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As rotas e/ou deslocamentos a partir dos rios com a prática da pecuária na Bahia significam, a partir do movimento, a presença de núcleos populacionais e também o traçado futuro do fluxo produtivo colonial. Ao mesmo tempo, por estas mesmas rotas, o “fluxo de lugares” através das informações e processos comunicativos permitiam também a configuração das vilas e funcionamento da economia vigente num sistema de trocas que envolvia tanto objetos de consumo, como também o corpo negro, parte técnica e compulsória do sistema colonialista em voga. Assim, como prótese espacial, se confunde um território em formação que desconsidera o indivíduo como parte indissociável do processo. A separação entre o negro (objeto) e o espaço (território hegemônico e de poder) tornou-se o mecanismo fundamental para a negação da cultura e dificuldade para reconhecimento do mesmo como membro da sociedade brasileira. Uma vez objeto, ele será naturalmente desprovido de sentido humano.

O Senhor Gildásio de Sena observa na questão da escassez algo que impressiona pela resistência, mesmo diante da ausência do Estado:

E aí, nós chegava com a jiboia, mãe não tava em casa, nois botava no terreiro, a bicha fuava, rodava, aí nois ia, vamos cortar os espetos pra nois muquiar ela, e a bixa rodando no terreiro, e aí matava, maquiava no fogão lá, quando mãe chegava nois tava com as torona de cobra assada comendo sem farinha que não tinha farinha, que é o que eu disse, que nois comia tapaia de forno, tinha farinha, mas, era

uma faria seca, aquela massa de tapá a pedra e nós ficava comendo no terreiro, mãe chegava de noite com um sacão de feijão, aí botava no terreiro, a lua bunita, vamos debuiá pra botar pra cozinhar, aí mãe sentada no canto e os sete filhos ali debulhando e mãe contando as histórias com tanta coisa que a gente não sabia e nós debulhando, pouca hora dava a quantidade e bota no fogo, botava no fogo, praticamente não tinha tempero, mas mesmo assim nós comia, no outro dia mãe ganhava o mundo de novo, trabalhar pro povo. (Gildásio de Sena, Várzea Queimada, 2019)

Que estrutura social reside na memória e orienta o mundo que se configura diante de uma comunidade quilombola rural do sertão? Sem dúvida, esta memória é uma cartografia de um Brasil que se revela a partir de cada indivíduo, mas que muitas vezes se dilui ou se afirma na medida em que a comunidade ou o grupo reforça este sentido avaliado e consentido pela comunidade. Por sinal, a mesma coloca em cheque o valor de sua representação diante da totalidade, o que, de certa forma, aparecerá no fracasso da modernidade e desenvolvimento seletivo nacional como fundamentos generalizadores.

Este Brasil onde o espaço relacional (grupo, família, comunidade) sustenta e produz uma geografia no plano da memória será instrumentalizado pela experiência na busca de garantias da existência e fundamentará o ajuntamento e sustentação material e territorial quilombola revelada pelo Senhor Gildásio de Sena. É importante destacar que a existência de um Estado autoritário consiste também na invisibilidade que ele provoca justificando assim sua ausência e responsabilidade sobre o tipo de sociedade ao qual consiste. Esta violenta exclusão e negação atinge gerações e artificializa os direitos sociais, confundindo muitas vezes políticas mínimas estruturantes em premiações políticas no acesso.

Assim, mediante esta lógica estrutural social colonial, a cultura e o outro como negação, neste caso, não ocorrerá somente no âmbito das diferenças, mas também da eliminação. Ela se justificará também na ausência do “espaço como propriedade legítima, material para os negros oprimidos, onde este lugar será ocupado e também disputado com as forças coloniais opressoras no território através da roça.

A roça como símbolo de vida e sustento familiar é uma garantia não só de trabalho, mas também de existência e projeções futuras para estas comunidades. O sentido que ela vai adquirir apresenta variações e significados que ultrapassam o limite geográfico a ela atribuído no sentido de propriedade. Os entrevistados em

seus relatos identificam pontos que são comuns quanto a sua importância, mas também um grande desafio posto diante do seu entendimento e inclusão ao sistema socioeconômico brasileiro.

