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LEGISLAÇÃO SOBRE RDS NO ESTADO DO AMAZONAS

4.4 DISCUSSÃO SOBRE AS DIFICULDADES EXISTENTES NAS RDS E SUAS IMPLICAÇÕES NA APLICABILIDADE E EFETIVIDADE DA NORMA JURÍDICA

4.4.1 Instrumento normativo: lei e plano de manejo.

O grupo sintetizado em instrumento normativo contempla as questões oriundas da redação dos dispositivos legais referentes à RDS que, em virtude da falta de clareza, coesão,

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No GT2 RDS estavam presentes representantes das seguintes áreas: RDS Amapá, RDS Anamã, RDS Canumã, RDS Cujubim, RDS Mamirauá, RDS Piranha, RDS Piagaçu-Purus, RDS Tupé e RDS Uacari.

imprecisão técnica, dubiedade, falta de detalhamento e utilização de termos sem conceitos jurídicos, podem propiciar interpretações diversas daquela prevista como finalidade da norma jurídica. Por conseqüência, não será aplicável ao caso, e não conseguirá ter efetividade.

Neste sentido, temos o termo populações tradicionais que, além de não ter uma precisão técnica, ainda não possui um conceito delineado na norma jurídica estudada. A imprecisão técnica e a ausência da conceituação de populações tradicionais é um problema na efetividade da norma jurídica sobre RDS, porque não há definição jurídica de quem faz parte ou não daquele grupo social. Isto poderá implicar na generalização do termo, visto que todos são populações tradicionais. Ou a definição do termo poderá ensejar exclusão de indivíduos baseadas em características, para determinar quem pertence ou não aquela sociedade como formula Diegues e Arruda (2003)179. Outra possibilidade é buscar os parâmetros no dispositivo legal que define RDS (art. 20, da Lei n º. 9.985/00), conforme Oréfice (2003)180, para delinear o perfil dos integrantes das populações tradicionais . Esse conceito também poderia ser estabelecido, levando em conta o lapso temporal, como define Freitas (2001)181. No entanto, a conceituação feita a partir destas visões poderia ser limitada, e seu uso não ser adequado a determinados casos que ocorrem na realidade. Por exemplo, o enquadramento do indivíduo residente da área urbana que se une pelo casamento, ou estabelece união estável com um morador, ou usuário da Reserva, ou do seu entorno, pelas características ou o lapso temporal não pertenceria aquele grupo social designado como populações tradicionais, assim como, as pessoas que vivem na cidade e mantém sua propriedade na comunidade de origem.

Neste exemplo poderia ser indicada a aplicação do conceito delineado por Almeida & Cunha (1999)182, onde os indivíduos são considerados como integrantes da categoria

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Diegues, Antônio Carlos & ARRUDA, . op.cit., mesma página. 180

Oréfice, Cintia. op. cit., mesma página. 181

FREITAS, Vladimir Passos. op. cit., mesma página. 182

populações tradicionais , por anuírem os aspectos legais que ensejam o presente termo, ou seja, utilizar sustentavelmente os recursos ambientais.

Um elemento importante a ser ressaltado na conceituação de populações tradicionais é a incorporação do termo pelos indivíduos que moram ou são usuários da Reserva, que precisam se identificar com a terminologia e o conteúdo, para sentirem-se parte do grupo social. Isso porque a própria população local questiona o termo e seu significado, conforme verificado no capítulo 2, e também em decorrência da profusão de termos utilizados anteriormente na legislação, segundo Almeida e Cunha (1999)183, e pelo governo e seus representantes.

No Amazonas, o órgão ambiental estadual, ao observar a legislação em relação à RDS, não leva em consideração a ausência do conceito de populações tradicionais , sendo que na aplicação da norma, considera como integrantes deste grupo social os moradores e usuários das Reservas e do seu entorno. Lembrando que, anteriormente, na criação da RDS, é prevista a realização de um levantamento sócio-econômico para identificar o perfil das populações locais, sendo, neste momento, identificados os componentes daquele grupo social, e determinando aqueles que não fazem parte desta categoria; Por exemplo, são excluídos os indivíduos que exploram irresponsavelmente os recursos ambientais na área da UC. Essa identificação dos sujeitos é essencial para definir a atuação do órgão ambiental em relação a estes.

