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“Quando foi nos anos oitenta, oitenta e cinco pra cá, é, na época da ditadura vem aqui, veio aqui do Brasil, e vem com aqueles... naquela época nem sabia nem... era outro nome que se dava né, os programas de crédito que hoje seria o PRONAF, né? Disse “Ó, se vocês desmatar tanto, né? Tantos hectares então vocês vão ter é... tantos mil e vocês vão produzir mumuna” Então o banco é que dizia...[...]A farinha, aqui sempre foi farinha [...]Era o único dinheiro. [...]Nada, nada, nada, não tinha nada. Só que tem um, porém, que nessa época aqui chovia bastante então tudo que você plantava você ganhava a safra. [...]Ai você tinha abóbora, tinha o aipim, tinha banana tinha tudo né... Tinha muita caça né? O pessoal criava muita cabra, só minha vó, na época, só minha avó ela tinha não sei quantas cabeças né... acho que em torno de quinhentas cabeças. [...]Criava aqui nessa época aqui era parecido com fundo de pasto o pessoal criava tudo coletivo, não tinha cerca. [...] É, família então não tinha cerca. Então você ficava e criava tudo ai né... Que no fundo de pasto que é assim né? Nas praticas coletivas não tem cerca [...] veio aparecer aqui aposentados oitenta e oito para cá... O primeiro que chama Petronílio. [...] Com idades avançadas, e muitos, entendeu?”

(José Jesus dos Santos, Várzea Queimada 2019)

A preocupação do líder da comunidade, o Senhor José Jesus dos Santos, ilustra, de forma aparentemente confusa, uma sobreposição de tempos capazes de revelar as dificuldades ampliadas em função de uma organização social, caracterizada sobretudo pelas limitações e condicionantes da subsistência, o que aparecerá como resultado de superação nos anos 2000, quando a comunidade passa a se organizar coletivamente.

O autorreconhecimento expresso e declarado, transcrito da Ata (Figura 4), registrada em reunião, ocorrida em 17 de agosto de 2013, revela as dimensões exigidas e /ou interpretadas como necessárias para o acesso à certificação. São elas: a memória de senzala e escravidão, a fuga ou deslocamento para o mato, e na

contemporaneidade, o direito à inclusão social através de políticas públicas e amparo salvaguardado no documento de certificação.

O deslocamento dos casais que deram origem aos moradores e às condições envolvendo posse, propriedades e o escravo como um bem patrimonial reforçam e demonstram que as relações coronelistas nos sertões também estavam estruturadas com base no próprio sistema escravista, como aponta Dantas (2007) sobre bens e propriedades, na Comarca de Itapicuru, e também nos registros oficiais que orientavam as relações de negócios diante da posse destes "bens ".

No índice analítico publicado em 1989 e intitulado Documentação jurídica

sobre o negro no Brasil , 1800-1888 (1989, p 63), produzido com base na Colleção

das Leis do Brazil, editorado pela Empresa Gráfica da Bahia, há relatos que demonstram um controle judicial e normativo legal intenso, tanto envolvendo o negro escravo como um bem ou propriedade negociável quanto como um ser marginal, incapaz de responder por seus atos, cada vez mais "selvagens" e "ameaçadores", levando inclusive seus donos a responderem nos tribunais sobre suas ações tuteladas. Em torno da população negra e escrava no Brasil, uma série de instrumentos jurídicos que lhes dizia respeito, mas sem que, necessariamente, os próprios tivessem voz ou fossem consultados.

A condição negra como um bem "semovente" demonstra que a ordem jurídica alimentava também uma ordem econômica e de valor ao negro como propriedade, na qual inclusive os bancos aceitavam escravos " em pagamento conciliatória ou judicialmente “, sendo que o "Banco poderia emprestar sobre hipoteca". Desta forma e diante de um território ameaçador e imprevisível para o negro, já que como objeto seria desprovido de valor humano, portanto, sem voz e sem existência. As fugas para mocambos, quilombos ou áreas de matas tornaram- se constantes e fundamentais para sua manutenção e sobrevivência no país.

Do final do século XIX para meados do século XX, era muito comum o estabelecimento ou a organização de povoados negros em torno de famílias agrupadas e frutos destes movimentos e relações. No entanto, os conflitos em torno dos escravos como propriedade passaram também a ser relacionados ao valor e à posse das terras, cujas autenticação e validade tornaram-se uma ameaça para estes grupos, sendo a ocupação fruto da fuga e ou deslocamento através da grilagem e dos latifúndios. Assim, a organização da comunidade em torno das relações

familiares garantiriam um suporte na organização social e controle diante das ameaças constantes, muitas vezes conduzidas pelos próprios agentes do Estado.

Passado mais de um século, a certificação e a titulação em Várzea Queimada, de certa forma, também ocasiona um reencontro do Estado brasileiro sob um outro viés temporal e de reconhecimento da sua negligência e perseguição jurídica, envolvendo a história e a cultura dos povos negros no Brasil.

Em 20 de outubro de 2011, foi criada a Associação da Comunidade de Várzea Queimada (APAMC), em Caém - BA, sendo José Jesus dos Santos seu primeiro diretor presidente. Inicialmente, apresentava 18 (dezoito) membros, o que posteriormente segue um curso de crescimento dos associados até o período atual. Consta na Ata de abertura4 o propósito inicial do grupo e os princípios norteadores do propósito:

Após aclamação dos eleitos, a diretoria e o conselho fiscal foram impossados, ficou decidido que a associação não terá distinção partidária, nem de cor e nem de religião e que todos os sócio vão trabalhar de forma coletiva sem fim lucrativos. (ANEXO B)

Figura 6 - Reunião da Associação Quilombola de Várzea Queimada, 2017 Fonte: Fábio Nunes, 2017.