O Senhor Ilário de Jesus Cruz, cujos pais também trabalhavam na roça e tiveram 13 filhos, reclama da vida sofrida onde cada dia seria uma grande batalha, ao "trabalhar vinte e quatro hora pra arrumar o pão de cada dia" (ILÁRIO DE JESUS, 2019), inclusive trabalhando na roça dos outros também. Roçar ao mesmo tempo é uma atividade de limpar e preparar o terreno para o plantio, mas também o movimento que garante o hoje e o amanhã. Para o Senhor Henrique, o ato de praticar a roça está vinculado a uma série de atividades envolvendo o plantio e o cuidado com a terra, constantemente, em que primeiro está o alimento e em seguida o que da produção permitir adquirir outros bens de consumo.

O excedente mínimo é limitado, mas também dependente da satisfação e da necessidade do grupo como sustento e manutenção alimentar através da roça.

Almeida (2011) observa que:

As terras das comunidades quilombolas cumprem sua função social precípua, quando o grupo étnico, manifesto pelo poder da organização comunitária, gerencia os recursos no sentido de sua reprodução física e cultural, recusando-se a dispô-los às transações comerciais. Representada como forma ideológica de imobilização que favorece a família, a comunidade ou a uma etnia determinada em detrimento de sua significação mercantil, tal forma de propriedade impede que imensos domínios venham a ser transacionados no mercado de terras, vinculadas a bancos e entidades financeiras, do mesmo modo que contraria os interesses latifundiários, os especuladores, os ‘grileiros’ e os que detém o monopólio dos recursos naturais. (ALMEIDA, 2011, p. 123)

A pressão exercida pelo mercado sobre as comunidades remanescentes quilombolas e suas atividades produtivas ameaçam a existência e a sobrevivência das próprias comunidades, ao desconsiderar as regras próprias e o valor cultural embutido nos processos de atividades prático socioespacial envolvidos.

Neste sentido, Almeida (2011) observa que a não titularidade se tornou um recurso comum e até pormenorizado pelos últimos governos, em que se consideram:

[...] as práticas de uso comum seriam vestígios de um passado a ser superado, ou seja, seriam práticas ‘rudimentares e primitivas’,

características de ‘economias arcaicas’, marcadas por

‘irracionalidades’, que se contrapõem ao desenvolvimento tecnológico. (ALMEIDA, 2011, p.177)

O objetivo atende ao grande capital e seu interesse na manutenção do sistema latifundiário brasileiro, objetivando o estoque de terras e satisfazendo a concentração e atuação do latifúndio no país.

É importante observar que a definição do conceito de roça, assim como de quilombo, também são esferas de embates no seu sentido e definição do ponto de vista historiográfico, geográfico e linguístico. No entanto, será no modo de vida, de ser e praticar a roça, que teremos manifestações expressivas da sua importância, sentidos e projeções futuras que movem e alimentam indivíduos e comunidades.

Santos (2015) destaca a roça como um espaço da biointeração, que precisa sobretudo superar o caráter autoritário do Estado brasileiro, através da sua guerra de territorialidades presentes desde a colonização:

Por exemplo: as sucessivas ressignificações das nossas identidades em meio aos mais perversos contextos de racismo, discriminação e estigmas: a readaptação dos nossos modos de vida em territórios retalhados, descaracterizados e degradados; a interlocução das nossas linguagens orais com a linguagem escrita dos colonizadores (SANTOS, 2015, p.97)

Ao falar de sua vivência no Piauí, destaca a roça, a partir da sua espacialidade como um conjunto de ações que leva em consideração as interações presentes na capacidade de cultivar e compartilhar, sendo que a roça seria o elo, cujo sentido estaria no nível da sociabilidade e interação, o que ele caracteriza como “roça de todo mundo”, uma interação definida a partir do próprio grupo social na comunidade.

Macêdo (2011) segue em um outro movimento de avaliação e definição do que seria a roça que, segundo ele, manifesta-se identitariamente e se reforça na dinâmica do contexto e afirmação da sua existência.

Mas, o que significa ser da roça? A elucidação desta questão depende da análise das representações que, em tempos e lugares diferentes, forjaram esses sujeitos. Portanto, ‘o ser da roça’ é, antes de mais nada, uma construção histórica. O sentido que lhe é

conferido está sempre em consonância com o tempo e com o espaço. O ser da roça, através do olhar externo, pode ser representado: de forma romantizada, como um ser puro, ingênuo e dócil; como o tabaréu, ignorante, analfabeto e incivilizado; como “um cabra macho’, valente, que ‘não leva desaforo pra casa’; como o roceiro, pobre, sujo, vítima da fome e, por isso, incapaz de aprender; como o messiânico, ruidoso das procissões e caravanas para fontes de milagres; etc. De acordo com a representação escolhida, ele pode ser discriminado a partir de estereótipos e/ou vitimado através de discursos que o estigmatiza como ‘pobre coitado’. (MACÊDO, 2011, p.83)

Na sua análise, podemos observar que já existem pré- definições classificatórias que designam o lugar do ser da roça diante do olhar predominantemente limitador do seu papel e, consequentemente, na tentativa de reforçar sua invisibilidade como membro e cidadão nesta sociedade.