Enfim, é necessária a construção de um conceito jurídico de populações tradicionais, que leve em consideração características particulares dos indivíduos que estão na área e tem uma relação histórica, social, cultural, ambiental e econômica, sob a ótica do novo paradigma de desenvolvimento sustentável, que visa conciliar a exploração dos recursos naturais, o desenvolvimento econômico e social para as presentes e futuras gerações, bem como aceitar a responsabilidade de ser sujeito na proteção dos recursos ambientais.

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Ainda no grupo de instrumento normativo, temos a questão levantada no artigo 22, §5º e § 6º, da Lei nº. 9.985/00 que, devido a redação ser dúbia e com imprecisão técnica, dispõe respectivamente sobre a transformação e a ampliação da UC, admitindo o uso de instrumento do mesmo nível hierárquico da sua criação. Como afirmamos anteriormente, este dispositivo legal colide com o texto constitucional, conforme Silva (2004)184. Portanto, eventualmente, poderá ser objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade. Benjamin (apud Pedreira, 2005)185, por sua vez, não vê conflitos entre normas, ao se pronunciar especificamente sobre a ampliação, por não ter oferecer perigo a UC. A interpretação mais acertada parece ser a de Silva (2004)186, para o qual ampliar implica em alterar o limite definido no ato de criação da UC, e transformar é também realizar uma alteração de uma categoria para outra. Assim, percebe-se a necessidade de que o instrumento seja a lei.

A aplicabilidade e efetividade deste dispositivo legal ficam prejudicadas pela existência do conflito de normas, por admitir instrumento normativo inferior à lei, contrariando norma constitucional.

Ainda, concordando com o entendimento de Silva (2004)187, podemos ressaltar que o mais indicado no ato de criação de UC deve ser por lei, e não o decreto, como é a prática do atual Governo do Amazonas, em relação à RDS. A lei poderia conferir maior legitimidade e transparência no seu processo de construção. Além do que, a instituição de uma Reserva significa restrição de direitos e imposição de deveres, como bem pondera Silva (2004)188, que isto seria mais adequado ocorrer por lei específica.

Em síntese, a transformação e a ampliação de UC, em específico, RDS, deveriam ocorrer somente por lei. Mesmo que estas tenham como requisito a consulta pública, melhor seria ser constituído por um instrumento normativo, como a lei, para que tivesse um processo

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SILVA, J. A.. op. cit., mesma página. 185

PEDREIRA, ....falta bibliografia, verificar na caixa. 186

SILVA, J.A. op. cit., mesma página. 187

Ibid., mesma página. 188

mais complexo e assegurar a sua efetiva proteção, evitando eventuais problemas jurídicos, e estar em consonância com a Constituição da República Federal.

Ainda referente ao aspecto da norma jurídica sobre RDS, no que concerne o disposto no artigo 20, §2°, reflete um texto dúbio, por permitir distintas interpretações sobre a questão da dominialidade da área. Uma interpretação pode se dar, no sentido de admitir a existência de propriedade particular no interior da RDS, é entendimento de Silva (2004)189 e Figueiredo e Rodrigues (2001)190. Enquanto que vislumbramos a possibilidade de posicionamento contrário, tendo em vista a lei declarar a dominialidade pública da área na primeira parte do dispositivo, portanto não admitiria a possibilidade de existir propriedade particular nos seus limites. A obscuridade desta norma jurídica implica a dificuldade em ser aplicada aos casos, principalmente no Amazonas, que a falta de regularização fundiária é gravíssima.

O artigo deveria ser clarificado, para não pairar dúvida sobre a possibilidade de área ser considerada de domínio público, excetuando as propriedades privadas devidamente tituladas nos limites da Reserva, ou seja, admitindo a existência de áreas de domínio particular, assim distinguindo-se da RESEX. Isto terminaria qualquer discussão sobre a existência de duas categorias de UC de uso sustentável similares. A admissão de propriedade particular na Reserva seria a única diferença entre RDS e RESEX, no aspecto jurídico, porque historicamente são bem distintas as origens, como descreve Allegretti (1994)191.

