• Nenhum resultado encontrado

INVESTIGANDO O DIZER DA CRISE: NARRATIVAS DO VIVIDO E SENTIDO

Este capítulo intenta apresentar a metodologia de pesquisa que orienta este trabalho. Assume-se como perspectiva metodológica a ótica fenomenológica existencial, que parte do questionamento do ser. Tal metodologia não assume procedimentos ou instrumentais definidos; deste modo, partindo-se da nova perspectiva epistemológica instaurada pela fenomenologia existencial, assume-se a relatividade da verdade, rompendo- se com certos dogmas epistemológicos do ocidente moderno (CRITELLI, 1996). Não é mais possível, como proposto por Platão, validar o conceito como o lugar da verdade de tudo o que é. Do mesmo modo, refuta-se o aforismo aristotélico de que cabe unicamente ao intelecto a função do conhecimento. A premissa cartesiana, que considera o intelecto como cogito, também perde validade mediante ao olhar fenomenológico, que assume que o conhecimento só se dá através da aceitação da fluidez da verdade. Se no cartesianismo se busca, através do método, a precisão do conceito, na fenomenologia o conhecimento se assenta na própria ontologia humana, tendo na angústia seu embasamento. Intencionalmente, os fundamentos norteadores desta pesquisa serão apresentados sempre em contraponto às premissas defendidas pelo que Heidegger (2001a, 2001b) chamou de metafísica, ponto de vista fundante da modernidade e de suas ciências técnicas. Este movimento especular entre as duas epistemologias parece interessante, pois explicita, de maneira inequívoca, as disparidades entre a perspectiva que orienta esta pesquisa e o Plantão Psicológico no HU, e aquela que orienta a práxis no hospital geral, devoto de um pensamento técnico-científico que prioriza o procedimento ante a existência. Tais diferenças contribuem para que os envolvidos no projeto experimentem, com maior intensidade, o desalojamento no contexto hospitalar, visto não contarem com artifícios tecnológicos para exercerem seu ofício. No entanto, tal vivência, aparentemente desfavorável, pode, na verdade, ser propícia para o surgimento de modos pertinentes para lidar com a crise.

Ao contrário de outros entes intramundanos que se encontram alojados no mundo, o homem, devido à fluidez de sua existência, encontra-se sempre no desalojamento. Esta condição de fluidez lhe apresenta, desde sempre, a possibilidade de encontrar-se com o

imponderável. Sendo assim, o seu modo particular de ser no mundo com os outros está intimamente ligado a como ele lida com esta fluidez e com a imponderabilidade do destino. Para tentar se precaver deste desalojamento e da inospitalidade do mundo, o homem tenta tecer tramas de sustentação existencial que buscam, mesmo que precariamente, amparar o seu modo particular de habitá-lo, diminuindo a inospitalidade deste. Esta trama de sentidos é aquilo que sustenta a cotidianidade, mantendo o homem na confortável decadência (HEIDEGGER, 2001a, 2001b). No entanto, esta trama é extremamente frágil e volátil, e o homem, à mercê da imponderabilidade do destino, se vê lançado, infinitas vezes, a situações de crise. Tais crises, como já dito anteriormente, conduzem o homem a uma situação onde os sentidos se ocultam. Ou seja, um acontecimento imponderável rompe a malha de sentidos e instala o homem em uma abertura, retirando-o do conforto tênue de sua cotidianidade. A esta situação de abertura Heidegger (2001a, 2001b) chamou de angústia50. Esta, impedindo a precipitação na decadência (HEIDEGGER, 2001a, 2001b), abre o homem para a liberdade. Deste modo, a crise, como aqui compreendida e temática central desta pesquisa, encontra-se no fundamento do conhecer. Sendo assim, é a crise dos envolvidos neste projeto de atenção psicológica no HU que permite o interrogar deste trabalho.