O reforço ao tradicionalismo no olhar, tanto pode ocorrer na representação que lhe vincula a um passado de ausência de recursos, como também na comparação com o urbano, cujo ideal de modernidade fortemente pautado na estética da técnica se instalara como algo visto por muitos como não pertencente ao mundo rural.

Macêdo (2011) demonstra que a cultura da roça se insere nessa discussão como movimento contínuo de relacionamento com o real, ao tentar quebrar a linearidade de processos de produção da verdade que não exprime, pois não permite ainda que estas vozes apareçam:

O sentido de roça, aqui, vai além de lugar de pequenas propriedades onde se pratica a agricultura de subsistência. Pensamos que dar esse significado à roça é, de certa forma, retornar ao binarismo agrícola/industrial, atrasado/desenvolvido. E isso é negar a roça enquanto território, ou seja, é não atentar para o movimento dos seus sujeitos, para a forma de estes lidarem com o real. [...]São as interações realizadas entre homens/mulheres e natureza, o movimento dos atores sociais, a reinvenção de valores, cosmovisões e atitudes que desestabilizam verdades absolutas, ressignificam a roça e lhe conferem sentidos (no plural). (MACÊDO, 2011, p.28) A senzala, a roça, o terreiro e o quilombo como espaços de resistências, empreenderão a força motriz desafiadora da objetividade mecânica e produtiva que calculava o comportamento social e colonial.

Esta força ancestral vai sustentar a operacionalidade da resistência quilombola mediada pela africanidade que lhe guiará:

Em meio a esta teia de relações materializadas, os povos africanos movidos pela cosmogonia, presente na interpretação cultural e geográfica de mundo, criavam e reinterpretavam os sentidos estéticos e ideológicos predominantes na América à luz de conhecimentos transoceânicos e diastólicos, produzindo assim, espaços culturais territoriais de auto-referências [sic] (JESUS, 2013, p. 9).

Esta cosmogonia residente na memória e na oralidade transportam geografias e conhecimentos africanos para o Brasil, além de representarem a principal força de oposição ao colonialismo português através dos quilombos e diferentes formas de reações.

A linguagem temporal, a visão sobre a paisagem e o quadro social que ultrapassa a linearidade ou sequência de uma hierarquia geográfica encontram lugar que subverte a lógica dominante generalizadora de classificações. O Senhor Joaquim (Figura 14) expõe um mundo de experiências e ensaios, visando sobretudo manter o sustento vivendo da roça.

Figura 14 - Joaquim Pereira dos Santos, 2017 Fonte: Fábio Nunes, 2017.

Chegou a seca, a seca grande foi três anos de seca, deu três chuva, mas tinha... mas tinha um veio aqui que plantava e não ficou nada. Se acabou tudo. Batia o varão da porteira e mataram foi muito. Aí a condição não tinha porque porque... tinha uma chuva hoje e aí plantava, quandi quando vinha dá a outra em dezembro. Só ia chover em dezembro. O... com fome, os menino saía magrin... E a gente saia nos terreiros procurando aqueles ossos veios bão, cozinhava pra beber um cardo. Emagrecia que não sentava, se num tinha... hum nada [...] Plantava feijão, plantava mandioca, plantava abacate, plantava a... o... tsc... Fava, plantava andu. [...] Não vendia, sabe porquê? Num tinha comércio. Sabe um dia vender uma caixa de farinha? [...] Daqui a quinze léguas, então ni... Bonfim [...]Dava pra vender no Bonfim e nas Quemada, humrum, três dias. Fazia as caixa aqui no méi do caminho pra quando chegar lá em Quemada vender a farinha que aqui num tinha... Aqui tinha horta [...] Que ia... ia lá na