Por outro lado, poderia também culminar em outro problema jurídico a regularização fundiária, em específico a desapropriação, ainda não resolvido em diversas UCs do Brasil, conforme Brito (2002)192. Na verdade, a regularização fundiária já faz parte do rol dos problemas de qualquer UC, todavia, no caso específico da RDS, inicialmente, não incidiria a questão da desapropriação de terras particulares e sua justa indenização.

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SILVA, J. A. op. cit., p. 190

RODRIGUES, J. op. cit., p. 191

ALEGRETTI, M. op. cit., p. 192

O Poder Público Estadual do Amazonas vem determinando, nos decretos de criação, que ficam excluídas as possíveis propriedades privadas nas Reservas. Neste sentido, temos o Decreto nº. 24.295, de 25 de junho de 2004, que criou a RDS do Uatumã e o Decreto nº. 25.039, de junho de 2005, que criou a RDS Uacari, entre outros. É uma alternativa que o Governo Estadual elegeu, para evitar eventuais problemas relacionados à existência de propriedades particulares com registro de titulo aquisitivo.

Enfim, o referido artigo precisaria ser alterado para não ensejar interpretações diferentes daquela pretendida pela lei, viabilizando a aplicabilidade e efetividade da norma jurídica. Além destes problemas de redação dos artigos temos ainda, o plano de manejo, previsto como instrumento para normatizar as condutas e atividades, bem como ser planejamento no modo de vida e atuação das populações locais; documento que deveria ser pormenorizado na legislação, com a finalidade de propiciar um entendimento mais claro e menos técnico, para incentivar a sua construção pelos moradores e usuários da Reserva e do seu entorno. A tecnicidade do documento, entretanto, tem que ser aliada à simplicidade de linguagem e retratar a realidade e o anseio das populações locais em relação ao seu modo de vida. A aplicabilidade deste instrumento na vida pressupõe que as populações locais sejam conhecedoras de seu conteúdo, aliás, que tenham participado do processo de elaboração do conteúdo, e em alguns casos, isso não acontece, por exemplo, na RDS do Piranha. Documentos internos da SEDEMAT demonstram que o plano de manejo da RDS do Piranha foi elaborado por uma consultoria técnica, que em sua proposta de elaboração deixou de incluir a participação naquele importante instrumento pelos residentes e usuários da Reserva, principais sujeitos que seriam afetados na aplicabilidade do documento.

Em razão desses fatos, ter uma redação clara, precisa e detalhada do artigo pertinente, no sentido de esclarecer que o plano de manejo, apesar de ser um documento técnico, conduz

a vida das populações locais. Por conseqüência, deve ser o mais simples possível, para conseguir a efetividade da norma jurídica de RDS.

Por fim, no grupo instrumento normativo, um aspecto que inicialmente não é jurídico, mas que influenciou fortemente o texto normativo do SNUC, recaindo sobre a norma jurídica sobre RDS, foi o a corrente ideológica conservacionista. Esta corrente, como descreve Mercadante (2001)193, entende conservação da natureza sob uma ótica excludente, onde a relação homem e natureza são antagônicas, visto que apenas vê a ação antrópica no meio ambiente como degradadora. Em contraposição a essa corrente, adveio o socioambientalismo centrado em políticas públicas ambientais de inclusão das populações locais, que possuem vasto conhecimento sobre as condições ambientais da área (Santilli, 2005)194.

Estas correntes ideológicas influenciaram no processo de elaboração da lei do SNUC, principalmente a ideologia conservacionista, que impregnou dispositivos legais, que tratam sobre categorias defendidas pelo socioambientalismo. A de uso sustentável, por exemplo, mencionada no artigo 20, §1°, que dispõe sobre RDS, cujo objetivo básico é a preservação da natureza . Conservação e preservação são vocábulos advindos da concepção conservacionista, marcando a norma jurídica com o valor de natureza intocada e intocável (Diegues, 2001)195.

