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A ira é alguma coisa que você faz

David A Powlison

2. A ira é alguma coisa que você faz

A ira é alguma coisa que você FAZ com TODO o seu ser. Entender essa verdade corretamente é uma ajuda para

você enxergar através das meias verdades que a nossa cultura usa para enganar a respeito da ira. 22 Cada parte da natureza

humana está envolvida. A ira envolve o nosso corpo. Ela tem um componente fisiológico evidente: a face excitada, a onda de adrenalina, os músculos tensos, o estômago revirado, a tensão nervosa. Curiosamente, a maioria das palavras que as Escrituras usam para falar em ira comunicam por meio de metáforas físicas bem vívidas. As duas palavras principais para ira no Antigo Testamento descrevem “narinas” e “queimação”. Se você já viu uma pessoa realmente irada deve ter notado que suas narinas se inflam, a respiração fica audível e irregular, o sangue ultrapassa os capilares e chega à pele. Semelhantemente, as principais palavras do grego referentes à ira comunicam a noção de “vapor ou fumaça” e “inchaço”, refletindo a sensação de calor e o inchaço evidente da face e dos olhos. Também não é por acidente que muitas das nossas expressões idiomáticas para a ira provêm dos efeitos fisiológicos: “queimando de raiva”, “espumando”, “cuspindo fogo”, “explodindo”. O fato de a ira ser indubitavelmente fisiológica dá plausibilidade para as teorias médicas que a vêem como basicamente fisiológica e, portanto, algo a ser aliviado por meio de medicação. Com certeza, os nossos hormônios, a corrente sanguínea, os

músculos e a fisionomia registram a ira. Mas isso não é tudo. Biblicamente, a pessoa pratica a ira com TODO o seu ser. Quando alguém diz “Estou irado”, normalmente pensamos logo em emoção. A ira é uma “paixão”. As pessoas “sentem” a ira. Seu equilíbrio emocional fica “perturbado”. O nível de intensidade varia tremendamente. A escala Richter das emoções vai de uma irritação leve a uma fúria cega. E não é necessário ser bombástico e enfurecido para ter problema com a ira pecaminosa. A irritabilidade, o comentário mordaz, a auto-comiseração e a atitude crítica qualificam-se como ira. Curiosamente, algumas das formas mais ameaçadoras da ira parecem estar quase acima das emoções. É uma ira gelada ao invés de quente. Nunca esquecerei uma conversa que tive há algum tempo com uma garota de dezesseis anos. Ela parecia irada com seus pais. Quando lhe perguntei a esse respeito, ela me olhou com olhos frios, daqueles que se vêem em fotos de identificação policial, e respondeu com uma voz inalterada: “Não é ira, é vingança”. Uma escala variada de cores emocionais que expressam descontentamento e hostilidade pode ser encontrada no aconselhamento. Muitas pessoas querem pensar em ira apenas como uma emoção, e talvez como uma emoção neutra, concedida por Deus. No entanto, por que limitar a ira ao aspecto fisiológico ou emocional quando se trata claramente de algo mais?

A ira consiste também de pensa- mentos, palavras e quadros mentais, atitudes e julgamentos. Ela envolve a razão, imaginação, memória, consciência, todas as faculdades do homem interior. Mesmo que nenhuma palavra ou ação venha à tona, a pessoa irada pensa intensamente. “Você é estúpida. Isso não é justo. Não

22 C.S.Lewis fez o seguinte comentário: “A pior

mentira é a meia verdade”. J.L.Packer comentou de maneira semelhante: “A meia verdade com máscara de inteira verdade torna-se uma mentira completa” (extraído de Introductory Essay to John Owen’s

The Death of Death in the Death of Christ, reeditado

como Life by His Death!, London: Grace Publica- tions Trust, 1992). A ira, a hostilidade e a calúnia, por sinal, são mestras de tais meias verdades.

consigo acreditar que ela tenha feito isso para mim.” A câmera de vídeo interna repassa o clipe do que aconteceu ou pode preparar um roteiro e ensaiar o enredo imaginário de uma retribuição violenta. O inteiro sistema de justiça criminal – com exceção do advoga-do de defesa! – atua na corte da mente: investigador, promotor, testemunhas, juiz, júri, carcereiro. Essa atitude judicial está gravada na natureza da ira. É uma atitude de julgamento, condenação e desagrado por pessoas e coisas. As palavras e as ações são pensadas e planejadas, independentemente de serem ou não faladas ou executadas.

A ira acontece não apenas na mente, mas irrompe em comportamento. Conheci um casal que culminou uma discussão violenta com uma briga de revólver, ele no andar de cima, ela no térreo. Eu nunca fiz algo assim. Mas já comuniquei friamente minha irritação com minha esposa, enterrando meu nariz em uma revista depois que ela fez um comentário de que não gostei. A ira faz algumas coisas. Ela se expressa em palavras de acusação ou sarcasmo, palavrões, exageros, gestos, ataques, suspiros de desgosto, saídas do quarto, aumento do volume da voz, ameaças, olhares furiosos. Praticamos a ira com todo o nosso ser.