minha casa, depois rodava a sua, quando num tinha uma coisa levava do outro, do outro era... porque era longe [...] Num vendia, botava os monte de farinha dentro de casa. E uma.... uma... um bolin as vezes vendia. O feijão, ficava um fico aqui no no canto da casa aqui. Fazia um fico e enchia de areia o feijão e areia pra ficar em cima todo ano [...]Era enxertado na areia [...]Ou então na gordura, no óleo e num vendia, num num dava coisa aqui não [...] É... aí quando tinha azeite, botava azeite [...] No óleo [...] Ou então a... a... a... areia por cima. Sabão? [...] Num tinha sabão... [...]Na... de cuada, eu já cansei... [...] Ou girava assim ói... [...] E botava o barro [...] E forrava, num machado, num numa madeira que tinha aqui que chama pó de rato e botava fogo [...]Agora aquela das cinza, que botava em cima daquela esteira ali e botava água [...] Aquela ali se pingasse... era só viva [...]Essa coisa do... do pó de rato era ali e fazia o sabão [...] Num tinha corda, as corda era de cuada da cinza do pó de rato. Quanto tocava a língua aqui comia a luz [...]Da língua da... [...] Num tinha nada lá, a coisa era devagar demais... Aí...E: [...] Panhava ali uma mandiroba [...] Pra fazer sabão daquilo ali, daquela sobra (Joaquim Pereira dos Santos, Várzea Queimada, 2019)

O Senhor Joaquim possui na memória os processos históricos vivenciados à luz da comunidade, tanto nas dificuldades como nos meios utilizados para a superação destas barreiras. O tempo da seca, o tempo da fome, o tempo da vida e da bonança estão sempre entrelaçados. É um Brasil que teima em existir, mesmo diante da presença da morte rondando e marcando o cotidiano.

Este olhar presente na sua fala sobre a roça, cujo conhecimento é pautado na prática de uma produção de mundo voltado tanto para a sobrevivência como na tentativa de superação das dificuldades, demonstra que estas comunidades possuem histórias de superação que, na verdade, remetem ao sentido excludente da nossa formação socioespacial, cuja roça (trabalho e organização social) aparece negligenciada e invalidada na sua ausência diante das políticas públicas do próprio Estado.

A roça aparece dentro desta formação como categoria inferior e consequentemente espaço geográfico negado como válido no arranjo socioespacial e territorial.

Figura 15 - Mata Secundária preservada, 2019 Fonte: Fábio Nunes, 2019.

O mato (Figura 15) está associado à roça na Comunidade Quilombola de Várzea Queimada. Ele representa o lugar reserva e busca de soluções diante das dificuldades. São várias as considerações que atribuem ao mato esta importância. Remédio, objetos criados a partir de material coletado na mata, além da caça. É muito comum as atividades de plantio e coleta por todos os entes familiares. Inclusive, a roça aparece também como um lugar de diversão e descobertas na infância, ao mesmo tempo que os pais desenvolviam suas atividades laborais.

Figura 16 - Agricultor em Várzea Queimada ,2019 Fonte: Fábio Nunes, 2017.

Para o Senhor Ilário Jesus Cruz (2019), que se intitula " batucador de roça”, “os mais jovens não querem saber de mato, nem chegam perto, só os mais velhos não tem medo, inclusive nem sabem que tipo de mato não pode ‘rancar’”. Observa ainda que o mato sustentava e permitia que a vida se estabelecesse, sendo inclusive fonte de alimentação:

Pode descer perguntando aí olhe, homem, homem, mulher de quarenta, cinquenta ano aí, pergunta como é que faz? É difícil um saber aí, ó. Agora se for ne minha segunda mãe, ela fala, ela fala como é por mode meu pai, que meu pai fazia pra nós sentar tudo pra comer ó, semana toda.[...] Aí, por isso é que minha segunda mãe sabe fazer, por mode meu pai.[...] Era, era almoço mesmo, era isso aí. [...]Arruma o oricuri, cortar aquele cabra ali, ó. [...] Fazer, imbu e tudo. [...] Sustentava. [...] Quando não tinha imbu fazia com seriguela. (Ilário Jesus Cruz, Várzea Queimada, 2019)

O Ouricuri e o imbu sustentavam os que passavam fome, relembra o Senhor Ilário, que aprendeu com os pais a extrair alimentos da vegetação da mata em que só os mais velhos conhecem.

Tinha um pé de coisa ali que nem eu tô falando, língua de vaca, pé de brêdo, era velado ali onde queimava coroa agora [...] deixe aí, amanhã ou depois nós retirava, nós fazia o almoço aí ó. Hoje não, se falar deixe esse pé aí que é pra tirar folha pra comer, fazer o almoço. Ah, não... Quem vai comer pau? [...] É, vai comer mato. Mas depois de pronto é pior que carne, mas pra quem não sabe é. (Ilário Jesus Cruz, Várzea Queimada, 2019)

Até hoje pratica a extração de Ouricuri (Figuras 17 e 18) e reclama da dificuldade de acesso em função do cercamento das propriedades, o que impede a extração e coleta. Para o Sr. Ilário, incomodado com o atual desconhecimento dos modernos, gera a recusa e compreensão do sentido do mato.

