas, teremos a busca pela inserção e inclusão das mesmas, processo este que será de grande preocupação para as instituições formativas e grupos sociais preocupados com a discriminação racial, marginalização negra e situação de vulnerabilidade social marcantes. A preocupação com a autoafirmação gerou a necessidade de compreensão histórica, documental, geográfica e antropológica que permitiriam a estas comunidades a inclusão e o direito legitimado pelo reconhecimento. No entanto, o seu maior desafio está na questão da legalidade e oficialidade do direito à terra, etapa final do processo de demarcação através da titulação.

Neste sentido, do reconhecimento até à titulação, um díspare resultado acaba por congelar o processo e reduzir às comunidades apenas a primeira etapa, a de certificação. Ocorre que, as comunidades remanescentes quilombolas rurais

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ocupam espaços caracterizados como de roças. Esta “categoria” espacial está fortemente ligada ao estar /permanecer e viver nestes lugares, o que remonta de certa forma ao conteúdo cultural e prático social destas comunidades.

A questão ou tese desta proposta, motivo desta investigação, é identificar e entender como a prática socioespacial de roça quilombola negra e rural estão relacionadas com a identidade e a referência que legitimam sua ocupação e direito ao território, a pertença. Assim, o caminho escolhido para esta tese parte da ideia de uma formação social diaspórica na ocupação do sertão e surgimento do quilombo como território de resistência, da roça como espaço da prática socioespacial, que vai absorver o contingente populacional negro rural, a cosmogonia ou o conhecimento referencial da identidade negra na ocupação dos espaços e finalmente a prática socioespacial referente de um cotidiano e reafirmação negra na consolidação e validação do seu território como grupo social. Desta forma, e mediante participação em reuniões, seminários, entrevistas, celebrações, colheitas e ações políticas e culturais realizadas pela comunidade, registramos pensamentos e sonhos, sempre associados ao dimensionamento da prática de mundo elaborada

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“Ói, eu ando qualquer hora aqui. [...] Ando qualquer hora, pra qualquer canto, aqui se eu vim de lá pra cá, quantas vezes eu já dormi no mato, sozinho! Agora só não gosto de dormir sabe cuma é no relento. Se é de noite eu entro pra umas moita dessa aí, cava aí o barro ali, e num sendo fogo, num sendo nada, encosto ali, quando os galo começa me acordar, eu vivo e saio pra fora e vou fazer meu serviço”.

(Henrique Pereira dos Santos, Várzea Queimada, 2019)

Os caminhos da colonização na Bahia não se resumem aos oficiais (Estrada Real, rotas imperiais, caminhos do bandeirantismo) envolvendo somente o interesse da coroa portuguesa, mas também muitas comunidades, vilas e povoados acabaram compondo e se estabelecendo em virtude da inserção no sertão e a partir da viabilidade de sobrevivência e dos diferentes papéis exercidos nas práticas sociais estabelecidas sobre distintas regiões. O controle no movimento mediado pelas terras coloniais e seus representantes outorgados, também, estariam sob um complexo sistema de dispersão populacional conflitivo e ameaçador ao sistema opressor com suas fugas e a eleição de nós ou redes conectivas com a metrópole, a África e os sertões, ou interior do país. Neste sentido, o recôncavo baiano, a cidade de Salvador e o oeste da África se constituíam em caminhos além fronteiras, cujo limiar representava tanto o interesse de uma economia colonial como também a negação da mesma em uma ordem paralela e produtora de novas comunidades ou agrupamentos. Neste sentido, a diáspora representava não só a retirada e a distribuição dos negros sobre o território, mas também o surgimento de novas apropriações originadas na fuga e resistência, que posteriormente se destacariam pela unidade comunitária de interesse comum e sobrevivência.

O movimento sobre rios, mata e estradas foram se multiplicando na medida em que o território em formação ia avançando e as novas relações impostas se tornariam mecanismos que justificassem a regulação social, através tanto de um legalismo em instauração, como de sua redefinição. Este ponto, movimento, deslocamento e regulação junto com os fluxos que lhe caracterizam coloca a ocupação sob o viés de um internacionalismo à própria formação diaspórica deste território e que acompanha paralelamente a costa africana de oeste a leste do continente.