O processo epistemológico da modernidade, nitidamente assentado na racionalidade lógica, se relaciona com os fenômenos no intuito de entender, prever e, a partir disto, controlá-los. Tal metodologia tem o intuito de fugir da angústia, através da conceituação e da representação do mundo. Movimento histórico-social que vai se constituindo, a partir do Iluminismo, no propósito de criar um sujeito conhecedor ideal, ou seja, portador de uma subjetividade purificada e restrita à esfera da razão, impõe cisões na experiência subjetiva dos indivíduos (FIGUEIREDO, 1996) visando apaziguamento. A impossibilidade em sustentar as cisões propostas pelo método, no intuito de criar um sujeito epistêmico pleno, (FIGUEIREDO, 1996) e a crise da subjetividade privatizada que se consuma no final do século XIX (FIGUEIREDO&SANTI, 2003), abrem espaço para o surgimento de disciplinas que visam aplacar a angústia. Tais disciplinas, como a Psicologia e a Psiquiatria, tem o intuito de acolher e explicar aquilo que o método, não conseguindo dominar, tende a expurgar. Ou seja, tudo aquilo que ameaça a eficácia do método recebe uma ação de expurgo e abre-se a possibilidade do surgimento de novos modos de controle, que buscam diminuir a

50

inospitalidade do mundo. De certo modo, partindo de um olhar fenomenológico existencial, é possível considerar que a episteme da modernidade favorece a precipitação na decadência, visto medrar na angústia. Esta tentativa de apaziguamento se expressa no modo técnico através do qual o homem moderno ocidental habita o mundo (HEIDEGGER, 2001a, 2001b). Heidegger, na segunda fase de seu pensamento, desvela a vocação técnica do ocidente. Segundo ele, a técnica é uma orientação de conduta que é utilizada em todos os atos no ocidente moderno, subordinando tudo que faz parte do mundo a ela (CRITELLI, 2002). Esta extrema valorização da metodologia e da técnica conduz a uma desvalorização ética do homem que, consequentemente, dificulta o questionamento do sentido do ser. Questão esta que, segundo Heidegger (2001a, 2001b), foi esquecida na modernidade. Sendo assim, é possível considerar que o modo técnico de habitar o hospital favorece o tamponamento da angústia, permitindo, neste contexto, uma existência menos aflitiva, porém mais distante daquilo que é próprio do humano.

No entanto, por mais que a metafísica busque apaziguar a angústia, ela não consegue mudar a constituição ontológica do ser humano (CRITELLI, 1996). Ou seja, os métodos e técnicas não conseguem extirpar do homem aquilo que lhe é mais fundante. Ao contrário da perspectiva vigente na modernidade, a fenomenologia existencial parte da angústia e da insegurança do ser como fundamento do conhecimento. Enquanto a metafísica se baseia na conceituação, a fenomenologia existencial parte da existência, assumindo que é somente na angústia que o pensamento se abre para a reflexão. Por esta perspectiva, a fenomenologia existencial mostra-se como um modo particular de pensar, que é dado como condição ontológica a todo homem. Investigar seria colocar em andamento uma interrogação (CRITELLI, 1996). É o intuito de saber algo que determina os modos possíveis do interrogar, afastando-se de metodologias pré-definidas e do regramento do processo. Deste modo, aquilo que se quer compreender torna-se o fundamento do método fenomenológico existencial. Frente a qualquer fenômeno que se queira conhecer, formula-se a seguinte pergunta: o que é ou como é algo. Estes dois questionamentos podem ser aglutinados em uma única interrogação sobre o ser daquilo que se quer investigar. Ou seja, toda metodologia de pesquisa, por esta perspectiva, vai sendo encaminhada a partir do aclaramento do que se entende por ser. Todo interrogar sempre terá uma prévia

interpretação do ser. Deste modo, torna-se importante abordar como se compreende o ser em cada epistemologia.

Na metafísica prevalece a separação entre o ser e o ente. Neste caso, o ser de um determinado ente vai sempre coincidir com sua essência. Por esta perspectiva, o ser do ente torna-se patente na ideia que se tem deste ente. Esta ideia, ou conceito, é metodologicamente construído e permanente, ou seja, não se altera ao longo do tempo. Dizendo de outro modo, a metafísica busca a essência imutável de um ente. É esta essência que define o ser. O ser vai estar sempre subjacente a aquilo que aparece, e, por conta disto, se transforma em outro ente. Aristóteles, assim como Platão anteriormente, considerava que aquilo que aparece é sempre enganoso, pois é múltiplo, diverso e mutável e, sendo assim, degenerante (CRITELLI, 1996). Compreende-se, deste modo, que a metafísica baseia- se no princípio aristotélico que busca dar conta do caráter degenerante do ente. Tal princípio afirma que aquilo que faz com que algo seja ele mesmo é tão somente sua essência. Este caráter de perenidade do conceito, quando examinado à luz da substância dos entes, faz parte do conceito de patência. Talvez por isto, na relação médica com a doença, seja necessário resgatar a essência da manifestação patológica para que se possa, a partir dela, definir o projeto terapêutico. Este, necessariamente, se mostra pautado pela estrutura, supostamente imutável, da enfermidade, e, mediante a fluidez do estar doente, torna-se necessário à criação, ao longo do processo, de vários diagnósticos diferenciais que tentam abarcar a fluidez deste estado. No entanto, como a experiência aponta, invariavelmente não impede que o médico, ao não conseguir abranger a miríade de possibilidades do fenômeno, se veja lançado na angústia e na incerteza.

