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Interpretação sociocultural, econômica, histórico-geográfica

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CAPÍTULO 1 MITOANÁLISE DAS NARRATIVAS DOS ORIXÁS (BACIA

1.2 A BACIA SEMÂNTICA DA MITOLOGIA DOS ORIXÁS

1.2.2 O Significado

1.2.2.3 Interpretação sociocultural, econômica, histórico-geográfica

Acreditamos que a mitologia dos orixás, com deuses ligados a tantos aspectos culturais, históricos, geográficos (apresentando seca, fome, guerra, trabalho, atividades e produção material, mortandades, doenças, elementos da natureza, etc.) seja o reflexo da vida existencial, dos costumes e da realidade econômica e cultural dos iorubás (dos povos daquela região da África Ocidental: Nigéria, Benin, Togo, Serra Leoa, etc.).

A partir do ponto de vista da antropologia e sociologia da religião, como demonstram Peter Berger (1985), Joachim Wach (1990), Mircea Eliade (2010) e Clifford Geertz (1989), entre tantos outros estudiosos, as sociedades humanas são construções do mundo, ocupando a religião um lugar de destaque nessa construção. Assim, cada sociedade estabelece os seus conceitos de sagrado e profano, e cria o seu cosmos sagrado de acordo com sua visão, sua cultura, suas crenças e valores, seu habitus (no sentido de Bourdieu), seu ethos, enfim. Interferem ainda nessa construção a história, a economia e a política de um povo – bem como o seu psiquismo, suas ideologias e até seu aspecto biológico. Enfim, trata-se de uma rede de variáveis, intrincadamente relacionadas, determinando o modo de vida, a visão de mundo, usos, costumes, valores de um povo e que intervém no seu imaginário simbólico e na sua religião.

Dessa forma, na mitologia dos orixás, como em qualquer mitologia, é preciso buscar todo o conjunto de elementos e princípios socioculturais, históricos, políticos, econômicos, etc. que contribuem e interferem na elaboração dos trajetos antropológicos do seu imaginário. Diante de elementos e temas recorrentes na mitologia dos orixás (como já exposto: seca, fome, guerra, plantações, búzios, alguns animais (galos, galinhas, cabras, carneiros), sexo, beleza física, posição social, festas, mercado, escravo), alguns questionamentos podem ser feitos relacionando a temática dos mitos e a vida do povo.

Deve-se então questionar sobre as condições de realidade de vida do povo iorubá – a história, a política, a economia, a cultura, ou seja, a realidade do povo iorubá que criou essa mitologia. Portanto o que se considera, assim, é que as mitologias não brotam do nada nem da simples fertilidade da imaginação de alguns, mas da vida real dos povos. É a vida real, com toda a sua problemática existencial e ideológica, que produz as mitologias, como expressão do ethos dos povos. Para

nós, os mitos dos orixás, narrando episódios e histórias de vida dos deuses africanos, são uma representação (ou até uma réplica) da vida dos iorubás – acrescida da magia e simbolismos que produzia o fenômeno do mediunismo no meio desse povo.

Ainda hoje a base econômica daquela região da África está no extrativismo mineral, na agricultura e na criação de gado, sendo pouco desenvolvida a indústria. Séculos atrás (ou milênios), quando se formou a mitologia dos orixás, as regiões citadas nos mitos eram predominantemente agrárias, produzindo uma agricultura de subsistência. Devia ser praticada a avicultura (com os galináceos) e a pecuária de pequeno porte ou o pastoreio (carneiros, cabras). Nas narrativas raramente é citado um touro (ou cavalo), então não devia existir criação de gado bovino, pelo menos não grandes criações – talvez houvesse maior produção de equinos por causa das guerras, embora tal produção não conste das narrativas.

No contexto dos orixás, o ponto central do comércio é o mercado, onde as mulheres iam vender comidas, roupas, adornos. Não é exposto como eram confeccionadas as roupas, embora se fale em panos da costa101 e em orixás bem vestidos e bem adornados, principalmente para as festas. Devia-se então praticar um pequeno comércio local – que era reflexo do comércio local nas regiões onde viviam os povos que criaram essa mitologia.

Mas devia-se praticar ainda uma economia de coleta nas matas e florestas, o que explica a forte presença da caça e da pesca, bem como dos obis e do dendê, plantas nativas da região. Daí a existência de vários orixás ligados a essas atividades, bem como à agricultura. Certamente um reflexo da realidade econômica iorubá.

A respeito dos iorubás, escreve Joachim Wach, no livro Sociologia da

religião (1990, p. 279-280), abordando a África Ocidental:

Os Ioruba, tribo sudanesa ao sul da Nigéria, chamou a atenção de estudiosos, por causa das interessantes analogias entre sua civilização, organização social e religião e as do antigo mundo mediterrâneo. Referimo- nos aqui às relações entre a atividade ocupacional e o costume, pensamento e ordem religiosos nesta civilização sudanesa, o que pode ser considerado típico de condições em ampla área do continente negro.