E o enredo complica-se. A ira, como todos os outros pecados, raramente fica sozinha. Ela costuma se entrelaçar em profundidade com outros problemas pessoais. A ira e o medo são parentes próximos. Presenciei certa vez a cena de uma mãe que gritava em fúria com seu filho pequeno que estava caído no chão chorando após um acidente no playground. Ela estava com medo e gritava ao invés de confortar seu filho machucado. Algumas teorias sobre a ira tentam mostrar que ela é secundária em relação

ao medo, mas isto está certamente errado. Quando as coisas não vão bem, todos os pecadores se sentem como um gato preso na garagem: lutar ou pular dependendo das circunstâncias, com uma mistura de medo e ira.

A ira é um agravante para outros problemas. O vício da bebida, por exemplo, pode estar ligado à ira em uma variedade de maneiras. Uma amiga da família disse certa vez a respeito de seu marido: “Ele bebe para manter a ira sob controle”. Quando ele não bebia, ficava cada vez mais hostil com ela, seu chefe e o mundo. O rancor o assombrava. Quando bebia, ficava manso e se sentia melhor. O álcool servia de remédio para conter sua raiva. Encontramos padrões diferentes. Uma mulher bebia para expressar sua ira con- tra os pais muito rígidos. Envergonhar a todos e acabar em uma sarjeta servia-lhe como uma forma de vingança.

A imoralidade sexual pode estar ligada à ira. Um homem solteiro falou sobre seu vício na pornografia como um “acesso de raiva contra Deus por não lhe ter dado uma esposa”. Muitos adultérios ocorrem como forma de vingança. O suicídio pode expressar algo semelhante: “Você me feriu de tal maneira que não tenho como me vingar, mas você certamente se sentirá muito mal depois que eu me matar e você tiver de conviver com aquilo que me fez”. A ira consigo mesmo também é um fenômeno comum: “Não posso acreditar que fiz algo tão estúpido. Se tão somente eu fosse mais bonita, rica, inteligente e brilhante nas conversas, mas sou feia, pobre e chata”. Recriminar, acusar ou até torturar a si mesmo (queimar-se com a ponta de um cigarro, bater a cabeça na parede e assim por diante) podem manifestar o desespero e a fúria contra si mesmo diante de um fracasso.

Até aqui, essencialmente, descreve- mos a ira pecaminosa como um problema pessoal. Mas a ira costuma ser um acontecimento interpessoal. A ira tem um

objeto, um alvo.23 Obviamente, a ira é uma

característica dos conflitos interpessoais onde quer que eles ocorram: casamentos, famílias, igrejas, locais de trabalho, vizinhança, nações. É uma estratégia interpessoal, um acontecimento social e político. A guerra inclui estratégias tanto ofensivas como defensivas. Como senhores feudais que tomam posição para o combate em seus castelos, as pessoas constroem muralhas de justiça-própria, medo e dor, e disparam setas de acusações maliciosas. Aqui a ira assume o papel militar como também o judicial. É a arma ideal para se obter o que se quer. A ira coage, intimida e manipula. Você pode aconselhar famílias que “pisam em ovos” ou “entram na toca do lobo sem armas” em relação a um membro explosivo.

Não é surpresa que a ira também se faça presente no relacionamento interpessoal mais fundamental: o relacionamento com Deus. Muitas pessoas estão iradas com Deus e O tratam como costumam tratar outras pessoas — desta observação resulta um longo caminho a percorrer no aconselhamento. Os israelitas murmuravam indiscriminada-mente, acusando tanto Deus como Moisés. Freqüentemente, as pessoas atiram con- tra Deus zombarias, imprecações, palavras amargas e declarações falsas. Quando o

Filho de Deus esteve aqui na terra, muitos queriam agredi-lo.

São freqüentes as oportunidades de aconselhar pessoas que vêem Deus através das lentes acusatórias da ira, como se Ele fosse, na verdade, o diabo ou um desmancha prazeres cuja natureza é maliciosa, legalista, cruel, distante e desprovida de sentimentos. Isso não é surpresa. Se eu acreditasse que Deus existe para me dar o que quero, eu ficaria inflamado de ira caso Ele não desse. De fato, considerando sob o ponto de vista do que motiva o coração humano, toda ira pecaminosa faz referência imediata a Deus. Se eu amaldiçôo o calor e a umidade, estou injuriando Deus de três maneiras. Primeiro, eu O coloco de lado como a fonte da vida, agindo como se Ele não existisse. Segundo, ajo como se eu fosse Deus, elevando meu desejo de conforto a uma posição suprema no meu universo. Terceiro, murmuro contra Ele, criticando implicitamente o verdadeiro Autor do “mau” tempo que me desgosta.

A ira inclui os aspectos físico, emocional, mental e comportamental. Ela se entrelaça com muitos outros problemas. É decididamente interpessoal, com respeito tanto a Deus como às outras pessoas. Resumindo, a ira é algo que você FAZ com TODO o seu ser. Mas de onde vem a ira?