Por outro lado, na fenomenologia existencial, o ser que se torna patente através do aparecer dos entes é impermanente. Se na metafísica há uma coincidência entre o ser e a ideia, na fenomenologia existencial vai haver uma coincidência entre o ser e a aparência. Ou seja, na fenomenologia existencial o ser dos entes se mostra através do próprio ente. Ao contrário da metafísica, o ser não está por trás do que se manifesta, porém coincide com sua própria manifestação. Os entes estão sempre lançados no mundo e só podem ser apreendidos nesta condição. Deste modo, o ser não pertence à coisa como atributo próprio, como afirma a metafísica, porém deve ser compreendido a partir de uma trama de relações significativas que o precede e o sustenta (CRITELLI, 1996). Dito de outro modo, a

fenomenologia existencial busca o ser dos entes na trama existencial do ser-no-mundo com tudo e com todos, só podendo ser compreendido e apreendido neste horizonte existencial. Se o ser só pode ser revelado lançado no mundo e na teia de relações, este se torna patente sempre de forma múltipla, mutante, diversa e corruptível. Ou seja, o ser se mostra em um estar sendo inserido no fluxo existencial. Por conta desta fluidez do ser é que Heidegger, quando aborda a substância dos entes, faz uma crítica ao olhar metafísico, afirmando que o conceito aprisiona o ser (HEIDEGGER, 2001a, 2001b). Neste sentido, o ser está no como o ente aparece, sendo que a aparência não se relaciona com a face de fisicidade das coisas ou sua tangibilidade, o que, em uma perspectiva aristotélica, estaria bem próximo à ideia de acidentes de um ente (CRITELLI, 1996). O interrogar pelo ser, além da prévia interpretação deste, possui outros elementos ou dimensões que necessitam ser explicitados.

O ser só pode ser apreendido a partir de um lugar. Na metafísica o lugar do acontecimento do ser sempre será uma zona escura, distante da sua fisicidade e tangibilidade. Ou seja, por esta ótica, o lugar do acontecimento do ser está distante de sua concretude. Isto se explicita no Mito da Caverna, apresentado por Platão na obra A República51 no século IV A.C. Neste mito, se valendo de uma metáfora, Platão afirma que as verdades essenciais estão para além da Phýsis, ou seja, para além do mundo sensível. Sendo assim, o lugar do acontecimento do se à esta iaà fo aà daà ave a ,à dista teà doà u doà concreto. Por outro lado, na fenomenologia existencial o lugar do acontecimento do ser é o mesmo da manifestação concreta deste ente. Ao ente só é permitido ser no mundo, junto com tudo e com todos. Ou seja, o lugar do acontecimento do ser sempre vai ser o mundo, onde acontece a trama existencial do ser no mundo. Trazendo o explicitado para a pesquisa que aqui se pretende, só se torna possível interrogar o sentido do ser da crise se esta manifestação estiver alojada no mundo. Deste modo, a crise que se pretende investigar só pode ser questionada através de um instrumento que reflita a afetação que ocorre no aqui e agora do acontecimento que se dá nos corredores e unidades do HU.

