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2.3 A PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NA AMÉRICA: O SISTEMA

2.3.1 Instrumentos normativos de proteção

Conforme introduzido no tópico anterior, o Sistema Interamericano conta com uma base normativa composta, principalmente, por quatro instrumentos: a Carta da OEA e a Declaração Americana, comuns ao sistema da OEA; e a Convenção Americana de Direitos Humanos, juntamente com o Protocolo de São Salvador.

A Carta de Bogotá, tratado constitutivo da Organização dos Estados Americanos, foi a responsável por criar e dispor sobre o funcionamento e competências da organização regional. A partir da interpretação do que estabelecem seus Artigos 1 e 2, a Organização se destina, entre outros propósitos, a conseguir uma ordem de paz e justiça no continente, intensificar uma cooperação internacional pautada na solidariedade, resolver eventuais conflitos entre os Estados e, ainda, promover a democracia. Conforme o Artigo 1 do tratado, a OEA se define, no âmbito das Nações Unidas, enquanto um organismo regional93.

Conforme dito, o Art. 106 da Carta prevê, além da futura elaboração de uma Convenção Americana de Direitos Humanos, a existência de uma Comissão Interamericana de Direitos Humanos, dedicada a promover e defender esses direitos, ainda que não exista, em qualquer parte do documento, uma definição exata de quais seriam os bens jurídicos abarcados pela expressão. Todavia, conforme pacificou a Opinião Consultiva 10, de 1989, da Corte Interamericana de Direitos Humanos, é a Declaração Americana que determina quais são os Direitos Humanos aos quais se refere à Carta de Bogotá94.

A Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem, por sua vez, consagra nos seus Artigos de 1 a 26 os seguintes direitos: direito à vida; direito à liberdade, direito à segurança; direito à integridade pessoal; direito de igualdade perante à lei; direito à liberdade religiosa e de culto; direito à liberdade de investigação, opinião, expressão e difusão; direito à proteção da honra e da vida familiar; direito de proteção à maternidade; direito de proteção à infância; direito de fixar residência e de liberdade de locomoção; direito à inviolabilidade do

93 CARTA da Organização dos Estados Americanos. Departamento de Direito Internacional. Disponível em:

<http://bit.ly/2pgNu5k>. Acesso em: 23 set. 2017.

94 RAMIREZ, Sergio García. La jurisdicion interamericana de derechos humanos (estúdios). Comision de

domicílio; direito à inviolabilidade da correspondência; direito à saúde; direito à educação; direito à participar da vida cultural; direito ao trabalho, justa remuneração e repouso; direito à previdência social; direito ao reconhecimento da personalidade jurídica; direito ao acesso à justiça; direito à nacionalidade; direito de sufrágio e participação na vida política; direito de reunião e associação; direito à propriedade privada; direito de peticionar perante os órgão públicos; direito de proteção contra prisão arbitrária; e, por fim, direito ao devido processo legal95. A Declaração, por si só, não incumbe a nenhum órgão o dever de zelar pela observância dos direitos enunciados, cabendo, como já visto, à Carta da OEA este papel. Muito embora já tenha sido considerado que a Declaração Americana carecia de força vinculante, sendo mera expressão de um horizonte ético, a já citada Opinião Consultiva 10 sepultou, em definitivo essa concepção, estabelecendo que, para os Estados membros da OEA, a Declaração constitui, quando relacionada à Carta de Bogotá, fonte de obrigações internacionais96.

Contudo, o principal documento em matéria de Direitos Humanos do Sistema Interamericano permanece sendo a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH). A partir de sua entrada em vigor, o Pacto de São José da Costa Rica trouxe os Direitos Humanos ao campo das normas internacionais no âmbito regional, além de definir as bases organizacionais do sistema, estabelecendo, de maneira detalhada, as competências e o funcionamento da já existente Comissão Interamericana de Direitos Humanos e da inédita Corte Interamericana de Direitos Humanos.

