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Integração morfológica ao longo da ontogenia em marsupiais do novo mundo (Mammalia,

INTRODUÇÃO

Charles Darwin (1859) já havia reconhecido que as interações entre diferentes estruturas ao longo da ontogenia poderiam influenciar a variação dentro e entre caracteres, e que isto poderia ter implicações na evolução de organismos multicelulares complexos, compostos de diversos caracteres em potencial interação. Estas mesmas interações entre caracteres podem ser descritas pela matriz de covariância genética aditiva G (Falconer & Mackay 1996). Assim, como as interações entre caracteres podem mudar ao longo do desenvolvimento, fruto de, por exemplo, expressões de novos genes, interações epigenéticas e mesmo influências ambientais (Mitteroecker & Bookstein 2007), a matriz G também pode mudar. Como esta mesma matriz é também responsável por descrever as restrições na variação disponível para a ação dos processos evolutivos e de ser o substrato sobre o qual agem os processos evolutivos (Steppan 1997), diferentes regimes de seleção atuando ao longo da ontogenia podem ter conseqüências importantes. É possível que o padrão observado nos adultos, como por exemplo a covariação entre dois caracteres, indique seleção positiva quando na verdade esta seleção tenha sido negativa em períodos anteriores. Conseqüentemente, a análise dos padrões de covariância ao longo da ontogenia pode ser útil no entendimento do comportamento destas matrizes em populações adultas (Mitteroecker & Bookstein 2009).

O crânio dos mamíferos possui complexos padrões de crescimento, com diferentes origens embrionárias, e várias funções exercidas pelos seus diferentes órgãos e regiões, como a neural, o olfato, a visão, a respiração, mastigação e deglutição (Moore 1981). Apesar de haver um certo grau de distinção entre estas funções, elas são servidas por uma série de estruturas que estão interconectadas, de forma que também há um certo grau de associação entre elas. Conseqüentemente, observa-se no crânio diferentes níveis de associação entre caracteres. Dentro do arcabouço teórico da integração morfológica, estes caracteres mais correlacionados entre si são chamados de módulos (Wagner et al. 2007). Sua observação empírica reside na observação de que há maiores correlações entre determinados caracteres do que destes com outros (Berg 1960).

Com base nas relações de desenvolvimento, reconhecemos (Cheverud 1995, Marroig & Cheverud 2001, Marroig et al. 2009, Porto et al. 2009, Shirai & Marroig 2010)

duas regiões principais com origens embrionárias diferentes: a face, que deriva da crista neural; e o neurocrânio, com origem nas células do mesoderma paraxial (Moore 1981). Estas regiões também possuem funções distintas. O neurocrânio, contendo a caixa craniana e alguns órgãos dos sentidos (olhos e ouvidos), é responsável pela proteção, principalmente, do sistema nervoso central, e por parte do sistema sensorial, englobando a visão e audição. A face, contendo o aparato da mandíbula e os músculos associados a sua sustentação, é responsável pela alimentação, respiração e por outros órgãos do sistema sensorial, neste caso o paladar e o olfato (Emerson & Bramble 1993, Russel & Thomason 1993). Estas duas regiões podem, por sua vez, ser divididas em regiões ainda menores. O neurocrânio é composto pelas regiões da abóboda craniana (que responde pelo crescimento do cérebro), da base craniana (que responde pelo crescimento do cérebro e até certo ponto, por fatores somáticos de ação tardia), e pela órbita (que responde pelo crescimento dos olhos). Já a face pode ser dividida nas regiões oral (correspondendo ao crescimento dos dentes e da cavidade oral); nasal (respondendo pelo crescimento da cartilagem do septo nasal), e do zigomático(que corresponde a região de fixação e atividade dos músculos da mastigação) (Cheverud 1995).

De forma a aumentar o conhecimento em torno dos padrões de integração morfológica, optei por analisar os marsupiais da ordem Didelphimorphia. Os marsupiais sul-americanos permaneceram isolados por 35 milhões, enquanto este continente permanecia separada dos demais (Tyndale-Biscoe 2005). Além das Américas, os marsupiais só são encontrados na Austrália, Nova Guiné, Tasmânia e algumas outras ilhas adjacentes (Wilson & Reeder 2005). Atualmente existem três ordens de marsupiais americanos, sendo Didelphimorphia a mais rica em espécies, com 19 gêneros, 97 espécies e uma única família, Didelphidae (Gardner 2007).

Meu objetivo neste capítulo foi avaliar se os padrões e magnitudes da integração morfológica observados entre os Didelphimorphia (descritos no primeiro capítulo) são semelhantes ao longo do desenvolvimento ontogenético após o nascimento. Índices gerais de integração morfológica foram calculados para os gêneros ao longo da ontogenia com o intuito de analisar, também de forma exploratória, como estes se comportam ao longo do desenvolvimento.

MATERIAIS E MÉTODOS

Amostra

Com o auxílio de um digitalizador tridimensional (Microscribe MX), obtive as coordenadas tridimensionais referentes a 32 marcadores externos. Tais marcadores foram transformados em 62 distâncias euclidianas, reduzidas a 35 usando a média entre os dois lados do crânio. Estas distâncias representam as regiões do crânio que compartilham uma história de desenvolvimento e/ou performance funcional, bem como descrevem a estrutura craniana como um todo, evitando problemas de redundância (Cheverud 1995).