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A área geográfica do atual Território do Piemonte da Diamantina (Figura 1) torna-se de fato importante neste cenário por volta do século XVII, através dos caminhos (estradas imperiais, entrepostos, rios) da ocupação e da mineração, envolvendo também a Chapada Diamantina através das rotas de Vilas de Jacobina e Rio de Contas para as regiões das Minas Gerais (IVO, 2012), representando assim, a nova ordem de movimentação colonial, que gera deslocamentos em massa ao interior da Bahia. Ao mesmo tempo, este interesse vai se constituir em uma ordem comercial e social cujas relações de produção e trabalho tornariam algumas vilas e povoações em pequenos centros nucleares de distribuição e consumo de produtos fundamentais, tanto para manutenção do sistema colonial metropolitano como para a alimentação e o funcionamento da população na própria colônia. Assim, a agricultura, a pecuária e a manufatura se tornaram o apoio e também a sustentação dos quilombos em franca expansão por todo o território colonial.

1.1 ECOS DE QUILOMBO NO SERTÃO BAIANO: UMA REFLEXÃO EM AFROESPACIALIDADE /VÁRZEA QUEIMADA –CAÉM

A comunidade remanescente quilombola de Várzea Queimada (Figuras 2 e 3) está localizada no município de Caém, estado da Bahia. Ela pertence ao Território de Identidade Piemonte da Diamantina1, definido geograficamente como área onde

1

Nesta pesquisa, o território de identidade situa a localização da área geográfica denominada Piemonte da Diamantina, onde está localizado o município de Caém e a comunidade remanescente quilombola de Várzea Queimada. Com forte presença das bases sociais, o território de identidade na Bahia se caracteriza pela corresponsabilidade e tomada de decisões voltadas para políticas públicas, objetivando a regionalização de ações conjuntas integrados por decisões descentralizadas e implementação de práticas de transformação e necessidades dos territórios a partir de representações extraídas da sociedade civil. No âmbito federal, estava atrelado aos territórios de Cidadania designados como: “O Territórios da Cidadania é uma estratégia de desenvolvimento regional sustentável e garantia de direitos sociais voltado às regiões do país que mais precisam, com objetivo de levar o desenvolvimento econômico e universalizar os programas básicos de cidadania. Trabalha com base na integração das ações do Governo Federal e dos governos estaduais e municipais, em um plano desenvolvido em cada território, com a participação da sociedade. Em cada território, um Conselho Territorial composto pelas três esferas governamentais e pela sociedade determinará um plano de desenvolvimento e uma agenda pactuada de ações.[...]Foram definidos conjuntos de municípios unidos pelas mesmas características econômicas e ambientais que tenham identidade e coesão social, cultural e geográfica. Maiores que o município e menores que o estado, os territórios conseguem demonstrar, de uma forma mais nítida, a realidade dos grupos sociais, das atividades econômicas e das instituições de cada localidade, o que facilita o planejamento de ações governamentais para o desenvolvimento dessas regiões. [...]Por sua concepção e gerenciamento, o Territórios da Cidadania não se limita em atacar problemas específicos com ações dirigidas. Ele combina diferentes ações de ministérios e governos estaduais e municipais, consolidando as relações

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estão agrupados os municípios por perfil social, político e cultural no centro norte do Estado.

federativas, tornando mais eficiente a ação do poder público nos territórios. Por exemplo: serão desenvolvidas ações combinando os financiamentos do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) com a ampliação da assistência técnica; a construção de estradas com a ampliação do Programa Luz para Todos; a recuperação da infraestrutura dos assentamentos com a ampliação do Bolsa Família; a implantação de Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) com a ampliação dos programas Saúde da Família, Farmácia Popular e Brasil Sorridente; e a construção de escolas com obras de saneamento básico e a construção de cisternas. A integração do conjunto de políticas públicas e dos investimentos previstos contribuirá para melhorar o IDH, evitar o êxodo rural e superar as desigualdades regionais.

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Figura 1: Territórios de Identidade do Estado da Bahia - 2017 Fonte: SEI, 2017, adaptado pelo autor.

