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Játékok – György Kurtág

No documento Processos criativos no ensino de piano (páginas 35-39)

Verbete biográfico: György Kurtág é compositor, pianista e professor de piano.

Nasceu em 1926, na cidade de Lugoj, na Romênia, e, hoje, aos 87 anos, continua em atividade. Com sua esposa, a também pianista Marta Kurtág, tem realizado concertos e gravado excertos dos 8 volumes do Játékok (GOUVEIA, 2010, p. 14). Já recebeu vários prêmios por suas composições.

O pianista e professor Horácio Gouveia aponta a história pessoal de Kurtág em relação ao piano como disparadora de sua “empreitada pedagógica e composicional”. Kurtág iniciou seus estudos pianísticos aos cinco anos e desistiu aos sete pois “era muito chato ter de pensar nos dedilhados, nos ritmos e permanecer sempre no mesmo registro do instrumento” 11

(KURTÁG apud ALBÈRA et al., 199512 apud GOUVEIA, 2010, p. 15). A ludicidade presente

no Játékok foi uma busca do próprio compositor, ainda segundo Gouveia:

Talvez essa seja a “viagem autobiográfica ou biográfica de cada um de nós” a que ele se refere13: a peregrinação ao lado infantil que se perdeu e que ao

longo de toda nossa vida devemos tentar recuperar. Aliás, no comovente texto em homenagem ao amigo falecido Ligeti, Kurtág cita que observar as criações das fantasias de Lukas, filho de seu amigo, gerou uma série de ideias que empregou nos Jogos. Talvez influenciado por seu pai György, que quando criança escrevera sobre um mundo imaginário (que chamou de Kylwryia) – desenhando seus mapas e descrevendo seu idioma, gramáticas etc. –, o menino Lukas Ligeti também produziu a “enciclopédia de seu planeta inventado, com exemplos de sua história científica, literatura, artes e música”.14 Os exemplos musicais dessa enciclopédia, afirma Kurtág, foram um dos pontos de partida para seus Jogos (GOUVEIA, 2010, p. 17).

Kurtág se graduou na Academia Liszt, em Budapeste, onde, mais tarde, lecionou piano e música de câmara, de 1967 a 1993. Os húngaros Béla Bartók e Kodály foram suas primeiras influências, embora mais tarde tenha sido reconhecido como herdeiro do expressionismo de Webern, por empregar em suas composições uma técnica serial e ter preferência por miniaturas (CUMMINGS, 1995, p. 349).

       

11 “[...] parce que c’était três ennuyeux de devoir penser aux doigtés, aux rythmes et de resteur toujours dans le

même registre” (KURTÁG apud ALBÈRA et al., 1995).

12 ALBÈRA, Philippe et al. György Kurtág: entretiens, textes, écrits sur son oeuvre. Genève: Éditions

Contrechamps, 1995, p. 22.

13 KURTÁG apud ALBÈRA, Philippe et al. Op. cit., p. 21: “[...] voyage autobiographique ou le voyage

biographique de chacun de nous” [nota do original].

14 KURTÁG apud VARGA, Bálint András (ed.). Gyorgy Kurtág: Three interviews and Ligeti homeages.

Rochester: University of Rochester Press, 2009, p. 91: “[...] his son Lukas spent years writing encyclopedia of his invented planet, with examples of scientific history, literature, fine arts and music” [nota do original].

Em 1957 e 1958, época de grande repressão do regime comunista húngaro, que proibira composições de Schoenberg, Stravinsky e mesmo algumas de Bartók, morou em Paris, onde estudou com Olivier Messiaen, Darius Milhaud e Max Deutsch. Mesmo curta, sua estadia na cidade francesa foi determinante para sua vida pessoal e profissional como compositor. Durante esse tempo, tratou-se com a terapeuta húngara Marianne Stein para tentar curar uma séria depressão que, em suas próprias palavras, foi um “desmoronamento de todo um mundo. Não apenas do mundo exterior, mas também do meu universo interior” (KURTÁG apud GOUVEIA, 2010, p. 18). Ainda em Paris, compôs seu quarteto de cordas, que, dedicado a Marianne Stein e denominado de Opus 1, marcou uma nova fase de sua vida.

Outra importante influência sobre sua carreira composicional foi seu contato com a música eletrônica alemã do Estúdio WDR, em Colônia.

Em Budapeste, dentre diversas atividades como compositor e pianista, Kurtág começou a escrever Játékok, publicando os primeiros volumes em 1979. Segundo Gouveia (2010, p. 14), o pianista francês Claude Helffer considera a composição uma importante referência entre as obras pianísticas do século XX.