O Artigo 1 da CADH impõe aos Estados a obrigação primária de respeitar todos os direitos resguardados pelo tratado, além de diligenciar no sentido de garantir o seu usufruto, com relação a qualquer pessoa, não sendo aplicável, aqui, nenhum tipo de critério de discriminação, inclusive quanto à nacionalidade. Dessa forma, os Estados se comprometem a garantir e respeitar os Direitos Humanos de qualquer pessoa que esteja sob a sua jurisdição. O Artigo 2, por sua vez, impõe aos países a obrigação de adotar todas as disposições de direito interno necessárias à efetivação dos direitos e liberdades resguardados pelo Pacto. Tais direitos, essencialmente civis e políticos, estão contidos do Artigo 3 ao 25 do tratado, sendo apenas o Artigo 26 dedicado aos direitos sociais, econômicos e culturais, no sentido de reconhecer a existência destes e o dever dos Estados de progressivamente – ao contrário da

95 DECLARAÇÃO Americana dos Direitos e Deveres do Homem. Comissão Interamericana de Direitos

Humanos. 1948. Disponível em: <http://bit.ly/2buTOPC>. Acesso em: 25 set. 2017.

96 PEREIRA, Antônio Celso Alves. A Competência Consultiva da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Revista Interdisciplinar de Direito, v. 11, p. 21-36, 2014. Disponível em: <http://bit.ly/2DwBHTi>. Acesso em: 25 set. 2017.

aplicação imediata que se atribui aos direitos civis e políticos – de adotar medidas para garantir a sua efetividade sem, todavia, determinar quais direitos seriam esses97.

A Convenção, nesse ponto, se difere da Declaração Americana por não trazer, no seu rol de direitos e garantias, os de natureza econômica, social e cultural. Todavia, o rol de direitos civis e políticos de ambos os instrumentos é bastante similar, de maneira que todos os direitos contidos na Declaração também foram contemplados pelo Pacto de São José. Em acréscimo, a CADH trouxe, no seu Artigo 10, o direito à indenização por erro judicial resultante em sentença condenatória injusta, além do direito ao nome, através do Artigo 18, e a proibição à escravidão, servidão e trabalhos forçados, conforme o Artigo 698. Todavia, muito embora traga um extenso rol de direitos, a própria Convenção Americana, em seu Artigo 31, determina que este não é exaustivo, de maneira que outros direitos poderão vir a ser incluídos em seu regime de proteção, seja através de emendas ou protocolos adicionais. No mesmo sentido, o Artigo 29, alíneas b e c, do tratado estabelecem que as disposições da Convenção não podem ser interpretadas com o intuito de que outros direitos ou garantias inerentes ao ser humano sejam prejudicados ou, ainda, que sejam limitados os reconhecidos pelas leis nacionais ou por outros acordos internacionais nos quais os países ratificadores da CADH também figurem como parte.

Merece atenção, também, o Artigo 28, a chamada cláusula federal, incluído por iniciativa dos Estados Unidos da América, que sequer chegou a ratificar a Convenção. Conforme o dispositivo, no caso de estados federados, a exemplo do Brasil e do próprio país norte americano, compete apenas ao governo nacional a responsabilidade pelas obrigações assumidas no âmbito do tratado. Dessa forma, em um cenário hipotético, caso o governo de alguma das unidades federativas do Estado brasileiro, perpetue, em seu território e sob as suas competências, qualquer violação de Direitos Humanos que atinja as disposições da Convenção Americana, apenas a União, enquanto pessoa jurídica de direito internacional público poderá responder perante os órgãos de proteção do Sistema99.

A Parte II do tratado, que engloba do Artigo 33 ao Artigo 73, por sua vez, é dedicada exclusivamente a disciplinar os seus meios de proteção, ou seja, a Comissão e a Corte Interamericana. O Artigo 33, portanto, determina que a competência exclusiva para conhecer e tratar dos assuntos relativos ao cumprimento dos compromissos assumidos pelos Estados

97 CONVENÇÃO Americana sobre Direitos Humanos. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. 1969.

Disponível em: <http://bit.ly/2cAeab7>. Acesso em: 10 out. 2017.

98 LEDESMA, Héctor Faúndez. El Sistema Interamericano de Protección de los Derechos

Humanos: Aspectos institucionales y procesales. 3. ed. San José: Instituto Interamericano de Derechos Humanos, 2004. P. 100.

partes no âmbito da Convenção compete aos já mencionados órgãos. O dispositivo em comento, contudo, não deve ser interpretado no sentido que a Comissão e a Corte podem ser acionadas exclusivamente por descumprimento da Convenção, de maneira que ofensas às demais normas do Sistema Interamericano também podem ser aduzidas.

