• Nenhum resultado encontrado

O CABOCLO DAS SETE ENCRUZILHADAS, “CRIADOR” E MENTOR DA

No documento Download/Open (páginas 192-198)

CAPÍTULO 3 UMBANDA: UMA BACIA SEMÂNTICA EM FORMAÇÃO

3.2 O CABOCLO DAS SETE ENCRUZILHADAS, “CRIADOR” E MENTOR DA

“Eu fundei a Umbanda”, proclamou Zélio de Moraes em 1972. No entanto os relatos do nascimento da Umbanda apresentam Zélio de Moraes incorporado, expressando a fala de uma entidade indígena, o Caboclo das Sete Encruzilhadas, que anunciava, na sessão mediúnica da noite de 15 de novembro de 1908, o surgimento de uma nova religião, que seria a Umbanda. Chico Xavier repetiu muitas vezes que não era o autor dos mais de quatrocentos livros que psicografou, nem eram dele as ideias e palavras daqueles livros e de quaisquer falas enquanto estivesse incorporado. Também Allan Kardec nunca se posicionou como o criador da Doutrina Espírita, que ele dizia ser dos espíritos, não dele, tanto que, para o mundo espírita kardecista, Allan Kardec é apenas o codificador do Espiritismo. Então, em nome da lógica do mediunismo, pela qual o médium apenas serve de veículo à entidade espiritual manifestante, Zélio de Moraes não pode ser considerado o criador da Umbanda. O criador seria então o Caboclo das Sete Encruzilhadas. Zélio de Moraes, na condição de médium, estava praticamente inativo, em termos de ideias, no processo todo – esse é o princípio do mediunismo, e que lhe garante fidedignidade. Por isso no título deste item usamos o termo “criador” para o Caboclo das Sete Encruzilhadas.

Alexandre Cumino, graduado em Ciências da Religião e sacerdote de Umbanda, em História da Umbanda: uma religião brasileira (2011), também comete o equívoco de considerar Zélio Fernandino de Morais – incorporado – como o Pai da Umbanda, tendo inaugurado a nova religião no dia 15 de novembro de 1908. A Umbanda é, segundo o autor, a “alternativa espiritual e religiosa para um novo tempo”: “a Umbanda nasceu naquele mundo moderno e busca soluções para sobreviver neste mundo pós-moderno, que possivelmente pode oferecer soluções

dentro de novos paradigmas” (2011, p. 30).

Cumino (2011, p. 122) registra ainda que pesquisas próximas de 1908 não identificaram a Umbanda entre os cultos afro-brasileiros:

Nina Rodrigues, que publicou seus estudos sobre o negro africano e o negro brasileiro, depois de vasta e abrangente pesquisa de campo, até a data de 1900, não identificou a Umbanda, apenas algumas de suas ascendências. [...] O jornalista João do Rio, em 1904, empreende pesquisa de campo minuciosa, identificando todas as religiões, seitas, expressões religiosas e/ou espiritualistas no Rio de Janeiro e não encontra a Umbanda.

Escreve Cumino que o relato do nascimento da Umbanda chegou até ele por meio de Ronaldo Linares, sacerdote de Umbanda que conviveu com Zélio de Moraes – “Zélio afirmava que Ronaldo é quem tornaria sua história conhecida”. Essa história só seria contada décadas depois. Em 1970 ninguém conhecia Zélio de Moraes em São Paulo e “alguns tinham ouvido falar, por alto, de um fundador da religião no Rio de Janeiro” (CUMINO, 2011, p. 123). A história vem narrada na revista Gira da Umbanda, editada por Átila Nunes Filho, ano 1, nº 1, 1972. A capa desse exemplar da revista traz a seguinte chamada: “Eu fundei a Umbanda!”; traz uma entrevista com Zélio de Moraes, que já estava grisalho – “essa entrevista é um dos poucos documentos autobiográficos do precursor da Umbanda no Brasil” (CUMINO, 2011, p. 124).

Janaína Azevedo Corral, em As sete linhas da umbanda (2010), considera a Umbanda lançada por Zélio de Moraes por meio do Caboclo das Sete Encruzilhadas como a Umbanda institucionalizada – portanto a que deve prevalecer sobre as demais. É a chamada Umbanda Tradicional. Ela detalha a noite histórica da incorporação de Zélio de Moraes pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas – fato narrado também por outros autores umbandistas. Ocorreu em uma sessão da Federação Espírita do Rio de Janeiro em 15 de novembro de 1908. Zélio de Moraes era de família católica e inclusive alguns tios seus eram padres. Ainda com 17 anos de idade, Zélio teve uma paralisia física da cintura para baixo, que os médicos não conseguiram curar e cuja causa desconheciam. Um dia ele disse para a família: “Amanhã estarei curado”. E de fato no dia seguinte ele se levantou do leito e andou normalmente, deixando todos perplexos.

