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10. O Iluminismo Católico

10.2. O Iluminismo Católico em Portugal

O iluminismo procurou harmonizar-se com as tradições cristãs quer nos países protestantes quer na Áustria, Espanha e Itália. O iluminismo que chegou a Portugal depende sobretudo do iluminismo italiano. Este distingue-se pela sua fidelidade católica e pelo seu carácter mais histórico. Silva Dias afirma que os preceitos básicos deste iluminismo são a oposição ao poderio eclesiástico, à mentalidade jesuítico-escolástica e à estrutura feudalista- inquisitorial da sociedade e da administração pública309.

O iluminismo tinha começado a penetrar os círculos intelectuais portugueses durante o reinado de D. João V e inundou-os no reinado de D. José. Este movimento, ao chegar a Portugal deparou-se com um catolicismo enraizado que lhe deu um cunho próprio, como já afirmámos, este movimento adotou sempre características diversas conforme o país. Ao catolicismo daqueles que se cruzaram ou inseriram neste movimento chama-se, geralmente, catolicismo iluminado ou reformador. É portanto um movimento de renovação intraeclesial310. Bernard Plongeron considera este catolicismo mais prático do que teórico, mais um estado mental ou

309 Cf. Ibidem, p. 238.

310 Cf. S., MILLER, Portugal and Rome c. 1740-1830: An aspect of the catholic Enlightenmemt, Università

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modo de pensar do que um movimento organizado, ou seja, não era um movimento concreto no qual alguém se inseria ou alistava, era antes um modo de estar e de se relacionar com a Igreja, uma mundividência que longe de ser hostil à Igreja, desejava a sua renovação. Esta deveria deixar o esquema piramidal tridentino em direção a uma maior autonomia episcopal que respeitasse as Igrejas particulares em matérias disciplinares e litúrgicas. Esta Igreja deveria estar ao serviço do povo cristão mostrando assim a sua vitalidade à semelhança da Igreja primitiva. Esta Igreja devia esfoçar-se por ser inteligível a todos para promover uma cultura popular em favor da massa dos fiéis. Além disso estes católicos desconfiavam da linguagem e experiência mística e miraculista. Defendiam a tolerância em relação às outras confissões cristãs sendo que tal não significava liberdade religiosa311.

Os católicos do iluminismo convergiam com os filósofos do seu tempo em alguns pontos de vista, mas rejeitavam algumas das suas conclusões racionalistas. Para Plongeron existiam três pontos que estes católicos não abdicavam: a fé no Deus Trinitário, no Deus Incarnado em Jesus Cristo, Autor da Revelação e o dispensador da mensagem evangélica, e finalmente o seu anúncio de uma Igreja hierárquica312.

Este catolicismo era uma mistura eclética de regalismo, galicanismo, febronianismo e jansenismo, que ganhava uma forma particular de acordo com o lugar onde se instalava.

Na primeira metade do século XVIII, o iluminismo católico tem raízes no jansenismo tardio e no magistério lockio-newtoniano, bem como na cientificação do saber histórico. A estes ingredientes, juntou-se a influência de Muratori. Nesta altura estava bem aceso o anseio de reformas eclesiais, de formulação de um catolicismo «razoável» e de uma prática «polida» do culto dos santos.

Os intelectuais, que se enquadraram neste movimento, não estavam voltados para discussões teológicas ou metafísicas, mas para a projeção do catolicismo em termos de

311 Cf. B., PLONGERON, “Recherches sur l’«Aufklärung» catholique en Europe occidentale (1770-1830), Revue d’histoire moderne et comtemporaine 16 (1969), pp. 592-601.

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racionalidade e de vivencialidade. O seu problema era o da vida civil, quer ao nível do que e como se pensa, quer ao nível do que se pratica. As suas propostas filosóficas ou sociopolíticas eram algo que se traduzia mais em cultura e em estruturas da sociedade do que em religião enquanto tal.

O iluminismo católico tende a contrapor à tradição medieval e moderna a tradição antiga ou patrística. É um movimento reformador que nasceu dentro da Igreja de objetivos generosos, a par de um ou outro excesso condenável313.

José Silva Dias adverte que a expressão «iluminismo católico» talvez não seja exata. Rigorosamente talvez não tenha existido um iluminismo católico, mas antes católicos que se situaram nos parâmetros das Luzes. Por outro lado, o iluminismo católico, ou essa situação de católicos na área das Luzes, visto na sua dinâmica, é inseparável da ideia de reformas no interior da Igreja, assim como na sociedade tal como Trento desejava. Há dimensões ideológicas, sociais e políticas que não se podem separar dele sem o irracionalizar314.

Sobre esta possibilidade de se falar de um iluminismo católico também se interroga Cândido dos Santos: «Não haverá apenas um iluminismo, o da conhecida definição de Kant, aquele que proclama a necessidade de o homem deixar a “menoridade” e passar a utilizar o seu próprio entendimento, a sua razão, esse sol radioso que varre as trevas da ignorância e da superstição?»315.