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Nesta área de representação geográfica e política referencial, temos as seguintes comunidades reconhecidas como remanescentes quilombolas:

Município Comunidade Caém Piabas Pias Bom Jardim Monteiro Pau Seco Várzea Queimada Capim Grosso Barro Vermelho Cambueiro Volta Jacobina Cafelândia

Quilombo urbano da Bananeira Baraúnas de Dentro

Lages do Batata Miguel Calmon

Covas / Mocambo dos Negros Saco Mirangaba Lagedo Coqueiros Dionísia Jatobá Nuguaçu Olhos D’água Palmeira Ponto Alegre Santa Cruz Solidade Saúde

Gruta dos Paulos Lagedo

Várzea Nova Mulungu

Quadro 1 - Comunidades quilombolas certificadas e Identificadas no TI Piemonte da Diamantina - 2015

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Com cerca de 10.000 habitantes, o município de Caém2 está localizado na unidade federativa do estado da Bahia, no Território de Identidade Piemonte da Diamantina. O distrito de Caém, segundo o IBGE3, surgiu em função da aglomeração de operários com suas famílias que trabalhavam na via férrea instalada, em 1910, e concluída em 1918. Foi alçado à categoria de município em 1950, tornando-se emancipado do território de Jacobina.

A presença negra em Caém remonta ao período de ocupação e formação do município de Jacobina, com o fluxo humano resultante dos caminhos da mineração pelo outrora denominado rio da Prata, atual rio Caém, pertencente à bacia hidrográfica do Rio Itapicuru. No município, predomina a agricultura de subsistência e pecuária tradicional, onde várias comunidades se estabeleceram e se organizaram através do trabalho exercido nas propriedades rurais, e que caracterizam a estrutura fundiária local.

A Comunidade Quilombola (Figura 4) de Várzea Queimada em Caém possui uma área geográfica correspondente a 3.481 km² e seu território situa-se no semi-árido. No local vivem cerca de 120 famílias, com aproximadamente 800 moradores, cujas atividades produtivas envolvem o plantio da mandioca, feijão de corda, criação de animais e extrativismo do licuri (palmeira).

Segundo José de Jesus, representante da Associação Comunitária, a origem da comunidade ocorreu no século XIX, por volta de 1855, com a chegada dos seus bisavós e antepassados.

2

O município apresenta índices de desenvolvimento social entre os mais baixos do estado da Bahia e do Brasil com uma economia sobretudo rural. Segundo o Atlas de Desenvolvimento Humano do Brasil, “A Bahia ocupa a 22ª posição entre as 27 unidades federativas brasileiras segundo o IDHM. [...]. Caém ocupa a 5253ª posição entre os 5.565 municípios brasileiros segundo o IDHM.[...]. A renda per capita média de Caém cresceu 168,86% nas últimas duas décadas, passando de R$ 83,12, em 1991, para R$ 121,08, em 2000, e para R$ 223,48, em 2010. Isso equivale a uma taxa média anual de crescimento nesse período de 5,34%. A taxa média anual de crescimento foi de 4,27%, entre 1991 e 2000, e 6,32%, entre 2000 e 2010. A proporção de pessoas pobres, ou seja, com renda domiciliar per capita inferior a R$ 140,00 (a preços de agosto de 2010), passou de 85,84%, em 1991, para 70,39%, em 2000, e para 49,42%, em 2010. A evolução da desigualdade de renda nesses dois períodos pode ser descrita através do Índice de Gini, que passou de 0,45, em 1991, para 0,57, em 2000, e para 0,54, em 2010”. Disponível em: http://www.atlasbrasil.org.br/2013/pt/perfil_m/caem_ba. Acesso em: 08 mar. 2019.

3 Como caracterizado pelo IBGE (2018), “Em divisão territorial datada de 1-VII-1950, o distrito já

denominado Caém, figura no município de Jacobina e elevado à categoria de município com a denominação de Caém, pela lei estadual nº 1709, de 12-07-1962, desmembrado de Jacobina. Sede no antigo distrito de Caém. Constituído do distrito sede. Instalado em 07-04-1963 em divisão territorial datada de 31-XII-1963, o município é constituído do distrito sede”. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/dtbs/bahia/caem.pdf. Acesso em: 09 set. 2017.

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Esta referência de temporalidade demonstra que a espacialidade negra, sobretudo a quilombola, está na memória do/em movimento, justamente na busca por lugares diante de uma sociedade, cuja "libertação" escrava significou na prática a ausência de direito ao espaço, o que se constitui para a comunidade em uma luta constante pelo acesso e legitimidade da terra, além de uma reafirmação da resistência negra e quilombola.