Então um amigo da família sugeriu que o levassem a uma sessão da Federação Espírita. Nessa noite Zélio e outros médiuns presentes incorporaram

indígenas (caboclos) e escravos africanos, fato insólito e que chocou a todos pelo “atraso” espiritual dos manifestantes. Os dirigentes do trabalho queriam que Zélio se retirasse e também tentaram afastar os espíritos atrasados. Porém uma voz forte falou pelo aparelho de Zélio nos seguintes termos:

Se julgam atrasados estes espíritos dos pretos e dos índios, devo dizer que amanhã estarei em casa deste aparelho, para dar início a um culto em que esses pretos e esses índios poderão dar a sua mensagem, e, assim, cumprir a missão que o plano espiritual lhes confiou. Será uma religião que falará aos humildes, simbolizando a igualdade que deve existir entre todos os irmãos, encarnados e desencarnados. E, se querem saber o meu nome, que seja este: Caboclo das Sete Encruzilhadas, porque não haverá caminhos fechados para mim (CORRAL, 2010, p. 11).

Cumprindo o que prometera, na noite de 16 de novembro, na casa da família de Zélio de Moraes, manifestou-se pela mediunidade deste o Caboclo das Sete Encruzilhadas, diante de um público surpreso, que fez perguntas ao caboclo, obtendo respostas até em línguas estrangeiras. O caboclo anunciou o nome da nova religião, criando também, de imediato, a Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade (TENSP), “assim denominada ‘porque, assim como Maria acolhe o filho nos braços, também seriam acolhidos, como filhos, todos os que necessitassem de ajuda ou conforto’” (CORRAL, 2010, p. 13). “O espírito estabeleceu normas como a prática de caridade, cuja base se fundamentaria no Evangelho de Cristo, e seu nome "Allabanda", substituído por "Aumbanda", e posteriormente se popularizando como "Umbanda"119. E os trabalhos de Umbanda se iniciaram, sendo realizados na casa dos pais de Zélio de Moraes.

Corral escreve ainda (2010, p. 13):

Dez anos mais tarde, em 1918, por orientação do Caboclo das Sete encruzilhadas, Zélio viria a articular e fundar mais sete tendas de Umbanda. O Caboclo das Sete Encruzilhadas declarou que iniciava a segunda parte da sua missão: a criação de sete templos que seriam o núcleo a partir do qual se propagaria a religião de Umbanda. A tarefa ficou completa com a fundação da Tenda São Jerônimo (a Casa de Xangô), em 1935. Já em 1939, o Caboclo determinou que se fundasse uma federação, posteriormente denominada União Espírita de Umbanda do Brasil, visando a atuar como núcleo central doutrinário para congregar os templos umbandistas.

119

Disponível em http://www.centroespiritaurubatan.com.br/estudos/sete-linhas-de-umbanda.html. Acesso em 22/09/2016, às 16:38.

Com base nessa história, quase todos os livros da literatura umbandista se referem ao Caboclo das Sete Encruzilhadas e às sete linhas da Umbanda como um dos pontos centrais da religião. Considerado o primeiro escritor umbandista, Leal de Souza (2003) diz que o Caboclo das Sete Encruzilhadas, denominado popularmente de “Chefe, passou a dirigir as suas tendas com o auxílio de orixás. As tendas eram sociedades civis, tendo presidentes nomeados pelo caboclo, e ficando o presidente encarregado da responsabilidade legal e espiritual da tenda. Tanto na ordem material quanto na espiritual era mantida rigorosa hierarquia e organização. Leal de Souza (2003, p. 70) afirma:

Para o serviço de suas Tendas, o Caboclo das Sete Encruzilhadas tem às suas ordens Orixás e falanges de todas as linhas, incluindo-se a de Ogum, a falange marítima do Oriente. [...] Cercam o Caboclo das Sete Encruzilhadas muitos espíritos elevados que ele distribui, conforme a circunstância, pelas diversas Tendas, mas esses espíritos e mesmo os Orixás não diminuem nem assumem autoridade dos presidentes espiritual e material, e trabalham de acordo com eles. [...] Até o “Chefe”, quando baixa e incorpora em qualquer das Tendas, não se investe na direção dos trabalhos, mantendo o prestígio de seus delegados.