Figura 17 - Comunidade de Várzea Queimada, 2019 Fonte: Fábio Nunes, 2019.

Figura 18 - Extração e coleta do licuri em Várzea Queimada, 2019 Fonte: Fábio Nunes, 2019.

A roça se caracteriza nas comunidades quilombolas por delimitações de plantio e cultura, muito mais do que cercamento, pois geralmente a terra é da comunidade. No caso de Várzea Queimada, isso ocorria antes dos anos 1980, quando ocorreu a tentativa de invasão das terras da comunidade por grileiros, o que obrigou seus moradores a buscarem o cercamento e autoproteção. Hoje, cada família é responsável pela sua área de cultivo. Outra justificativa presente nas entrevistas diz respeito também ao problema com a criação de animais soltos e que destruíam as plantações nas roças.

Figura 19 - Senhor Henrique, agricultor da comunidade de Várzea Queimada, 2019 Fonte: Fábio Nunes, 2019.

O trabalho na roça é uma convivência de vidas em se tratando de Várzea Queimada. Por ser agricultura familiar, não é incomum também que o dia e a noite estejam relacionados com as atividades produtivas, inclusive de trabalho na roça durante a noite, como é o caso do Senhor Henrique (Figura 19), que afirma:

"Arrumamos um negócio pra batucar ... [...] mas pra quem não tem é difícil", já para

a professora Leonídia (2019): “A roça é o lugar de seres humanos viver em paz[...] A

gente planta, a gente colhe, a gente cria animais, né? E, a gente tá lidando com vida”. O Senhor Gildásio associa a roça a uma segunda mãe, onde há alegria

quando chove e tristeza quando é " estiagem" ou períodos prolongados de seca e lembra das dificuldades que passou ao viver momentos difíceis e de fome onde

[...] uns dava a farinha, outro não dava nada, outros pagava um dinheiro ali, que foi o caso que eu me emocionei, da crueira que nois comeu pra sobreviver, por isso [...] eu não nego nada de comer a ninguém nunca”. São marcas profundas que precisam (Gildásio de Sena, Várzea Queimada, 2019)

A prática socioespacial de roça em Várzea Queimada é baseada na orientação e na experiência de mundo presentes nos costumes, na história e na cultura da comunidade quilombola. Não havia estrada, apenas caminhos na mata, não há rio, mas havia caminhos entre roças e matas para o povoado de Piabas e chegar ao rio Itapicuru- Mirim. Não havia comércio local, mas a moeda era o produto socializado na troca. Hoje, e em função das mudanças resultantes da busca por políticas públicas, a comunidade já conta com recursos modernos, disponíveis para o desenvolvimento destas atividades. A aquisição de um trator para o preparo da terra para cultivo, a construção da casa de farinha com maquinário industrial e o acesso à agua potável encanada foram acompanhadas de novas práticas, envolvendo a mudança no comportamento político da comunidade de constante busca por parcerias e convênios, objetivando mais conhecimento e melhorias no uso dos recursos extrativos e de conservação da mata, além de mais aperfeiçoamento técnico na prática das atividades agrícolas.

Mesmo diante desta busca algumas práticas continuam sobrevivendo. Felipe Nery de Jesus dos Santos tem várias habilidades: é pescador, pedreiro, músico, caçador, apicultor e agricultor. Ele lembra da prática da capinagem e que, muitas vezes, recorria-se a uma ajuda coletiva denominada digitório, que consistia em prática de roçagem comunitária, tanto para capinar a roça como para arrancar a mandioca e raspar, uma prática conhecida também como mutirão, o que se torna também uma pratica de sociabilidade e reunião. Felipe Nery explica como ocorria:

"Aí quando eles marcavam os digitórios aí...[...] matava um porco ou [...] uma cabra, ou então comprava um pouco de carne na feira. Aí juntava 10 (dez), 12 (doze) homem, já limpava aquela roça”.

Felipe Nery relata ainda o que considera uma das atividades mais pesadas, a produção de farinha. Segundo ele, a atividade diante do forno e uso do rodo, chegavam a durar o dia todo ou acabar somente duas ou três horas da