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Figura 7- Reunião da Associação Quilombola de Várzea Queimada, 2017 Fonte: Fábio Nunes, 2017.

Segue uma sequência de estruturação, adequação ao normativo estabelecido pelo grupo, horários das reuniões, conselho fiscal, membros e obrigações dos associados. Em 17 de agosto de 2013, a comunidade se reúne para discutir autodefinição como comunidade negra remanescente quilombola.

O diretor presidente o senhor José Jesus dos Santos fez abertura da reunião dando boas vindas, a todos os presentes e pediu que todos se manifestassem sobre o assunto. Daí foi feito um rápido histórico sobre a comunidade de Várzea Queimada fundada em 1885 quando[...] aqui chegaram os casais Domingos Pereira dos Santos e Inês Maria de Jesus, vindos de uma senzala pertencente à fazenda Morro Redondo no município de Tanquinho de Feira Bahia na qual seu proprietário se chamava Coronel João Barbosa, as outras duas famílias fundadora, José Maurício dos Santos e Ricarda Maria de Jesus, Vigília Maria de Jesus e Manoel Maurício dos Santos vinheram das senzalas de fazendas de Caldeirão Grande, que na época pertencia ao território de Jacobina. Portanto nós moradores somos descendentes dessas três famílias que foram escravizadas pelo sistema, por tudo isso relatado, nós moradores queremos nosso auto reconhecimento Quilombola onde nossa história nos dá esse direito constitucional de afirmar e defender nossa identidade, seja na cultura, nas formas de trabalhos, nos modos de produção e de vida .Entendemos que com a garantia de direito conquistado neste caso, a nossa certificação podemos avançar dentro das políticas públicas por exemplos. Educação, saúde da família, posse da terra, lazer, e outras políticas do governo federal, como: Bolsa família, habitação, etc. Para concluir a reunião o diretor presidente perguntou para todos os presentes vocês se [...] auto define como negros, ou seja, como

comunidade quilombola? todos responderam que sim, então segue em anexo a lista com as assinaturas de todos os presentes. Por tudo isso relatados pedimos da fundação cultural palmares nosso auto reconhecimento quilombolas. Nada mais havendo a tratar encerra-se a reunião e a presente ata onde eu Girleide Jesus dos Santos diretora administrativa lavrei -a e assino junto com todos. (ANEXO C)

Este manifestar-se através da autoidentificação (ANEXO C) tornou-se fundamental, pois a comunidade passa a buscar nas políticas públicas, nos âmbitos estadual e federal, formas de acesso aos bens e serviços públicos até então restritos às esferas institucionais municipais, cujo acesso a comunidade encontrava dificuldades. Esta mobilização por associativismo tornou-se fundamental no momento em que parcela da comunidade dirigente começa a circular por outras comunidades e socializar meios e informações via trâmites políticos de inserção.

Em 02 de abril de 2016, a comunidade manifesta preocupação com o golpe que atingiu a presidente do Brasil, Dilma Rousseff, identificando no processo um ataque que prejudica aos mais pobres.

A mobilização política e social em torno da busca por inserção e pleito das políticas públicas em âmbitos municipal, estadual ou federal, atrelada a uma preocupação constante com a prática socioespacial na comunidade, permeia toda a periodização e o registro das atas acessadas durante a pesquisa na comunidade. Estas, em seus conteúdos e demonstrativos, sob efeito de registros entre os anos de 2011 e 2018, revelam frentes principais na luta por acesso ao Estado, através do atendimento, melhoria e acolhimento das necessidades sociais da comunidade via políticas públicas.

A forma como o Estado brasileiro se manifesta em Várzea Queimada e nas comunidades rurais e quilombolas no território do Piemonte da Diamantina é, no mínimo, do ponto de vista técnico –científico, caracterizado por ausências e interrompimentos que contribuem muitas vezes para o esvaziamento de sentido dos projetos aplicados. José Jesus dos Santos expõe dois momentos importantes no âmbito da formação da comunidade e sua relação diante da improvável presença do Estado. No primeiro momento, o estímulo ao desmatamento e à ampliação das áreas de pasto no discursos dos agentes do Estado a partir das suas instituições financeiras. Neste momento, o próprio capitalismo em curso criava e condicionava o sistema produtivo na área , gerando incluídos e excluídos .A inserção em programas ligados ao PRONAF e o acesso aos recursos financeiros e de investimentos

estabeleciam limites envolvendo o quantitativo de hectares e que, muitas vezes, impossibilitava a própria comunidade de participar , já que o padrão estabelecido para a aquisição não contemplava as características do próprio sistema comunitário e familiar de produção e organização econômica do grupo.

Abóbora, aipim, farinha e criação de cabras e galinhas, dentro de um sistema comunitário familiar, cuja produção coletiva se destacava. As mercadorias tornavam-se a própria moeda que regularia a vida dos seus moradores: a farinha. O apego à terra como única entidade confiável e as constantes desconfianças para com os agentes do Estado impediram que muitas vezes os membros da comunidade tivessem acesso ao próprio Estado, cuja representação ameaçadora era externalizada também a partir dos agentes latifundiários responsáveis pela grilagem e ampliação da área de pasto no entorno da comunidade.

1.3 ESTRUTURAÇÃO E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA DA COMUNIDADE: PRÁTICA