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CAPÍTULO 2 QUADRO DE REFERÊNCIA

2.3.1 Continuidade e progressão referencial

2.3.1.5 Interpretação de anáfora

Uma das observações mais importantes feitas até agora é a de que o referente de uma anáfora não se encontra no texto em si, mas no modelo de discurso que o leitor é capaz de construir a partir de informações lingüísticas e não-lingüísticas. O estabelecimento de uma relação anafórica se dá, então, não quando o sujeito consegue conectar o anafórico a um antecedente expresso no texto, mas quando consegue conectar a informação do anafórico a um modelo de discurso anteriormente construído (ou em construção).

Essa observação serve de base para algumas questões sobre o processo de resolução anafórica, ou sobre como modelos são acionados na interpretação de uma anáfora. Uma dessas questões é a de decidir a que uma anáfora se refere, ou qual é seu antecedente. Para interpretar, ou resolver, uma anáfora, é necessário saber a que ela pode referir. O processo de busca será restrito a apenas um conjunto de antecedentes potenciais: somente ações e estados devem ser considerados como antecedente para uma frase verbal elíptica, por exemplo (adjetivos, advérbios, preposições não serão considerados como antecedentes possíveis). Isso significa que, para integrar à representação do texto a informação de uma sentença que contém anáfora, o processador de linguagem deve determinar onde seu sentido será buscado. Se o antecedente não está no texto, mas resulta de uma atividade cognitiva, é necessário investigar como age o processador na construção do referente. Que informações considera no processamento? Que informações lingüísticas e/ou não- lingüísticas são importantes nessa atividade? Ou que fatores atuam sobre o processamento?

São muitos os fatores que têm sido sugeridos (Webber, 1980; Garnham, 1987; Ariel, 1988; Corrêa, 1993; Garnham, 1994 entre outros) como os que influenciam as escolhas do leitor no processo de resolução de anáfora. Esses fatores podem ser agrupados em dois grandes blocos: de um lado, os fatores relacionados ao texto, enquanto unidade lingüística concreta (fatores de natureza sintática, número de competidores ao papel de antecedente, posição de tema ou tópico, proximidade ou distância entre os antecedentes); de outro lado, os fatores que dizem respeito ao leitor, ao seu conhecimento de mundo, sua experiência em leitura, suas crenças, sua cultura).

Há anáforas que podem ser facilmente resolvidas porque somente um antecedente é possível para elas ou, às vezes, porque na própria expressão anafórica há alguma marca sintática, como as de número e gênero, que reduzem o conjunto de antecedentes possíveis. Exemplo:

(19) João disse a sua irmã que ela não ia ganhar um presente no Natal.

Pela marca de gênero, fica muito claro saber que ela refere-se a irmã. Embora possa parecer evidente que gênero seria usado automaticamente no acesso ao referente, Garnham, Oakhill e Cruttenden (1992), apud Harley (1995), sugerem que o uso de marcas de gênero aconteça sob o controle estratégico do compreendedor. Nesse caso, os sujeitos somente usariam a marca de gênero se a tarefa os obrigasse a prestar atenção nessa marca.

Mas nem sempre estratégias sintáticas são suficientes para solução de anáforas. Veja-se (20), por exemplo, em que a ambigüidade no antecedente do pronome (ele – irmão, ou ele - João) exige o acionamento de outras informações pragmáticas ou discursivas, que se tornam relevantes no processo de resolução.

(20) João disse a seu irmão que ele não ia ganhar um presente no Natal.

Saber quem é João, quem é seu irmão, qual é o presente, conhecer dados da situação em que a frase foi dita, ajudam a esclarecer o referente do pronome; além disso, o contexto pode desfazer a ambigüidade (pelo contexto, a ambigüidade pode nem mesmo ser instaurada). Esse fato leva à reflexão de que muitas vezes é o contexto que torna um antecedente disponível. Esse contexto, porém, não é fixo, é extremamente dinâmico. Inclui

não só o texto precedente, como também os conhecimentos dos interlocutores, as suposições prévias que possuem sobre o mundo, sua percepção sobre o entorno, aspectos sociais e culturais, hipóteses que levantam, inferências que realizam. Esses e outros elementos vão se constituindo numa base, em constante mutação, na qual os sentidos serão produzidos.