A mobilização política da comunidade é um dos pontos mais importantes frente ao alto grau de distorção social presente no município. Logo após o reconhecimento em 2004 (Figuras 4 e 5), a comunidade passa a referenciar e destacar os seus membros, deslocando o olhar predominantemente externo, passando a se ver dentro do processo como agentes políticos responsáveis pela busca de políticas públicas através das constantes mobilizações junto com o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA).

1.2 QUESTÕES DE RESSEMANTIZAÇÃO E ASSIMILAÇÃO IDENTITÁRIA NEGRA E QUILOMBOLA

A regulamentação das terras ocupadas por quilombolas e o uso dos termos definidores e classificatórios que permitem ou autorizam as comunidades participarem deste processo demonstram que enormes contradições e distorções na definição e adequação ao sistema classificatório jurídico vigente colocam estas comunidades do Piemonte diante de enormes dificuldades na validação e finalização dos processos e consequente julgamento, tanto político quanto dos interesses econômicos dos municípios, pois ultrapassam a própria limitação das políticas públicas presentes, cujo trato com estas comunidades remanescentes ainda não estão estruturadas ou embasadas culturalmente e historicamente nos município onde ocorrem. Assim, munidos da certidão que autoconfere o reconhecimento como "remanescentes quilombolas", a comunidade de Várzea Queimada começa a trilhar caminhos que redefinem sua condição diante das regras e limites legais, que tanto exigirão redefinições dos sentidos na projeção futura e também nas ações imediatas do presente.

Segundo a certificação (Figura 4) publicada em 15 de agosto de 2014, a comunidade passa a ter a denominação de " remanescentes" e "quilombolas".

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Trata-se de termos cujo teor ultrapassam a origem de sua regulação preTrata-sentes na Constituição de 1988. Para Santos (2015, p.95), " o termo quilombo que antes era imposto como uma denominação de uma organização criminosa reaparece agora como uma organização de direito, reivindicada pelos próprios sujeitos quilombolas”.

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Figura 4 - Certificação de Reconhecimento como Comunidade Quilombola de Várzea Queimada em 15 de agosto de 2004.

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Figura 5 - Certificação de Reconhecimento como Comunidade Quilombola de Várzea Queimada, em 15 de agosto de 2004.

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ENTREVISTADOS

Joaquim Pereira dos Santos Luzia Maria de Jesus Avelino Henrique Pereira dos Santos Maria de Jesus

Antônio Rosa de Jesus Maria Vitalina dos Reis Maria de Liquinha Ilário de Jesus Cruz

Maria Helena dos Santos da Cruz Leonídia Jesus dos Santos

Gildásio de Sena

Felipe Nery de Jesus dos Santos José Jesus dos Santos

Ronivaldo Alves de Oliveira

IDADE 90 88 82 78 78 72 66 59 54 53 50 49 46 41 LOCALIZAÇÃO Várzea Queimada Várzea Queimada Várzea Queimada Várzea Queimada Várzea Queimada Várzea Queimada Várzea Queimada Várzea Queimada Várzea Queimada Várzea Queimada Várzea Queimada Várzea Queimada Várzea Queimada Km 30

Quadro 2 - Entrevistados na Comunidade de Várzea Queimada, Caém – BA (2019) Fonte: Fábio Nunes de Jesus, 2019.

Uma vez que os processos históricos e políticos do Estado brasileiro caracterizados sobretudo pela marginalizaçao da população negra gerou formas malabaristas de naturalizar o racismo estruturalmente no pais, através da pretensa ideia de miscigenação e identidade nacional, dentro destas mesmas violentas representações, o reconhecimento pelo estado da existência negra e quilombola demonstram ainda, como afirma Santos:

Ao acatarmos essas denominações, por reinvindicação nossa, mesmo sabendo que no passado elas nos foram impostas, nós só o fizemos porque somos capazes de ressignifcá-las. Tanto é que elas se transformaram do crime para o direito, do pejorativo para o afirmativo. Isso demonstra um refluxo filosófico que é um resultado direto da nossa incapacidade de pensar e de elaborar conceitos circulantes. (SANTOS, 2015, p.95)

Ainda sobre os conceitos representativos acatados pelo Estado, o que na verdade é uma condicionalidade negociada politicamente diante de um Congresso Nacional conservador e mantenedor de práticas colonizadoras ainda presentes na sociedade brasileira, Arruti (2005) faz um resgate do termo remanescentes e

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observa que ele inicialmente era usado para designar os indígenas , mas que, ao ser usado para referenciar quilombos, apresenta mudança de sentido, visto que o processo histórico e político apresenta distinção na forma como o Estado reconhece, caracteriza e regula os grupos.