Em atenção ao que autoriza o Artigo 31 da Convenção, especificamente no que se refere à hipótese de elaboração de protocolos adicionais ao Pacto, os Estados partes adotaram, em 17 de novembro de 1988, na cidade de São Salvador, em El Salvador, o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais100. Apesar de não ser o único protocolo adicional à Convenção, existindo um segundo acerca da abolição da pena de morte101, o Protocolo de São Salvador merece destaque por se destinar a preencher a lacuna do tratado em matéria de direitos econômicos, sociais e culturais. Até o presente momento, 15 signatários da Convenção Americana aderiram ao Protocolo102, tendo o Brasil realizado a devida ratificação em novembro de 1999103.

O Protocolo traz, entre seus Artigos 6 e 18, a proteção dos mesmos direitos de natureza econômica, social e cultural contemplados pela Declaração Americana. Todavia, alguns incrementos foram realizados, de maneira que passaram a integrar a esfera de proteção do Sistema Interamericano o direito a um meio ambiente sadio (Artigo 11), direito à alimentação (Artigo 12), direitos especiais das pessoas idosas (Artigo 17) e direitos especiais das pessoas com deficiência (Artigo 18).

Com relação a aplicação dos meios de proteção aos direitos sociais, econômicos e culturais, o Protocolo, em seu Artigo 19, determina que deverão os Estados partes apresentar relatórios acerca das medidas que estão sendo adotadas para garantir o respeito aos direitos consagrados nos dispositivos do documento. Todavia, o Artigo 19 restringe o direito de petição individual perante a Comissão Interamericana, podendo ser o caso submetido posteriormente à Corte apenas quanto aos direitos resguardados pelo Artigo 8 e Artigo 13 – respectivamente, garantias sindicais e direito à educação. Conforme ensina o jurista chileno

100 PROTOCOLO adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em matéria de direitos

econômicos, sociais e culturais, “Protocolo de San Salvador”. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Disponível em: <http://bit.ly/2BQva5p>. Acesso em: 22 nov. 2017.

101 PROTOCOLO à Convenção Americana sobre Direitos Humanos referente à abolição da pena de morte.

Comissão Interamericana de Direitos Humanos. 1990. Disponível em: <http://bit.ly/2Bkxhxw>. Acesso em: 22 nov. 2017.

102 PROTOCOLO adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em matéria de direitos

econômicos, sociais e culturais, “Protocolo de San Salvador”. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Disponível em: <http://bit.ly/2BmSjLR>. Acesso em: 22 nov. 2017.

103 BRASIL. Decreto Nº 3.321, de 30 de dezembro de 1999. Brasília, Disponível em: <http://bit.ly/2kImmYf>.

Hector Faúndez Ledesma, muito embora o Protocolo tenha buscado preencher o vazio deixado pelo texto original da Convenção, ele falha no que se refere a possibilidade de judicialização dos direitos sociais, podendo ser considerada, nesse aspecto, um retrocesso ao que estabelece o próprio Pacto de São José, que não tinha imposto qualquer restrição neste sentido.

Além dos documentos já mencionados, que compõem a base normativa e principiológica do Sistema Interamericana, existem outros noves tratados dedicados diretamente a resguardar os Direitos Humanos na América, direcionados para a proteção de grupos vulneráveis ou para situações que demandam especial atenção da comunidade internacional. São eles: a Convenção Interamericana para Prevenir e Sancionar a Tortura, de 1985; a Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas, adotada em 1994; Convenção Interamericana para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência, de 1999; a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, de 2013; Convenção Interamericana Contra Toda Forma de Discriminação e Intolerância, do mesmo ano; e, a mais recente, Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos do Idoso, de 2015. Existem, ainda, os tratados interamericanos voltados, especificamente, para a proteção da mulher, sendo estes a Convenção Interamericana sobre Concessão dos Direitos Civis a Mulher e a Convenção Interamericana sobre Concessão dos Direitos Políticas a mulher, ambas de fevereiros de 1948, anteriores ao próprio sistema interamericanos, além da Convenção Interamericana para Prevenir, Sancionar e Erradicar a Violência contra a Mulher, de 1994.

2.3.2 Mecanismos de controle: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a