Após ter abordado a prévia compreensão do ser e o lugar do seu acontecimento, cabe enfatizar o seu horizonte de explicitação. Como dito anteriormente, na metafísica o ser é a substância que está por trás do aparente e se torna patente no conceito, este, por sua

51 Diálogo que foi escrito na primeira pessoa e que tem como tema central a justiça. Platão vai se valer de uma

vez, de cunho essencial e imutável. Neste caso, o horizonte aonde irá se desdobrar e chegar ao pleno de apreensão é a precisão metodológica do conceito. Ou seja, só vai ser possível acessar a essência de um fenômeno através de uma metodologia com parâmetros investigativos previamente definidos e assentados em um regramento bem estabelecido. Pela perspectiva fenomenológica existencial, o horizonte de explicitação vai ser a existência humana, entendida como coexistência – ser no mundo com os outros. O modo de explicitar- se vai sempre ser impermanente, podendo alterar-se a cada instante de sua existência.

O ser só vai poder tornar-se patente no horizonte do tempo. Ou seja, é no interregno entre o nascer e o morrer que o ser se dá a conhecer. Deste modo, o ser é um apelo que convoca a ser compreendido em seu próprio destinar-se. O destinar-se, ou o sentido do ser, àa uiloà ueàaàfe o e ologiaàe iste ialà us a.àà“e doàassi ,àoàte oà se tido ,àpo àestaà perspectiva, pode ser compreendido como destino, rumo, ou direção do existir. Expressa movimento, fluidez, impermanência e, deste modo, afasta-se de seu significado coloquial de sig ifi aç o (CRITELLI, 1996). O questionamento do ser, assumido como tarefa pela fenomenologia existencial, refere-se a este sentido do ser, ou seja, o seu estar sendo, o seu caminho existencial. Se o ser do homem aparece na sua própria existência como sentido de seu próprio ser no mundo, é constitutivo deste ser evadir-se para o ocultamento. Ocultando- se, convoca o homem, como tarefa, a desocultá-lo. A este movimento dá-se o nome de circularidade fenomênica do ser (CRITELLI, 1996).

Se na metafísica se pretende a imutabilidade do ser, na fenomenologia existencial o ser só pode ser compreendido neste circuito inesgotável de ocultar-se e desocultar-se. A pesquisa de cunho fenomenológico existencial tem como tarefa interrogar o ente sem retirá- lo do seu movimento fenomênico, afastando-se de sua face objética. No cumprimento desta tarefa, como já dito, leva-se em conta o horizonte existencial, pois só ali a coisa pode ser aquilo que realmente é. Pode se dizer que aquilo que a coisa é não está nela mesma, porém o seu ser surge da relação indissociável entre o olhar de quem interroga e a coisa em si. Sendo assim, o movimento de manifestação do ente é constituído pelo outro, sendo sempre plural. Somente considerando que a coisa está lançada no mundo com tudo e com todos, incluindo o pesquisador e seu olhar tendencioso, que se torna possível ao todo se desocultar. Negando a imutabilidade pretendida pela metafísica, o olhar fenomenológico existencial, na sua tarefa de acompanhar a circularidade fenomênica do ser, só pode

considerar o ente como fenômeno, visto este não ser estático. Fenômeno, como apresenta Heidegger (2001a), é aquilo que se revela, ou o que se mostra em si mesmo. Co stitue àaà totalidade do que está à luz do dia ou se pode por à luz. [...] aàtotalidadeàdeàtudoàoà ueà à (HEIDEGGER, 2001a, p. 58). O ente, quando se encontra como fenômeno, pode mostrar-se por si mesmo de várias maneiras, dependendo da via e do modo de acesso. Pode, inclusive, se mostrar como aquilo que, em si mesmo, ele não é (HEIDEGGER, 2001a). Sendo a condição de coexistência, a temporalidade e a existência elementos fundantes para a manifestação e apreensão do ser, cabe, neste momento, o questionamento do que seja o real.

Para que algo seja real, não basta que esteja simplesmente lançado no mundo. Algo só se torna real quando é tirado do ocultamento por alguém. Ou seja, algo se torna real quando é desvelado pelo testemunho do homem. Cumprindo o movimento circular fenomênico, aquilo que é desvelado tende a se precipitar para o velamento. Este ocultamento não significa necessariamente algo desfavorável. O velamento é o que permite a possibilidade do homem encontrar-se em uma condição de bem estar. A existência seria insuportável se não fosse possível o ocultar daquilo que faz sofrer ou daquilo que ocupa

