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UMBANDA: UMA RELIGIÃO BRASILEIRA

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CAPÍTULO 3 UMBANDA: UMA BACIA SEMÂNTICA EM FORMAÇÃO

3.1 UMBANDA: UMA RELIGIÃO BRASILEIRA

Hélcio Fernandes Barbosa Júnior, Leandro Haerter e Denise Marcos Bussoletti, do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pelotas, RS, no artigo “A representatividade negra nos tambores de Umbanda”, afirmam na introdução do seu texto que a palavra “umbanda” não era usada antes de 1908:

A Umbanda é uma religião genuinamente brasileira, anunciada em 1908 pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas, através do aparelho – pessoa que recebe as entidades na Umbanda – Zélio Fernandino de Moraes. Até então, não se ouvia falar a palavra Umbanda no Brasil, embora os fenômenos de incorporação, benzeduras, passes e manifestações de espíritos existissem desde sempre.

Não há consenso entre os autores da Umbanda acerca da origem e do primeiro emprego desse termo no Brasil. Um autor cita outro, e no final não se sabe qual é a fonte mais confiável. Na varredura que Lísias Nogueira Negrão faz nas notícias sobre os cultos africanos publicadas na imprensa brasileira, a palavra “umbanda” não aparece antes do século XX. De acordo com Sangirardi Júnior, o termo “umbanda” veio da África. Ele escreve falando sobre a palavra e também explicando o que é a Umbanda:

O vocábulo “umbanda” é quimbundo, idioma dos negros de Angola. Vem de “ki-mbanda”, com substituição da primeira sílaba pelo prefixo “u”117. Na África, “kimbanda” é o xamã, ou seja, o feiticeiro, profeta, curandeiro; “umbanda” é o sistema religioso e mágico visando a curar, adivinhar, orientar e resolver problemas, mediante a ligação entre o mundo físico e o mundo sobrenatural (1988, p. 45).

117

Em nota, Sangirardi Jr. dá a referência sobre essa informação: CHATELAIN, Héli. Folk-tales of

Cavalcanti Bandeira (O que é a umbanda, 1970, p. 29), tratando da etimologia do vocábulo “umbanda”, e tomando como base os estudos de Malcolm Guthrie, da Universidade de Oxford, na obra The classifications of the Bantu

Languages (1948), diz que “o termo sempre existiu e faz parte integrante da língua

Quimbundo, como de muitos dialetos bantos, falados em Angola, Congo, Guiné, entre outros”. O Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa traz sobre o verbete “umbanda”: “[Do quimb. umbanda, ‘magia’]. Forma cultual originada da assimilação de elementos religiosos afro-brasileiros pelo espiritismo brasileiro urbano; magia branca”. Esse dicionário associa a Umbanda ao Espiritismo brasileiro urbano, que é de fins do século XIX e início do XX.

Mesmo assim, Trindade (2014) apresenta outra possibilidade da origem da palavra, que remontaria no orientalismo iniciático, tendo vindo do sânscrito “aum- bandha” – versão que se encontra em obras de outros autores umbandistas (W. W. da Matta, F. Rivas Neto, Norberto Peixoto), conferindo a essa religião uma antiguidade remota, na condição de uma das maiores correntes do pensamento humano, datando de muitos séculos ou milênios, enraizada nas mais antigas filosofias, e sendo ainda a religião verdadeira que prevalecerá no futuro para toda a humanidade.

Se o Candomblé nasceu pela ação dos negros africanos e de segmentos da população humilde brasileira, e principalmente no Rio de Janeiro e no Nordeste, a literatura acadêmica predominante sobre a Umbanda relata que ela foi criada pelas mãos de brancos intelectuais, com destaque para Rio de Janeiro e São Paulo. Por isso os autores sobre as religiões afro-brasileiras deixam claro, em síntese, que o Candomblé é uma religião africana, ou melhor, que segue de perto as tradições africanas, mas a Umbanda é uma religião brasileira.