Ao apontar para os seus laços com o passado dessa linha mutacional, o termo ‘remanescentes’ reserva ou resgata para aqueles grupos indígenas alguma positividade, sem romper com a narrativa básica, fatalista e linear. No caso dos agrupamentos negros rurais, é possível reconhecer função semelhante. No ‘artigo 68’, o termo ‘remanescentes’ também surge para resolver a difícil relação de continuidade e descontinuidade com o passado histórico, em que a descendência não parece ser um laço suficiente. De forma semelhante à dos grupos indígenas, o emprego do termo implica a expectativa de encontrar, nas comunidades atuais, formas atualizadas dos antigos quilombos, mesmo que em função do lugar espelhado que o negro ocupa com relação ao índio inverta o valor atribuído àquelas ‘sobras’ e ‘restos’ de formas antepassadas. (ARRUTI, 2005, p.81)

Os termos remanescentes e quilombos, por sua vez, associados ao cotidiano da comunidade, ultrapassaram o sentido conceitual, justamente a partir de sua apropriação e prática política de uso pela própria comunidade. O sentido exigido pelo Estado para o reconhecimento dos mesmos produzirá formas variadas de encaixes e desencaixes necessários, atuando como forças que irão tensionar as normatizações diante das relações políticas presentes no contexto de cada comunidade.

O uso dos dois termos presentes na Constituição de 1988, apesar de limitações que remontam a uma forma de controle social e político do Estado diante dos povos alijados de políticas públicas e inserção social, amarram e envolvem estas comunidade diante das várias instâncias (jurídicas e institucionais). Nas comunidades, esses termos serão reinterpretados e vinculados a novas formas que ampliam a organização social e política das mesmas.

Esta busca e reapropriação do sentido diante da imposição de classificação e formatação de determinados grupos sociais ou povos excluídos pelo Estado, segundo Arruti (2005, p. 81): "Mais do que isso, diz respeito, na prática, aos grupos que estejam se organizando politicamente para garantir esses direitos e, por isso, reivindicando tal nominação por parte do Estado".

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muito bem este significado, mediante a condição social e política a qual a comunidade estava submetida. Segundo ele, e por volta dos anos 1990, as condições extremas de vivência na comunidade já reclamava uma necessidade de mudança do quadro vivido.

Cada um por si e Deus por todos. [...] Aqui chegou energia em dois mil e seis. [...] ... a partir de muita luta ai[...]Não tinha água, não tinha energia elétrica, é... o que mais? [...]Não tinha transporte que hoje alguns tem carro, tem moto, né? Que naquela época, ou era animal ou então na perna...[...] É... noventa e oito. [...]Recente...[...]Olha, aqui o problema social era assim, no caso é... os pais tinham as crianças mas, não sabia se[...]ia viver. Porque era muito difícil, ou seja, não tinha agua, a agua que tinha era os tanques, né? Que você sabe como é no caso agua dos tanques, mesmo assim a gente tinha que agradecer quando tinha, quando não era isso, era o rio, o rio secava dai você ficava comprando carro pipa aqui sem saber de onde estava vindo essa água. Né? Então isso foi muito difi... dificultoso, né? E eu sempre tive essa, esse... essa consciência, né? Esse negocio de alguém tem que fazer alguma coisa Vendo acontecerem, né? [...]E observando, né? [...]Alguém tem que fazer... só que eu não tinha alguém que me estimulasse aquilo. [...]A escola não estimulava a luta, você lutar para desenvolver. A escola te ensina a ler e escrever. [...]A escola naquela época era para você aprender a ler e escrever... E isso eles faziam muito bem. (José

Jesus dos Santos, Várzea Queimada, 2019)

A ausência das condições mínimas, levando em consideração o tempo de existência da comunidade, chega a ultrapassar um século, como atesta José de Jesus e outros membros da comunidade. Levando em consideração que estas políticas públicas muitas vezes emanam de ações federais, muito mais do que municipais, observando- se o tempo destas ações em localidades vizinhas, até demonstram que o isolamento não estava associado ao "ilhamento" da comunidade, cujo deslocamento constante , diante da própria manutenção e sobrevivência, era comuns, mas a um papel definido por atores sociais municipais que lhes colocavam como "reservas de subserviência política eleitoreira", algo muito comum nos municípios do interior da Bahia . Arruti (2005) observa que na ressemantização, mesmo diante de um sentido constitucional que cria limites, a operacionalidade dos sentidos que ela vai ter será amparada, sobretudo, pelas demandas sociais e luta pelo reconhecimento de seus territórios.