ossaà e te .à

Quando algo é desocultado, este é expresso e acolhido através da linguagem. A isto se intitula revelação. Nada chega realmente a ser de fato se não for recriado através da fala e de seu poder acolhedor e instituinte. O poeta, na experiência52 com a palavra, descobre o poder reinante desta. Ou seja, quando diz algo, deixa o presente vir em presença, desvelando-o (FIGUEIREDO, 1994). Nada pode subsistir na ausência da palavra. Qualquer modo de nomeação de algo, incluindo sons, gestos, grafismos e etc., é aqui considerado fala. É através da fala que o aparecer se conserva, abrindo a possibilidade de se cuidar do ente que se desoculta. Na nominação de algo sempre vai estar implícito o seu destinar. Quando, através da linguagem, algo é visto, ouvido e presenciado por alguém, ocorre o que Heidegger (2001a) denomina testemunho. Esta dimensão adquire importância para o trabalho em Plantão Psicológico, pois quando o cliente fala sobre o acontecimento, desocultando-o, torna-se possível, através do testemunho do psicólogo plantonista, cuidar dele de modo a conseguir um destinar-se mais pertinente.

52 Para Heidegger, fazer uma experiência não significa, como na metafísica, a obtenção de informações ou a

formulação de conceitos. Diz respeito a ser afetado e ser transformado. É permitir ser envolvido pela coisa e, a partir deste envolvimento, fazer-se outro.

O homem fala, necessariamente, com outros homens. Quando fala com alguém, confirma a existência e a identidade de tudo aquilo com que entrou em contato ou desocultou, além de explicitar sua própria existência. Não basta ao homem saber, conhecer ou ter contato com o que existe apartado de outros homens ou isoladamente. Ou seja, aquilo a que o homem se refere precisa ser visto e ouvido pelos outros. O que é desvelado/revelado pelo testemunho encontra-se à luz do mundo em sua manifestação e identidade. O movimento de desvelar/revelar/testemunhar é denominado por Heidegger (2001a) como advento.

Quando testemunhado, algo é referendado como verdadeiro por sua relevância pública. A este referendo público Heidegger (2001a) chamou de veracização. Aquilo que advém ao mundo, no seu trajeto de realização, tem com tarefa alcançar ser verdadeiro. Nada é verdade em si mesmo, necessitando ser veracizado a partir de um critério que se encontra fora dele mesmo. A veracização, deste modo, é o que autoriza algo a ser quem é ou como é. Aquilo que o público não veraciza, não considerando verdadeiro, perde a possibilidade de manifestar-se. Utilizar a relevância pública como critério de verdade abala princípios fundantes do processo epistemológico da modernidade. Nas sociedades ocidentais modernas, a ideia de verdade está associada ao conceito da identidade substancial do ente. Ou seja, algo só se torna verdadeiro se for universal, único, perene e absoluto. Considerar que algo é verdade pela relevância pública coloca em questão todas as teorias científicas e as metodologias investigativas e de intervenção no real que partem da premissa metafísica. Na modernidade, busca-se um critério de verdade e de ser que seja de natureza conceitual, afastando-se decididamente de perspectivas que partam da existência e da impermanência dos entes. Pelo olhar fenomenológico existencial, que considera que o conhecimento se funda na ontologia humana, não é mais pertinente a busca de um critério de verdade de fundamento conceitual. O critério de determinação da verdade na fenomenologia existencial é, no ôntico, a relevância pública, no entanto, ontologicamente, seu suporte é a coexistência. Ou seja, assenta-se na pluralidade, a condição do ser-aí é ser- com (HEIDEGGER, 2001a). Deste modo, a veracidade de algo, por esta perspectiva, não é alcançada pela precisão lógico-metodológica, porém por um movimento existencial que tem por fundamento a coexistência. A veracização de cunho existencial é o que abre o sentido do

ser (CRITELLI, 1996). Quando publicamente veracizado, torna-se autenticado (HEIDEGGER, 2001a).

A autenticação é a efetivação de algo em sua consistência, através da vivência afetiva e singular dos indivíduos (CRITELLI, 1996). Aquilo que foi desvelado, revelado, testemunhado e veracizado depende da autenticação para chegar a plena realização. A autenticação é obra do individuo, ao contrário da veracização que emana do público. Deste modo, é possível compreender que é somente o indivíduo que dá consistência às coisas. Se no testemunho e