Cumino (2015, p. 135) traz mais orientações do Caboclo das Sete Encruzilhadas para a nova religião: “O Caboclo determinou que as sessões seriam diárias, das 20 às 22 horas, e o atendimento gratuito, obedecendo ao lema: “dai de graça o que de graça recebestes”. “O uniforme totalmente branco e sapato tênis”. Ele prossegue descrevendo o que contou Zélio de Moroes:

Desse dia em diante, já ao amanhecer, havia gente à porta, em busca de passes, cura e conselhos. Médiuns que não tinham a oportunidade de trabalhar espiritualmente, por só receberem entidades que se apresentavam como Caboclos e Pretos-Velhos, passaram a cooperar nos trabalhos. Outros, considerados portadores de doenças mentais desconhecidas, revelaram-se médiuns excepcionais, de incorporação e de transporte (CUMINO, 2015, p. 135).

Ainda seguindo relato de Zélio de Moraes, Cumino descreve o quadro de feitiçaria que havia na época, com trabalhos para o mal e sacrifício de aves e animais, com preços elevados. Eram trabalhos de magia negativa que o Caboclo das Sete Encruzilhadas viera combater, trazendo o Orixá Malê, que tinha o poder de destruir esses malefícios. “O Caboclo das Sete Encruzilhadas não adotava atabaques nem palmas para marcar o ritmo dos cânticos, nem objetos de adorno,

como capacetes, cocares, etc.” (CUMINO, 2015, p. 136). Mas permitia umas poucas guias no pescoço, como guias de preto velho e de caboclo. Ainda conforme Zélio de Morais, quando inquirido sobre sacrifício de animais, o Caboclo das Sete Encruzilhadas assim se manifestou, falando em Espiritismo: “Os meus guias nunca mandaram sacrificar animais, nem permitiriam que se cobrasse um centavo pelos trabalhos efetuados. No Espiritismo, não pode pensar em ganhar dinheiro; deve-se pensar em Deus e no preparo da vida futura” (CUMINO, 2015, p. 136).

Cumino transcreve um trecho de Zélio de Moraes em que ele fala sobre Exu, considerando-o um espírito trabalhador como os outros, e dando também o parecer do Caboclo das Sete Encruzilhadas sobre esse orixá:

O trabalho com os Exus requer muito cuidado. É fácil ao mau médium dar manifestação como Exu e ser, na realidade, um espírito atrasado, como acontece, também, na incorporação de Criança. Considero o Exu um espírito que foi despertado das trevas e, progredindo na escala evolutiva, trabalha em benefício dos necessitados. O Caboclo das Sete Encruzilhadas ensinava o que Exu é, como na polícia, o soldado. O chefe de polícia não prende o malfeitor; o delegado também não prende. Quem prende é o soldado que executa as ordens dos chefes. E o Exu é um espírito que se prontifica a fazer o bem, porque cada passo que dá em benefício de alguém é mais uma luz que adquire. Atrair o espírito atrasado que estiver obsedando e afastá-lo é um de seus trabalhos. E é assim que vai evoluindo. Torna-se, portanto, um auxiliar do Orixá (CUMINO, 2015, p. 137).

Prossegue Cumino com as informações sobre o Caboclo das Sete Encruzilhadas conforme relatos de Zélio de Moraes. O Caboclo das Sete Encruzilhadas dirigiu a Tenda Nossa Senhora da Piedade, a primeira tenda de Umbanda, durante mais de cinquenta anos e foram muitas realizações nesse período, como a criação de mais tendas, a formação de muitos médiuns renomados, o atendimento e cura de milhares de pessoas. O Caboclo das Sete Encruzilhadas falava constantemente em Jesus, no amor, na caridade, na fé. Segundo ele, era assim que a Umbanda iria progredir, sempre praticando o bem e a humildade.

