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9. A controvérsia Jansenista

9.2. Jansenismo em Portugal

O jansenismo teológico pode assim resumir-se em três princípios: não é possível observar os mandamentos de Deus sem a graça; o homem não pode opor-se à graça, porque esta é irresistível; Cristo não morreu por todos. Mas será que foi esta a dimensão do jansenismo que teve mais impacto em Portugal no século XVIII?

293 Cf. Ibidem, p. 262. 294 Cf. Ibidem, p. 262.

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Alguns autores defendem que em terras lusitanas não existiu propriamente um jansenismo teológico296, no entanto, não se podem negar nem os reflexos na literatura sagrada ou profana, nem que o filojansenismo foi uma realidade com especial incidência no governo pombalino, quer correspondesse ou não a uma assumida adesão a enunciados teológicos definidores da graça eficaz e das suas incidências no modo de encarar o mundo e viver a vida. Lembremo-nos, em primeiro lugar, como expressão disto, a obra do Padre António Pereira de Figueiredo. Ele foi o mentor da política eclesial pombalina e pôs ao serviço do Ministro de D. José a sua enorme erudição. Acerca dele, Zília Osório de Castro refere que como regalista defendeu a especificidade das esferas de jurisdição papal e régia; como «jansenista» assumiu os princípios básicos do episcopalismo, do conciliarismo e do papado, invocando os ensinamentos de Cristo e dos Padres da Igreja, assim como a prática da Igreja primitiva, e os usos e costumes de Portugal, e denunciando os erros que os haviam obscurecido. O seu discurso «servia» a quem lutava pela reforma da Igreja e a quem ansiava pela afirmação do Estado, isto é, servia a reformistas e a regalistas. Por isso, as suas principais obras neste âmbito, a Doctrina veteris ecclesiae [1765], a Tentativa teológica [1766], a Demonstração teológica [1768] e, por fim, a Análise da profissão de fé do Santo Padre Pio VI [1792], publicada já no reinado de D. Maria I, foram aplaudidas nos círculos jansenistas e filojansenistas europeus297.

Importa, também, ter em atenção as estreitas relações entre Pombal e o Cardeal Bottari, chefe dos jansenistas romanos, sedeados no Palácio Corsino e agrupados no Círculo Archetto. Conhecidas pela correspondência enviada por Niccolò Pagliarini ao Cardeal Bottari, dando-lhe conta do que se passava em Portugal, nomeadamente da redação da Dedução Chronologica e

296 Cf. Z., OSÓRIO DE CASTRO “Jansenismo”, in C., MOREIRA DE AZEVEDO (org.), Dicionário de História Religiosa de Portugal, Círculo de Leitores, Mem Martins, 2001, p. 9. Tudo parece indicar que em Portugal a questão fulcral do Jansenismo nunca foi abordada ex professo, o que levou Silva Dias, Jacques Marcadé e Pascoal Knob a negar a existência de Jansenismo teológico em terras portuguesas. Para que isso fosse possível no contexto desta abordagem, ter-se-ia de admitir ser credível a existência de um movimento com o impacto do Jansenismo sem princípios doutrinários identificadores; ou aceitar a sua eventual possibilidade, fazendo assentar a fundamentação do reformismo eclesial e eclesiástico detetado no regalismo e no galicanismo em correntes doutrinárias não identificadas nem unificadas, o que faria pensar ou em distorção ou em inconsequência.

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Analytica que ele terá acompanhado a par e passo, da simpatia que o Ministro lhe dispensava, e do repúdio comum do domínio dos jesuítas e das doutrinas que divulgavam no âmbito do político, do religioso e do político-religioso. Tornam-se, assim, evidentes os elos de ligação deste último com círculos jansenistas italianos, conferindo ao antijesuítismo pombalino uma tonalidade ideológica bem definida, e tornando-o parte integrante de um confronto sem tréguas298.

Seria difícil admitir que Portugal tivesse passado à margem do jansenismo numa época em que as ideias circulavam com relativa facilidade por toda a Europa. Retomando o pensamento de Cândido dos Santos, «se adotarmos a divisão entre jansenismo teológico e jansenismo canónico-jurisdicional, e se as características deste último forem a reação antijesuítica, a reação antiescolástica e anticúria romana, não se pode duvidar de que esse tipo de jansenismo vigorou entre nós»299. Para este autor só depois da expulsão dos jesuítas é que podemos falar de jansenismo em Portugal. Sem a Companhia de Jesus o papado perdeu em Portugal a barragem que sustinha o caudal de ideias regalistas, episcopalistas e jansenistas. A expulsão do Núncio e o corte de relações com Roma mais não foram que a consumação da expulsão. A partir de 1759 foi possível a entrada no país da literatura jansenista e galicana. Obras de Fleury, Gerbert, Gerson, Quesnel, Bellegarde, Febrónio, Dupin, Van Espen e outros passaram a figurar nas bibliotecas portuguesas.

Foi neste período que o jansenista Gabriel Duparc Bellegarde, de Utreque, se dirigiu aos «Ministros de Sua Majestade», advertindo-os para o cuidado a ter com os professores de Teologia. Não bastava expulsar os jesuítas, era necessário que os novos mestres abandonassem as máximas ultramontanas.

Existe correspondência deste período entre vários jansenistas e portugueses que ocuparam cargos relevantes300.

298 Cf. Ibidem, p. 9.

299 C., SANTOS, “António Pereira de Figueiredo, Pombal e a Aufklärung”, Revista de História das Ideias 4 (1982-

1983), p. 187.