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Pano da costa: O Pano da Costa, tradicionalmente, faz parte do vestuário das africanas, que é usado enrolado ao corpo, sendo um costume em diversas regiões africanas como: Costa do Marfin, Gana, Nigéria, Congo, Benin e Senegal (Cadernos do IPAC, 1 (Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia), Salvador, Bahia, 2009, p. 18).

Wach diz que entre as ocupações da Nigéria meridional predominavam primeiramente a caça, e em seguida o comércio e as artes mecânicas. Quanto às artes mecânicas, ele se concentra na “parte desempenhada pela produção de metais e nos seus efeitos sobre o sistema religioso desse povo” (1990, p. 280) – o que justifica a forte presença e atuação do orixá Ogum com a sua forja, produzindo ferramentas para a agricultura. Quanto à produção do ferro, com base em outro estudioso (Talbot102), Wach afirma: “O ferro parece ter sido trabalhado na Nigéria desde tempos remotos e foi dado a entender que o mundo é devedor ao negro por ter desenvolvido inicialmente esta arte” (1990, p. 280) – devedor ao negro e ao orixá Ogum (aqui estamos unindo história real e ficção/fantasia/mito): por causa da realidade criou-se o orixá Ogum, com toda a sua produtividade e trabalho com o ferro. Wach comenta ainda o trabalho em bronze e em cerâmica. Referindo-se à cidade de Ifé, que tanto aparece nas narrativas dos orixás, Wach declara: “Desde então, a cerâmica e os artigos de ferro foram fatores importantes na cultura desenvolvida em Ile Ife (sic), originariamente a capital e, de então para cá, é a cidade sagrada do país dos Ioruba” (1990, p. 280).

Ainda com base em Talbot e Leo Frobenius, Wach acredita que as divindades da fertilidade e da vegetação tenham precedido as divindades solares, como o deus-relâmpago, Xangô. E cita o orixá Ocô (Oko), nome que significa “fazenda”, sendo Ocô uma das várias entidades agrícolas, atividade preponderante entre os iorubás da Nigéria daquele tempo. Os símbolos de Ocô são uma flauta de marfim (observa-se que o elefante é um animal nativo da África) e uma vara de ferro – “o ferro é considerado proteção contra as influências de maus espíritos” (WACH, 1990, p. 282).

Nesse processo de fusão entre o real e o imaginário místico, algumas divindades teriam emergido de heróis do povo, como Odudua (conquistador e criador de cidades), Xangô (guerreiro e também conquistador de outros povos) e Ifá (o deus da adivinhação), cada um transformado em Orixá, com seus símbolos próprios, cultos e seguidores. Ainda com base em Talbot, Wach escreve: “Os adeptos de cada orixá, ou divindade, seguem normas totemísticas exogâmicas103”.

Wach (1990, p. 281) faz uma afirmação cristalina quanto à relação entre

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Percy Amaury Talbot, The Peoples of Southern Nigeria: a Sketch o their History, Ethnology and

Languages. Londres: Orford University Press, 1926. 103

Exogâmico: Casamento entre indivíduos pertencentes a grupos étnico-raciais distintos. http://www.dicionarioinformal.com.br/exog%C3%A2mico/. Acesso em 04/09/2016, às 11:51.

cultura e mitologia religiosa: “É interessante observar como as atividades do povo são refletidas no panteão”. E detalha (ainda citando Talbot) características de alguns orixás relacionadas às suas atividades por determinação de Olodumare. “Sob Olorum, Senhor do Céu, está retratada, com inumeráveis olhos, a hierarquia dos

orixás que ‘administram os diversos departamentos da natureza e servem de

mediadores entre a humanidade e o supremo deus’”. Para Wach os orixás são “deuses funcionais”. Um deles é Xangô, o deus-relâmpago, herói de caráter solar, que vive em palácio de bronze. Danças sagradas são executadas em honra de Xangô no início da estação dos furacões.

Ogum, padroeiro dos ferreiros, caçadores, guerreiros e encantadores de serpentes, tem como símbolo uma pequena peça de ferro e é cultuado por todos que se ocupam de artes mecânicas, que são os principais adeptos de Ogum. O ferro era o principal material usados pelos iorubás, apesar do seu declínio, em razão do uso de outros metais (que se tornaram mais importantes) – tendo o latão, o cobre e o estanho uma importância menor. Por isso o chefe dos ferreiros era “sempre convidado a participar das reuniões do conselho” administrativo da cidade.

Quanto aos trabalhos com o ferro, Wach cita outro autor, Hambly (Cultural

areas of Nigeria), afirmando que os ferreiros constituíam uma casta diferenciada,

com seus costumes próprios, como o de não se casarem com membros da mesma família. Wach escreve: “A posição social dos ferreiros sempre constitui ponto de interesse ao se estudarem os costumes e a condição social” (1990, p. 282). Os ferreiros fazem o sacrifício de cães em seus cultos e têm cerimônias especiais de iniciação de aprendizes, em ritual centralizado na construção de uma fornalha, na fundição do ferro e na consagração dos instrumentos usados no trabalho. Wach cita Hambly (em Source-Book), concluindo (1990, p. 282): “Este autor lembra ter visto em Ife uma sepultura sagrada com duas grandes pedras, supostamente o martelo e a bigorna do primeiro ferreiro, Ogum, que é o patrono da profissão e deus da guerra”.