Trindade (2014), professor doutor de Religiões Afro-Brasileiras da UNISAL, Campinas, SP, escreve na segunda capa externa da sua obra História da

Umbanda no Brasil:

A história da Umbanda é uma grande pesquisa em construção. Genuinamente brasileira, e com pouco mais de um século de existência, essa religião está cercada por muitos mistérios. Para entendê-la é necessário conhecer seus aspectos fenomênicos, magísticos, mediúnicos, ritualísticos, doutrinários e filosóficos, nas suas causas.

professor na Universidade Federal de Santa Catarina (onde é um dos coordenadores do LARC – Laboratório de Religiosidade e Cultura), no artigo “Umbanda, intelectuais e nacionalismo no Brasil” (2012), coloca logo no início da introdução:

Uma das características mais marcantes da constituição da umbanda no Brasil é a formação de um segmento intelectual, imbuído de um projeto normatizador, querendo impor-se às práticas multifacetadas que caracterizaram e caracterizam a religião. A formação deste segmento é particularmente importante para compreendermos as tensões existentes na umbanda entre a norma e a realidade empírica; entre o projeto letrado e a espontaneidade cotidiana; entre o ideado e o vivido.

Como outros estudiosos da Umbanda, Isaia data o nascimento da Umbanda na primeira metade do século XX, notadamente no início dos anos 1930, quando, dentro do pensamento revolucionário criado pela Semana de Arte Moderna (1922), se destaca uma geração de intelectuais que se dispunha a pensar e discutir as questões do Estado, da nação, de um projeto pedagógico inovador, das necessidades das camadas populares, falando em nome da massa oprimida e anônima e com uma postura quase que messiânica para resolver problemas do país. É nesse contexto de ideias que intelectuais religiosos simpatizantes e já engajados em cultos afro-brasileiros começam a pensar em uma religião tipicamente nacional que pudesse sintetizar, em termos religiosos, a miscigenação ocorrida no Brasil entre portugueses, indígenas e negros. Era uma proposta que se inseria perfeitamente nos ideais de brasilidade que percorriam a nação.

Isaia cita os trabalhos de Gilberto Freyre sobre o novo quadro social brasileiro criado com a presença dos escravos negros, com o fenômeno da mestiçagem, na formação de uma raça ímpar, e combate pensamentos racistas, pessimistas e reacionários do século XIX. Ele escreve:

É esse elogio a um Brasil miscigenado, moreno, sincrético, que vai aparecer na obra dos intelectuais da umbanda da primeira metade do século XX, evidenciando o seu caráter interdiscursivo e sua sintonia com o repensar da nacionalidade próprio do segundo quartel do século XX (2012, p. 4).

Estudando o sincretismo entre o Catolicismo e os cultos africanos no Brasil, a antropóloga Juana Elbein dos Santos admite que a Umbanda é uma nova religião que se formou. Ela entende que, no contato entre elementos europeus,

ameríndios e africanos, ocorreu o encontro de “variáveis heterogêneas” que se converteram em “variáveis homogêneas”, “criando um novo modelo ou sistema religioso negro-brasileiro” (Vozes, 1977, n. 7, in CINTRA, 1985, p. 90). Cintra refere- se ao trabalho dessa antropóloga, ligando suas ideias às de Durkheim e Malinovski (citados por Roger Bastide em Religiões africanas no Brasil) quanto à formação de espécies de sociedades que não sejam somente adições, mas “sínteses originais”. Conclui Cintra: “verifica-se (...) de maneira bastante acentuada na Umbanda carioca ou paulista. Uma nova religião parece estar surgindo, firmando-se em estruturas mais definidas” (1985, p. 91).

Tomando a noção de campo de Bourdieu e partindo de uma perspectiva weberiana sobre contato de populações em que uma domina outra culturalmente e a religião da cultura subalterna é considerada como magia, Lísias Nogueira Negrão (1996) analisa a Umbanda como religião-magia. Tecendo comentários quanto a algumas obras produzidas sobre o assunto, ele destaca a de Maria Helena V. B. Concone, a primeira a considerar a Umbanda como religião brasileira. Esse autor afirma:

O estudo de Maria Helena V. B. Concone – Umbanda: Uma Religião

Brasileira118 – tem, entre outros, o mérito de ter percebido o caráter nacional da religião considerada, conforme consta inclusive de seu título. Não mais um culto afro-brasileiro, mas brasileiro, conforme desvelou a análise de seus mitos. [...] Trata-se de estudo pioneiro sobre a Umbanda, talvez a primeira tese de doutorado defendida sobre ela, modesto em seus propósitos mas que contém ainda as melhores análises que se produziram sobre o transe de possessão em contexto umbandista (NEGRÃO, 1996, p. 29).