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Neste âmbito, em 1763, foi elaborada nos meios jansenistas ligados à Igreja de Utreque, uma «memória» acerca dos estudos eclesiásticos do Reino de Portugal. Trata-se de um manuscrito de vinte e cinco páginas que defende os pontos de vista jansenistas. O autor terá sido Bellegarde. Esta «memória» dirige-se aos Ministros de Sua Majestade Fidelíssima. Os Ministros portugueses em 1763 eram Sebastião José de Carvalho e Melo na Secretaria de Estado do Reino; D. Luís da Cunha Manuel na Secretaria da Guerra e Estrangeiros e Tomé da Costa Corte Real na Secretaria de Estado da Marinha e Ultramar.

Na referida «memória» se comentam e aplaudem as medidas que foram tomadas no âmbito do ensino em Portugal depois da expulsão dos jesuítas. Mas a preocupação demonstrada é pelos estudos teológicos. Algumas teses defendidas no colégio dos oratorianos em Lisboa deixaram alarmados os meios jansenistas. Como nos lugares eminentes não se pode acompanhar tudo o que acontece detalhadamente, esta «memória» pretende que os Ministros portugueses atendam a alguns dos seus anseios.

Surpreende a confiança com que este jansenista se dirige aos Ministros de Portugal, mas o momento era propício. Portugal estava de relações cortadas com Roma. Ademais, era conhecida a estima de Pombal pelas obras da escola de Port-Royal atestada numa carta de Pereira de Figueiredo a Frei Manuel do Cenáculo 14 de fevereiro de 1776: «Eu sei a estimação que o Senhor Marquês e V. Ex.ª fizeram sempre das Obras de toda a Escola de Port-Royal […]»301.

A «estima» aqui aludida deve referir-se sobretudo à teologia política que reprovava a hipótese de contrato social e que afirmava que o poder do príncipe vinha diretamente de Deus, numa segunda fase esta escola defendeu que o príncipe não só deveria proporcionar as vias da salvação, mas também suscitar as condições de felicidade terrena. Por detrás desta valorização das realidades terrestres há também uma teologia da valorização das realidades terrenas302.

301 C., SANTOS, “António Pereira de Figueiredo, Pombal e a Aufklärung”, Revista de História das Ideias 4 (1982-

1983), p. 196.

302 Cf. B., PLONGERON, Théologie et Politique au Siècle des Lumières (1770-1820), Librairie Droz, Genève,

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Pensamos que a referida valorização mais não é do que uma manifestação do natural processo de secularização em curso que mencionaremos mais adiante.

É relevante referir que a certa altura as relações de Carvalho e Melo com os oratorianos se deterioraram significativamente, desagradado este pelo parecer negativo de dois dos seus religiosos acerca de uma obra de teor regalista de um desembargador do Paço. O Ministro ficou de tal modo exasperado que a perseguição que moveu à Congregação do Oratório a levou à beira da expulsão303.

A referida «memória» atacava as doutrinas expressas nas teses do Oratório por serem espelho de ideias jesuíticas. Mais tarde as preocupações de Bellegarde apaziguaram-se porque as obras do oratoriano Pereira de Figueiredo, opositor dos jesuítas, começaram a denotar a nova tendência dos estudos teológicos em Portugal.

Cândido dos Santos considera que «os ventos soprados de Utrecht se tinham feito sentir em Portugal: as ideias jansenistas e regalistas avançaram com a bênção de Pombal e a colaboração prestimosa de Pereira de Figueiredo» e conclui «se Pombal não leu esta “memória”, a doutrina teológica que passou a vigorar identifica-se plenamente com ela»304. Bellegarde tinha, de facto, motivos para se dirigir com confiança aos Ministros de Sua Majestade.

Quanto ao antijesuítismo. É sabido que um dos princípios do despotismo esclarecido era fazer vergar diante do monarca todos os grupos e corpos sociais e por isso não é de estranhar que os jesuítas que detinham em Portugal um poder e influência política, económica e espiritual impares, fossem um corpo suspeito para o poder. Os jansenistas olhavam para eles como perigosos perversores da religião cristã, da Igreja e da moral. O único fito dos jesuítas seria derrubar a verdadeira religião e assim, através da manipulação, tomarem para si todo o poder. Foi com este objetivo de tudo perverter que os jesuítas teriam envenenado a Universidade de

303 Cf. C., SANTOS, Jansenismo em Portugal, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto, 2007, p. 17. 304 Ibidem, pp. 18-21.

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Coimbra com a Lógica Peripatética da Ética e Metafisica de Aristóteles. Os Estatutos de 1598, por eles fabricados, teriam como fim destruir a moral evangélica, a piedade cristã e os dogmas da Igreja.

A fonte destas atrocidades seria a adoção da Ética de Aristóteles. Essa acusação vem expressa nos Estatutos de 1772 apresentando os «Professores Escolásticos e Casuístas modernos» como corruptores. O objetivo da Companhia de Jesus era corromper o universo para assim o dominar. Uma vez que os jesuítas são identificados com a escolástica surgirá também uma reação antiescolástica que vem permeada de jansenismo particularmente na obra de Pereira de Figueiredo305.

Vimos como se desenvolveu a polémica jansenista e como esta estava articulada com máximas regalistas e episcopalistas, principalmente na obra de Pereira de Figueiredo. Agora iremos olhar para a possível relação entre esta polémica e um movimento mais vasto que se insinuou nas instituições e na vida cristã de acordo com os condicionalismos e os temperamentos nacionais, a saber, o catolicismo iluminado306.