O uso do termo, em ambos os casos, implica, para a população que o assume ( indígena ou negra ), a possibilidade de ocupar um novo lugar na relação com seus vizinhos, na política local, frente aos órgãos e às políticas governamentais no imaginário nacional [...].Em

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ambos os casos, trata-se de reconhecer, naqueles grupos - até então marginalizados -, um valor cultural absolutamente novo que, por ter origem em outro quadro de referências, era, até então, desconhecido deles mesmos[...] o termo " remanescente, no caso dos quilombos, pôde servir, ao final, como expressão formal da idéia [sic] de contemporaneidade dos quilombos. (ARRUTI, 2005, p.82).

O caráter mobilizador do processo encontrava cenário político federal favorável, no entanto, em termos locais, distinções aparecem através das comparações imediatas com as localidades vizinhas, inclusive reforçando o preconceito de lugar (inferiorização), racial (negros metidos) e político (alvo de campanhas e candidatos no entorno). Fica evidente que o parâmetro definidor do autorreconhecimento ultrapassara o ato de definição racial/étnica e transformaria a certificação em um manifesto e passaporte para a conquista e o acesso também aos níveis e direitos de cidadania, que deveriam atender a todos os brasileiros indistintamente.

É, não foi nem quando viu quando a água e nem quando teve a energia, eles vieram a partir de que nos conseguimos que a comunidade fosse certificada enquanto quilombola foi que dai saiu de lá e vieram para cá. [...]Ai quando foi em [...] vinte de agosto de dois mil e quatorze a comunidade foi reconhecida enquanto quilombo e que dai o pessoal falou assim, ó [...]saíram tudo daqui e vieram para cá. (José Jesus dos Santos, Várzea Queimada, 2019)

Este interesse e movimentação manifestado por José de Jesus não exprime ainda a real força destes eventos institucionais responsáveis pela mediação ou execução dos processos envolvendo a certificação. Ao observar o interesse político causado pelo reconhecimento, novas interações são estabelecidas ou ampliadas e até confrontadas, o que de certa forma será uma luta permanente da própria comunidade, uma vez que o contexto da política pode limitar ou ampliar, dependendo do nível de mobilização do próprio grupo.

Desenha-se neste momento as atenções para a comunidade pelo fato de ser rural e de roça, cujo papel político e caráter mobilizador terá destaque.

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1.2 RELATOS E ATOS: UMA LEITURA ASSOCIATIVISTA DO COTIDIANO DA COMUNIDADE

“Quando foi nos anos oitenta, oitenta e cinco pra cá, é, na época da ditadura vem aqui, veio aqui do Brasil, e vem com aqueles... naquela época nem sabia nem... era outro nome que se dava né, os programas de crédito que hoje seria o PRONAF, né? Disse “Ó, se vocês desmatar tanto, né? Tantos hectares então vocês vão ter é... tantos mil e vocês vão produzir mumuna” Então o banco é que dizia...[...]A farinha, aqui sempre foi farinha [...]Era o único dinheiro. [...]Nada, nada, nada, não tinha nada. Só que tem um, porém, que nessa época aqui chovia bastante então tudo que você plantava você ganhava a safra. [...]Ai você tinha abóbora, tinha o aipim, tinha banana tinha tudo né... Tinha muita caça né? O pessoal criava muita cabra, só minha vó, na época, só minha avó ela tinha não sei quantas cabeças né... acho que em torno de quinhentas cabeças. [...]Criava aqui nessa época aqui era parecido com fundo de pasto o pessoal criava tudo coletivo, não tinha cerca. [...] É, família então não tinha cerca. Então você ficava e criava tudo ai né... Que no fundo de pasto que é assim né? Nas praticas coletivas não tem cerca [...] veio aparecer aqui aposentados oitenta e oito para cá... O primeiro que chama Petronílio. [...] Com idades avançadas, e muitos, entendeu?”