Para Trindade (2014), esse foi de fato o nascimento da Umbanda, com data reconhecida: 15 de novembro de 1908, tanto que 15 de novembro é o Dia Nacional da Umbanda. O Caboclo das Sete Encruzilhadas teria justificado até o nome de “tenda”, considerando que termos como “igreja”, “templo”, “loja” dariam aspecto de superioridade, enquanto “tenda” daria aspecto de humildade. O ponto emblemático do Caboclo das Sete Encruzilhadas é uma flecha atravessando um coração. O Caboclo das Sete Encruzilhadas recebia orientações diretamente do

Astral para iniciar e conduzir os trabalhos da Umbanda. Foi seguindo ordens do Astral que ele criou as sete tendas mestras, ao longo dos anos, usando nomes de santos da Igreja Católica e com a palavra “espírita”; somente a última tenda não tem nome de santo católico. As tendas criadas foram: Tenda Espírita Nossa Senhora da Conceição (em 1918); Tenda Espírita São Pedro (em 1925); Tenda Espírita Nossa Senhora da Guia (em 1927); Tenda Espírita Santa Bárbara (em 1933); Tenda Espírita São Jorge (em 1935); Tenda Espírita São Jerônimo (em 1935); Tenda Espírita Oxalá (em 1939), a última das sete tendas mestras a ser criada. Trindade escreve (2014, p. 238): “Durante e após a criação das sete tendas, que permaneciam sob a direção do Caboclo das Sete Encruzilhadas, novas tendas foram surgindo no Rio de Janeiro e em outros Estados, favorecendo a rápida expansão da Umbanda”. Assim teria surgido a nova religião e “a consolidação ritualística da Umbanda a partir das macumbas cariocas” (TRINDADE, 2014, p. 142).

Uma figura que entrecruza a história do Caboclo das Sete Encruzilhadas é o padre jesuíta Gabriel Malagrida, italiano que veio para o Brasil no século XVIII através de Portugal e trabalhou catequisando índios, tendo realizado um trabalho deveras cristão e humano e decerto presenciado fenômenos de possessão entre os índios. Gabriel Malagrida foi executado na fogueira em 1761, condenado por feitiçaria. E teria encarnado no Caboclo das Sete Encruzilhadas. Assim pode afirmar Trindade (2014, p. 106): “Gabriel Malagrida teria a importante missão, no século XX, de reimplantar a Umbanda em solo brasileiro”.

Mas Trindade (2009) apresenta outra possibilidade de origem da Umbanda, um pouco anterior e também relacionada a caboclos. Ele escreve no item “O Caboclo Curuguçu e o surgimento do movimento umbandista” que Leal de Souza declarou em entrevista publicada no Jornal da Umbanda, em outubro de 1952:

A Linha Branca de Umbanda é realmente a Religião Nacional do Brasil, pois que, através de seus ritos, os espíritos ancestrais, os pais da raça, orientam e conduzem suas descendências. O precursor da Linha Branca foi o Caboclo Curuguçu, que trabalhou até o advento do Caboclo das Sete Encruzilhadas, que a organizou, isto é, que foi incumbido pelos guias superiores, que regem o nosso ciclo psíquico, de realizar na terra a concepção do Espaço (TRINDADE, 2009, p. 81).

Trindade diz que 15 de novembro de 1908 “é o marco oficial da fundação da Umbanda”. Porém fala que houve manifestações antes dessa data, atestadas por W.W. da Matta e Silva, e escreve ainda que “O vocábulo Umbanda, como bandeira

religiosa, não aparece antes de 1904”. E transcreve palavras de W. W. da Matta e Silva:

Em 1934 tivemos contatos com um médium de nome Olímpio de Melo, oriundo de Magé (um mulato alto, magro), que praticava “a linha de Santo de Umbanda” há mais de 30 anos (portanto, desde 1904 mais ou menos) e que trabalhava com um Caboclo dito como Ogum de Lei, com um “Preto- velho”, de nome Pai Fabrício, e com um exu de nome Rompe Mato” (TRINDADE, 2009, p. 81).

Matta e Silva se refere também ao depoimento de outro médium, o velho Nicanor, de 61 anos de idade, que dizia incorporar, desde os 16 anos (por volta, então, de 1890), o Caboclo Cobra Coral, em sessões no “saravá da linha branca de Umbanda, nas demandas e na caridade”. Trindade (2009, p. 82) apresenta ainda o ponto cantado do Caboclo Curuguçu, com a seguinte letra, que traz a legendária Aruanda (um espaço do plano espiritual reservado a espíritos trabalhadores da Umbanda), os orixás Ogum e Oxalá e a palavra “Umbanda”:

Eu vem lá da Aruanda

Trazendo a Luz, a Luz da Umbanda Eu vem com o clarim de Ogum Anunciar que a Umbanda vai chegar Eu é Caboclo de Umbanda

Eu venho do Cruzeiro do Sul Eu é Caboclo Curuguçu Meu grito já ecoou É a Umbanda que chegou Meu grito ecoou

Pai Oxalá quem me mandou Eu é Curuguçu

Da corrente de Ogum Que aqui chegou

No documento Download/Open (páginas 192-198)