Outro trabalho que ele considera da máxima relevância é o de Renato Ortiz, sobre o qual declara:

De todos os estudos sociológicos que focalizaram exclusivamente a Umbanda, A Morte Branca do Feiticeiro Negro, de Renato Ortiz, é, sem dúvida, o mais abrangente e relevante. Com sólida base empírica e segura orientação teórica, aprofunda as análises de seu mestre Roger Bastide, de cujas ideias da superioridade religiosa do Candomblé não partilha, mas de quem herdou a preocupação quase exclusiva com o discurso dos intelectuais e líderes da Umbanda como legítimo representante de seu universo mítico e ideológico (NEGRÃO, 1996, p. 29-30).

Mais um autor, Cumino fala sobre a Umbanda, que estaria sendo

118

praticada no Brasil desde o século XVI – embora o autor não ateste que o culto já tivesse o nome de “Umbanda”. Cumino registra palavras emocionadas de Edison Carneiro (Edison Carneiro, Religiões negras, Civilização Brasileira, 1936):

Segundo dados conhecidos, a Umbanda vem sendo praticada em terras brasileiras desde o meado do século XVI, sendo, por conseguinte, a mais antiga modalidade religiosa implantada sob o Cruzeiro do Sul, depois do Catolicismo, que nos veio com os descobridores.

“Trouxeram a Umbanda, no recôndito de suas almas atribuladas de escravos, vendidos como mercadoria de feira aos grão-senhores do Brasil, os primeiros sudaneses e bantus que aqui chegaram no ano de 1530, procedentes de Angola, da Costa dos Escravos, do Congo, da Costa do Ouro, do Sudão e de Moçambique” (CUMINO, 2011, p. 50-51).

É de se perguntar: os escravos trouxeram a Umbanda ou o Candomblé? Se a Umbanda foi trazida pelos escravos, ela é “africana” (no sentido de seguir as tradições africanas) e não brasileira. Porém, como a maioria dos pesquisadores afirma que é brasileira, e como de fato ela é muito diferente do Candomblé e ainda possui elementos não-africanos, a conclusão a que se chega é que ela apenas tem bases africanas, mantidas em estado quase puro no Candomblé, porém bastante modificadas na Umbanda. Então ela é de fato brasileira. Quanto à herança africana, Negrão declara (1996, p. 147), afirmando que esse substrato não pode ser negado, mesmo que segmentos umbandistas tentem institucionalizar a religião em outras bases:

A matriz negra, ao lado da indígena e da europeia, é condição essencial da especificidade pretendida pela Umbanda, por lhe conferir a condição muito cara aos umbandistas de ser sua religião a única genuinamente brasileira, fruto da fusão dos cultos das três raças que constituiriam a nacionalidade. Tem de ser ela lembrada e afirmada, mesmo quando a nega na prática, na medida em que a cristianiza e kardeciza.

Mesmo que seja brasileira, a trajetória da Umbanda foi uma luta por permanência e reconhecimento de valores; foi a luta de um povo expatriado – retirado de sua terra-mãe contra sua vontade e condenado ao aviltamento do trabalho escravo – para continuar pelo menos cultivando suas crenças religiosas. Não se pode extirpar ou trair o núcleo étnico-mítico religioso de uma cultura, seu

ethos, sua representação, seus fundamentos culturais, seu modo de identificação no mundo, seu modo de ser com o outro e consigo mesmo. Sem a crença nos orixás os africanos se descaracterizariam. E seria sua morte como povo, como etnia.

Assim, em uma terra estranha e em condições de subalternidade, a forma de sobrevivência dessa cultura foi assegurada pelo sincretismo religioso com o Cristianismo e a absorção de traços da religiosidade indígena – a única solução que os escravos e afrodescendentes encontraram de manter no Novo Mundo as suas crenças. Nesse sentido, tanto o Candomblé quanto a Umbanda significam o esforço de resistência de um povo.

3.2 O CABOCLO DAS SETE ENCRUZILHADAS, “CRIADOR” E MENTOR DA

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