Játékok

Játékok é uma coleção de 8 livros para piano, pouco conhecida no Brasil. Sua abordagem é bastante diferenciada, apresentando peças que vão desde um nível elementar até um muito avançado em termos de interpretação pianística.

As crianças são o ponto de partida da coleção e “a questão fundamental da obra não é ‘ensinar piano’, mas desenvolver ludicamente as possibilidades criativas do intérprete” (GOUVEIA, 2010, p. 17). Nas palavras do próprio compositor:

A ideia para a composição de jogos foi proporcionada pela criança que brinca esquecida de si mesma. A criança, para qual o instrumento ainda é um brinquedo. Ela o experimenta de todas as formas, o acaricia, por vezes o maltrata. A criança parece sobrepor sons desconexos e, quando isto parece haver despertado seu instinto musical, ela se volta conscientemente para experimentações, pesquisando e repetindo certas harmonias criadas por acaso. Dessa maneira, esta série não representa, de forma alguma, uma escola de piano, nem uma coletânea desarticulada de peças. Ela é uma possibilidade para a experimentação e não um método para piano (KURTÁG, 1979, prefácio apud GOUVEIA, 2010, p. 79).

Nesse mesmo prefácio, Kurtág expõe os princípios norteadores de toda a série (“O piano como brinquedo”, “A alegria do movimento” e a “Possibilidade de experimentar”), reveladores de seu diferencial: essa concepção, em que experimentação, ludicidade, relação corporal com o fazer musical e aproximação da música contemporânea compõem a fundamentação dos livros.

O próprio nome, que significa “jogos” em húngaro, apresenta o piano como um brinquedo com inúmeras possibilidades de experimentação, demonstrando uma proposta bem próxima do pensamento pedagógico-musical contemporâneo, em que a construção do conhecimento pelo próprio aluno e a experimentação sonora são estimuladas, e o espaço da criação, garantido. A pianista e pesquisadora Helena Cabezas declara que com o Játékok as crianças percebem e interiorizam os fenômenos musicais de forma bastante natural, passando

pelas dimensões sensorial e afetiva, sendo essa conexão entre aprendizagem e ludicidade o que “rompe com o sistema de ensino tradicional que parte da leitura da partitura e da técnica digital como únicos desencadeantes do universo pianístico e musical” (CABEZAS, 2012, p. 2). A mesma pianista aprofunda as possibilidades de exploração propostas no Játékok:

As peças do Játékok são projetadas com o intuito de ser a base para uma experimentação em diversas vertentes: a exploração gestual do corpo, a exploração topográfica do teclado, a exploração musical de sonoridades distintas (clusters, glissandos...) e a exploração de novas formas de notação musical são alguns dos exemplos. Esta diversidade de “possibilidades de experimentação” deriva principalmente da notação não determinada criada por Kurtág especificamente para o Játékok. Justamente essa indeterminação oferece ao aluno a oportunidade de “completar” a peça, isto é, de determinar ele mesmo alturas e durações de notas e pausas. Portanto, os parâmetros não detalhados conformam um estímulo para a cocriação junto com o aluno, ou seja, um impulso para sua criatividade musical (CABEZAS, 2012, p. 5).

É importante ressaltar alguns dos conteúdos musicais e técnicos que apontam essa concepção diferenciada das peças de Kurtág: linguagem pianística contemporânea; notação musical não tradicional; imprecisão métrica, valorização do gesto como movimento produtor expressivo de sonoridades; material musical reduzido com potencialidade expressiva; uso de registros sonoros mais do que contornos melódicos; exploração de timbres diversos, assim como aumento da gama de intensidade e de articulações, entre outros. Cabezas ([s.d.], p. 6) cita ainda o caráter performático, presente em “algumas peças que propõem exercícios de encenação”, procurando “capturar a expressividade da própria teatralização de determinados estados anímicos ou ações [...] para depois conferi-los na execução musical”.

É conclusivo que Játékok pode enriquecer muito o processo criativo de ensino e aprendizagem de piano, objetivo da reflexão dessa pesquisa, além de estimular a aproximação do aluno iniciante com a música do século XX. Creio estar validada a colocação de Cabezas (2012, p. 7) de que a reunião de importantes aspectos como “a ludicidade, o corpo e a criatividade, num profuso e rico material pedagógico para piano, coloca-o num diferenciado território da educação pianístico-musical atual”.

No documento Processos criativos no ensino de piano (páginas 35-39)