De certa forma, estes valores conservacionistas influenciam negativamente na aplicabilidade e na efetividade das normas jurídicas pertinentes à RDS, não somente pela predominância em vocábulos, expressões e até conceitos construídos a partir desta concepção, mas em virtude das conseqüências das tentativas de aplicabilidade das categorias resultantes desta ideologia à realidade amazônica. O Parque Nacional do Jaú, no Amazonas, por exemplo, pertencente à categoria de Proteção Integral, na qual está estabelecida a obrigatoriedade da retirada da população local da área delimitada como UC, e a proibição da

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MERCADANTE, Mauricio. op. cit., p. 194

SANTILLI, Juliana. op. cit., p. 195

explotação dos recursos ambientais nos permite ressaltar a tentativa fracassada de aplicabilidade jurídica naquela região, visto que, até os dias atuais, a população local ainda não foi removida da área.

Os efeitos provocados pela prática governamental do conservacionismo às populações locais são os sentimentos de apreensão, temor e receio de serem expulsos de suas terras podendo ensejar a perda das raízes, identidade e sua maneira própria de viver. Por vezes, o olhar dos moradores e usuários das Reservas é desconfiado, por temer que sejam excluídos, apesar do modelo proposto pelo movimento socioambiental ser inclusivo (Santilli, 2005). Isso é conseqüência das experiências negativas de outras populações locais que sofreram impactos da introdução de categorias de proteção integral, como o Parque do Jaú, tema de diversas polêmicas envolvendo a retirada dos seus moradores. Dessa maneira, a influência conservacionista é negativa e prejudicial à aplicabilidade e efetividade da norma jurídica, causa do receio e desconfiança das populações locais em torno das UCs.

Uma alternativa para superar esta apreensão é o poder público estabelecer relação de confiança com os residentes e usuários da Reserva, cumprindo com os acordos ajustados, como também se aproximando daquelas comunidades, apoiadas por lideres da região e disponibilizando os seus serviços, marcando a presença do Estado naquela área. Faz-se necessário que a relação de confiança seja baseada na transparência da administração pública com os seus administrados, em informar adequadamente a forma e os procedimentos que, possivelmente, serão realizados naquela área, bem como propiciar e garantir a participação dos atores sociais; assunto que trataremos com mais profundidade na próxima unidade.

4.4.2 Populações tradicionais e órgãos ambientais

Neste grupo vamos abordar entraves relacionados aos sujeitos locais e institucionais levantados anteriormente neste capítulo, perpassando desde a necessidade de assegurar a participação, organização social, política, econômica e jurídica das populações locais, bem como a ausência da presença do Estado nas áreas, a falta de regularização fundiária e de infra- estrutura, recursos humanos e financeiros do poder público, articulação local, nacional e internacional e a pesquisa científica na UC. Os temas são transversais, à medida que trabalharmos um, e o outro assunto estiver intimamente ligado, será também inserido na discussão, para se obter uma conclusão geral.

Inicialmente, a organização social, política, econômica e jurídica das populações locais é o ponto de partida para análise da aplicabilidade e efetividade da norma jurídica pertinente à RDS. A organização incide no fato das populações locais se agruparem em torno de objetivos comuns, estabelecendo relações sociais e responsabilidades políticas. Para alcançar determinadas metas, o grupo precisa se enquadrar em uma estrutura jurídica, o caso, por exemplo, da Associação de moradores ou Associação comunitária. Neste rumo, as comunidades conforme definição de Lima & Alencar (2002), nas áreas de Reserva, tem um papel fundamental, visto que elas são consideradas o núcleo social e político que influenciam diretamente os residentes da área. Portanto, é imprescindível que as comunidades sejam mobilizadas e organizadas socialmente, politicamente e juridicamente, para colaborarem na construção do novo paradigma de desenvolvimento sustentável adequado à realidade amazônica. Ser sócio de uma Associação, ou cooperado de uma Cooperativa, pode representar uma alternativa econômica para moradores da Reserva. Através desta organização poderão ser facilitadas algumas questões, por exemplo, a comercialização de produtos ou subprodutos explotados sustentavelmente das Reservas, bem como a articulação para o seu respectivo