Wach se refere ainda à influência estrangeira, na Nigéria e no Benin, em épocas bem remotas, desde o segundo milênio antes de Cristo. O bronze pode ter sido originado do Egito. Invasores semibrancos estimularam diversas artes mecânicas (fino trabalho de cinzelar metal e cerâmica, de entalhar madeira e marfim), bem como o sistema político. Novamente referindo-se aos estudos de Talbot, Wach diz que, durante muito tempo, a arte esteve confinada ao ofício

sacerdotal na cidade de Ifé. Depois, com a transferência da capital para Oió, o poder político descolocou-se para a família de Odudua, “usurpador que mais tarde foi endeusado” (1999, p. 280). Em síntese, nas palavras de Wach (e de acordo com Talbot e Frobenius):

A esmerada organização política e religiosa do Estado Ioruba recebeu supostamente influências do leste e do norte. O culto aos antepassados e a algumas divindades heterogêneas mais elevadas, usualmente um deus-pai e uma deusa-mãe da terra, além de figuras menores, constitui o aspecto relevante na religião nigeriana. Os Ioruba, os últimos dos imigrantes, possuem o panteão mais amplo (1990, p. 280-281).

Sob o enfoque do contexto nigeriano dos iorubás (com sua história e condições geográficas), pode-se imaginar uma região castigada por secas constantes ou periódicas porque a seca também é um tema recorrente nos mitos dos orixás, o que deve ter provocado períodos de fome, castigando os homens e os deuses – o que justifica as narrativas relatando como os deuses levaram o alimento à humanidade.

Por outro lado, a exuberância das florestas; a grande quantidade de rios; a grandiosidade do mar (que ainda não tinha sido conquistado e amedrontava), com suas marés invandindo a terra, sua produção de ostras, algas e rica vida marinha; a fauna selvagem (búfalos, elefantes, veados); as chuvas tropicais torrenciais; os minérios e pedras preciosas; os fenômenos da natureza, que às vezes devastavam, destruindo construções rústicas de pau, palha e capim – toda essa realidade geográfica deve ter influenciado a criação de imagens e deuses da mitologia dos orixás.

A região deve também ter sido assolada pela varíola e outras pestes e doenças contagiosas, que causaram grande mortandade, daí a existência do orixá Omulu (Obaluaê). Como ainda não existiam a medicina cientifíca nem os remédios químicos, as doenças eram tratadas com a fitoterapia e toda uma diversidade de remédios naturais, destacando-se a figura do curandeiro ou herborista, representada pelo orixá Ossaim.

Outro dado histórico, como apresenta Adékòyà (1999), eram as constantes migrações, com lutas e guerras entre tribos inimigas, inclusive com a captura de escravos, o que justifica a presença dos orixás guerreiros, como Xangô, Ogum, Odudua, Iansã, havendo a necessidade de apaziguadores sociais, como

Oxalá e Orunmilá, e das magias de todos eles, juntamente com a de Exu, para proteger o povo. Em razão de tantas guerras reais, a mitologia também apresenta guerras, invasões, lutas entre nações, com derrotas, vitórias, orixás guerreiros e conquistadores de territórios. Dessa forma, a realidade política do povo vem expressa em sua mitologia.

Por outro lado, narrativas se referem a cidades iorubanas como o lar dos pais dos orixás: Cossô é a cidade dos pais de Xangô; Irá é dos pais de Oiá; Ifom, dos pais de Oxalá; Queto, dos pais de Exu; Irê, dos pais de Ogum; Ijimu, dos pais de Oxum; Igueti, dos pais de Orunmilá – um dado que relaciona vida real e mitologia.

Outras leituras da mitologia dos orixás poderiam ser feitas a partir da cultura e realidade iorubana, consultando-se referências bibliográficas diferentes. O importante, neste item, é registrar a influência dos aspectos históricos, sociais, econômicos, políticos na construção das culturas e destas na tópica sociocultural do imaginário, na criação do imaginário mítico-simbólico religioso – aspectos todos relacionados entre si numa mútua interferência e referencialidade conjunta.

Igualmente os hábitos dos orixás, envolvendo todos os aspectos da sua vida social, familiar, religiosa, afetiva, com seus costumes em vestimentas, adornos, festas, comidas preferidas, etc., são hábitos dos povos iorubás. Verger (2002), estudando o Candomblé da Bahia, refere-se aos pratos típicos oferecidos aos orixás, às comidas apimentadas e pratos preferidos por cada orixá. Eram as comidas do povo daquela região africana. Os orixás fazem festas, tocam tambores e dançam porque o povo fazia festas, tocava tambores e dançava. Os orixás são poligâmicos porque o povo era poligâmico. Portanto, dentro da concepção de signo (linguístico e/ou simbólico), essa realidade da vida existencial dos iorubás representa, para a mitologia dos orixás, o seu referente, pois é em relação a um referente que surge o signo, composto de significante e significado. Assim, a vida real do povo iorubá fez nascer a mitologia dos orixás.

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