A noção de tema ou tópico também tem sido utilizada para explicar o acesso a antecedentes de anafóricos. Todavia, é pouco claro como relações temáticas explicam esse acesso. Vejam-se os exemplos que aparecem em (21).

(21.a) Pedro deixou sua sobrinha em casa e foi com Maria e João à danceteria.29

(21.b) Ela ainda não estava aberta. Eles sentaram-se na calçada. (21.c) De repente, perto de João, ele viu um rato.

(21.d) A garota viu também.

(21.e) Pedro admirou-se porque João reagiu rapidamente.

(21.f) João lamentou não ter um pedaço de pau, porque ele poderia usá-lo para abater o rato.

O pronome ele em (21.c) será interpretado como Pedro, apesar de ter dois antecedentes possíveis (Pedro e João). Uma explicação para essa interpretação é a de que Pedro é o tema ou tópico, tem função de sujeito da sentença inicial; assim sendo, o leitor, consciente disso, interpreta o pronome da mesma forma. Em (21.f), ele vai ser interpretado como João, que é tópico da sentença.

O grau de acessibilidade da representação do referente vai variar também em função da

recência (Webber, 1980) ou de proximidade (Côrrea, 1993), isto é, uma representação será

mais acessível quanto mais recentemente ativada tiver sido, independentemente da forma como foi apresentada (pronome ou expressão definida). Em (21.d), por exemplo, a descrição definida a garota será interpretada como Maria, apesar de outra garota (a

sobrinha) ter sido mencionada. O fato de Maria ter sido o último nome feminino faz com

que este seja o antecedente mais prontamente disponível. Em (21.b), restrições semânticas e pragmáticas podem ser a base para explicar que ela refere-se à danceteria e não a casa, já que o mais comum é usar "aberta" para referir-se àquela e não a esta.

Explicar como um determinado item torna-se foco ou como passa a ter relevância num primeiro plano, enquanto outros ficam em segundo, é também uma questão de conhecimento anterior ou uma questão de crenças, objetivos e metas do leitor. Ao produzir uma interpretação para expressões que possuem mais de um antecedente potencial ou para aquelas cujo antecedente não se encontra expresso na cotextualidade, o interpretante pode construir uma resposta, por tomar como foco apenas um determinado item e relacioná-lo a um modelo presente em sua memória discursiva.

É possível partilhar, com Ariel (1988:65), da noção de que acessibilidade é uma questão de grau. Há elementos anafóricos que revelam que o referente tem um maior grau de acessibilidade e outros que indicam um menor grau. Pronomes, por exemplo, são marcadores de alta acessibilidade, são usados para retomar antecedentes em distâncias curtas, na mesma sentença ou na sentença prévia. Normalmente, retomam elementos em posição de tópico. Já as expressões nominais definidas (e os nomes próprios) são usadas quando há baixa acessibilidade. A utilização delas indica, comumente, que a pista para a informação a ser recuperada está mais distante, no mesmo parágrafo ou até mesmo no parágrafo anterior. No caso, se o leitor tiver esse tipo de conhecimento (que é do funcionamento lingüístico) tem mais uma pista de onde buscar o referente. Anafóricos de baixa acessibilidade podem impor dificuldade também porque exigem do leitor um conhecimento geral, ao referir elementos que não estão presentes na memória de trabalho, mas que precisam ser buscados na memória de longo termo.

É possível concluir, então, que o processamento de dispositivos anafóricos exige operações de níveis diferenciados de complexidade e o acesso ao referente vai depender dos fatores que se impuserem ao processamento. Tanto os fatores que se relacionam ao texto propriamente dito quanto os fatores que se relacionam ao leitor podem restringir o processamento e influenciar a compreensão. Isso pode significar que o acesso a algumas anáforas pode ser mais fácil ou mais difícil, dependendo das restrições que se impõem na relação entre anafórico e antecedente.