(José Jesus dos Santos, Várzea Queimada 2019)

A preocupação do líder da comunidade, o Senhor José Jesus dos Santos, ilustra, de forma aparentemente confusa, uma sobreposição de tempos capazes de revelar as dificuldades ampliadas em função de uma organização social, caracterizada sobretudo pelas limitações e condicionantes da subsistência, o que aparecerá como resultado de superação nos anos 2000, quando a comunidade passa a se organizar coletivamente.

O autorreconhecimento expresso e declarado, transcrito da Ata (Figura 4), registrada em reunião, ocorrida em 17 de agosto de 2013, revela as dimensões exigidas e /ou interpretadas como necessárias para o acesso à certificação. São elas: a memória de senzala e escravidão, a fuga ou deslocamento para o mato, e na

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contemporaneidade, o direito à inclusão social através de políticas públicas e amparo salvaguardado no documento de certificação.

O deslocamento dos casais que deram origem aos moradores e às condições envolvendo posse, propriedades e o escravo como um bem patrimonial reforçam e demonstram que as relações coronelistas nos sertões também estavam estruturadas com base no próprio sistema escravista, como aponta Dantas (2007) sobre bens e propriedades, na Comarca de Itapicuru, e também nos registros oficiais que orientavam as relações de negócios diante da posse destes "bens ".

No índice analítico publicado em 1989 e intitulado Documentação jurídica

sobre o negro no Brasil , 1800-1888 (1989, p 63), produzido com base na Colleção

das Leis do Brazil, editorado pela Empresa Gráfica da Bahia, há relatos que demonstram um controle judicial e normativo legal intenso, tanto envolvendo o negro escravo como um bem ou propriedade negociável quanto como um ser marginal, incapaz de responder por seus atos, cada vez mais "selvagens" e "ameaçadores", levando inclusive seus donos a responderem nos tribunais sobre suas ações tuteladas. Em torno da população negra e escrava no Brasil, uma série de instrumentos jurídicos que lhes dizia respeito, mas sem que, necessariamente, os próprios tivessem voz ou fossem consultados.

A condição negra como um bem "semovente" demonstra que a ordem jurídica alimentava também uma ordem econômica e de valor ao negro como propriedade, na qual inclusive os bancos aceitavam escravos " em pagamento conciliatória ou judicialmente “, sendo que o "Banco poderia emprestar sobre hipoteca". Desta forma e diante de um território ameaçador e imprevisível para o negro, já que como objeto seria desprovido de valor humano, portanto, sem voz e sem existência. As fugas para mocambos, quilombos ou áreas de matas tornaram-se constantes e fundamentais para sua manutenção e sobrevivência no país.

Do final do século XIX para meados do século XX, era muito comum o estabelecimento ou a organização de povoados negros em torno de famílias agrupadas e frutos destes movimentos e relações. No entanto, os conflitos em torno dos escravos como propriedade passaram também a ser relacionados ao valor e à posse das terras, cujas autenticação e validade tornaram-se uma ameaça para estes grupos, sendo a ocupação fruto da fuga e ou deslocamento através da grilagem e dos latifúndios. Assim, a organização da comunidade em torno das relações

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familiares garantiriam um suporte na organização social e controle diante das ameaças constantes, muitas vezes conduzidas pelos próprios agentes do Estado.

Passado mais de um século, a certificação e a titulação em Várzea Queimada, de certa forma, também ocasiona um reencontro do Estado brasileiro sob um outro viés temporal e de reconhecimento da sua negligência e perseguição jurídica, envolvendo a história e a cultura dos povos negros no Brasil.

Em 20 de outubro de 2011, foi criada a Associação da Comunidade de Várzea Queimada (APAMC), em Caém - BA, sendo José Jesus dos Santos seu primeiro diretor presidente. Inicialmente, apresentava 18 (dezoito) membros, o que posteriormente segue um curso de crescimento dos associados até o período atual. Consta na Ata de abertura4 o propósito inicial do grupo e os princípios norteadores do propósito:

Após aclamação dos eleitos, a diretoria e o conselho fiscal foram impossados, ficou decidido que a associação não terá distinção partidária, nem de cor e nem de religião e que todos os sócio vão trabalhar de forma coletiva sem fim lucrativos. (ANEXO B)

Figura 6 - Reunião da Associação Quilombola de Várzea Queimada, 2017 Fonte: Fábio Nunes, 2017.

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Referências

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