No total medi 5515 espécimes, distribuídos entre os 19 gêneros de marsupiais Didelphimorphia existentes, abrangendo 83 das 97 espécies atualmente reconhecidas (Gardner 2007). Excluí, entretanto, um grande número de exemplares da minha amostra final por pertencerem a espécies mal amostradas (poucos exemplares). Concluí que a utilização destes crânios acrescentaria ruído maior à amostra, uma vez que não poderia controlar estatisticamente os fatores alheios a matriz genotípica/fenotípica, que é de meu interesse. Utilizei somente as espécies mais bem amostradas para cada gênero, reduzindo minha amostra para 4884 espécimes. Em cinco dos 19 gêneros da família, não consegui obter um número mínimo de exemplares e portanto estes gêneros não puderam ser analisados. São eles Caluromysiops (7 espécimes), Chacodelphys (1), Glironia (1), Hyladephys (2) e Lestodelphys (4). Assim, analisei somente 14 dos 19 gêneros: Caluromys, Chironectes, Cryptonanus, Didelphis, Gracilinanus, Lutreolina, Marmosa, Marmosops, Metachirus, Micoureus, Monodelphis, Philander, Thylamys e Tlacuatzin.

O segundo fator que contribuiu para a redução da minha amostra foi a exclusão de espécimes medidos incorretamente. Utilizando um intervalo de 99% (para cada sexo/espécie) da minha distribuição como valores de referência, excluí mais 74 espécimes (1,5% da amostra) que considerei como consideravelmente maiores ou menores que os demais. Assim, minha amostra passou para 4810 exemplares (tabela 2.1, apêndice 1, indivíduos jovens e adultos).

Cheverud (1988) argumenta que matrizes deveriam ser estimadas baseadas em amostras mínimas de 40 espécimes. Apesar de ser um número meramente arbitrário, acredito que matrizes estimadas com amostras inferiores não são uma boa representação dos padrões reais populacionais. Como utilizar este número de corte reduziria em muito o número de matrizes passíveis de análise (tabela 2.1), principalmente entre os espécimes mais jovens, decidi reduzir este valor para 15, estando ciente, no entanto, dos potenciais efeitos de uma amostra pequena na estimativa destes parâmetros populacionais. Portanto, para 141 exemplares distribuídos entre 24 idades/gêneros diferentes não computei as respectivas matrizes fenotípicas. Estes espécimes, entretanto, continuaram sendo utilizados para o cômputo da matriz total para cada gênero (ver abaixo).

Os exemplares medidos encontram-se depositados nas seguintes coleções científicas: American Museum of Natural History, Nova Iorque; Field Museum of Natural History, Chicago; Museu Nacional, Rio de Janeiro; Museo de Historia Natural de la Universidad Nacional Mayor de San Marcos, Lima; Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo, São Paulo; Museum of Vertebrate Zoology, Berkeley e National Museum of Natural History, Washington D.C..

Tabela 2.1 – Amostra totalizando 4810 espécimes medidos. Valores em negrito (N < 15) foram usados somente para o cômputo da matriz total (ver texto).

Gêneros

Idades

zero um dois três quatro cinco seis sete todos

Caluromys 7 12 23 51 33 119 121 100 466 Chironectes 3 14 16 7 17 35 39 20 151 Cryptonanus 4 3 31 15 6 59 Didelphis 48 172 191 126 148 149 132 161 1079 Gracilinanus 5 3 3 46 15 7 104 Lutreolina 4 4 5 20 24 11 70 Marmosa 4 68 62 19 132 148 118 547 Marmosops 22 33 22 84 98 58 312 Metachirus 15 46 47 20 55 107 113 415 Micoureus 17 36 13 100 96 55 317 Monodelphis 48 78 45 84 85 100 440 Philander 7 44 65 47 107 125 130 97 614 Thylamys 6 10 9 126 38 14 202 Tlacuatzin 27 7 34

  Exemplares foram divididos em sete classes etárias de acordo com a erupção e desgaste dos dentes (Tyndale-Byscoe & Mackenzie 1976, Tribe 1990). Como tive a oportunidade de medir espécimes muito jovens, onde não havia dentes eclodidos (e conseqüentemente não abarcados pelos métodos propostos) adicionei uma nova idade, zero utilizando oitro classes etárias ao invés das sete normalmente utilizadas:

0 – exemplares sem dentes eclodidos ou começando a eclodir;

1 – exemplares com o terceiro pré molar decíduo e o primeiro molar eclodido (Dp3M1)1;

2 – exemplares com o terceiro pré molar decíduo e o segundo molar eclodido (Dp3M2);

3 – exemplares com o terceiro pré molar decíduo e o terceiro molar eclodido (Dp3M3);

4 – Nesta idade, há uma diferenciação no padrão de dentição, dependendo do gênero. Em alguns casos (e.g. Caluromys, Gracilinanus, Marmosa, Marmosops, Metachirus e Micoureus) o quarto molar eclode antes que o terceiro pré-molar decíduo seja substituído pelo permanente (Dp3M4). Em outros gêneros (e.g. Chironectes, Didelphis, Lutreolina e Philander) a eclosão do pré-molar permanente ocorre antes da eclosão do quarto molar (P3M3);

5 – exemplares com o terceiro pré-molar permanente e quatro molares eclodidos (P3M4);

6 – idem ao anterior, mas neste caso o desgaste nos dois primeiros molares já é perceptível;

7 – idem à idade cinco, mas há desgaste nos quatro molares.

      

1 - Esquema representativo da dentição: Dp – pré molar decíduo superior, P – pré molar superior e M – molar superior. Os números especificam cada um dos dentes. Indivíduos adultos apresentam 3 pré-molares e quatro molares.