Este autor afirma que o iluminismo foi um movimento de emancipação que teve variadas expressões, segundo os diferentes contextos nacionais. Explica ainda como no princípio do século XX, os historiadores Sebastian Merkle e Henrich Schors reabilitaram o josefismo austríaco e a figura do próprio imperador José II, na medida em que integraram sua

313 Cf. C., SANTOS, “Pombal e o Iluminismo”, Humanística e Teologia 3 (1982), p. 311.

314 J., SILVA DIAS, Pombalismo e Projecto Político, Centro de História e Cultura da Universidade Nova de

Lisboa, Lisboa, 1984, p. 218.

315 C., SANTOS, Padre António Pereira de Figueiredo: Erudição e Polémica na 2ª Metade do Século XVIII, Roma

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ação governativa no movimento de reforma da Igreja e da vida religiosa a que chamaram iluminismo católico.

Sebastien Merkle terá sido quem pela primeira vez falou de catolicismo iluminado. Este movimento ter-se-ia caracterizado, nos territórios germânicos do século XVIII, «pela busca em muitos domínios da reforma tridentina [cultura bíblica, preocupação da catequese] e por traços novos resultantes da evolução do século XVII e XVIII: interesse pela liturgia, desprezo pelas formas populares de devoção, sentido histórico, espírito crítico, gosto pela história da Igreja, oposição ao escolasticismo, austeridade moral e recusa do probabilismo; predileção pelas línguas vulgares, crítica do estilo barroco da pregação, atitude compreensiva relativamente aos protestantes»316.

Um movimento com características semelhantes a estas também se fez sentir em Portugal no século XVIII e traduziu-se inclusive em movimentos de espiritualidade e de reformas mais ou menos bem sucedidos. Deste modo, não é de impressionar a frequência com que surge nos escritos de religiosos e eclesiásticos os termos «luzes» e «iluminado» contrapostos a «trevas» que eram as trevas da ignorância317.

O repto de Trento à reforma da Igreja é ainda bastante sonante neste período, aliás, é o apelo de sempre à conversão dos cristãos. A reforma queria-se primeiramente na cabeça da Igreja, na sua hierarquia, e daí se estenderia a todo o corpo. Muitas das preocupações expressas pelo Concílio de Trento são, como vimos, as mesmas que vão ser expressas pelos católicos do iluminismo. Existe um desejo de regressar às fontes, à prática da Igreja primitiva. E ao fazê-lo constata-se que, em algumas dimensões, a Igreja daquele período se tinha distanciado daquela das origens do cristianismo. Estes cristãos contestaram a eclesiologia vigente, mas para eles não era possível ser cristão sem a Igreja, esta é também a razão que os levava a manter o

316 J., SAUGNIEUX, Le Jansénisme espagnol du XVIII siècle: ses composantes et ses sources, Universidad de

Oviedo, Oviedo, 1975, p. 22.

317 Cf. C., SANTOS, “António Pereira de Figueiredo, Pombal e a Aufklärung”, Revista de História das Ideias 4

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contacto com os cristãos da Igreja de Utreque, que consideravam injustamente excomungados318.

Mas se o catolicismo iluminado adere ao repto tridentino de reforma, as ideias regalistas, aliadas e de algum modo suportadas num certo jansenismo, não vão querer o papado a liderar o processo de renovação da Igreja. Pelo contrário, são os príncipes que deveriam tomar a dianteira e reformar as suas Igrejas nacionais, eles são os instrumentos da reforma, instrumentos escolhidos diretamente por Deus para realizar essa missão. Trento não contava com natural processo de secularização em curso, processo esse que a valorização do clero secular em detrimento do regular, favorecida por este concílio, acabaria por favorecer.

A secularização, na definição de António Matos Ferreira, processa-se na longa passagem da legitimação da confessionalidade sociopolítica para uma sociedade onde a religião se encontra em concorrência com outros princípios e outras fontes de legitimação das práticas individuais e sociais e, por conseguinte, de enquadramento sociocultural. A secularização não significa o fim ou o resíduo da religião, mas contém o debate do lugar e da função da religião na sociedade moderna. Como processo de longa duração, a secularização é também percecionada como deslocação da religião para o terreno privado, secundarizadas as suas respetivas mediações institucionais. A religião não desaparece nem as suas mediações, mas nesse deslocamento ocorre a recomposição da sua função e das suas manifestações319.

Marcada por uma bipolaridade em tensão, e concorrencial, entre o espiritual e o temporal, no contexto do cristianismo das sociedades ocidentais, a secularização manifesta-se, numa primeira instância, na lenta e progressiva subalternização do modelo de vida monástica pela valorização do mundo secular; isto é, a passagem de uma sociedade de perfeição exterior ao comum, para valorização do comum como lugar de santificação. Isto ocorre lentamente em

318 Cf. B., PLONGERON, “Combats Spirituels et Réponses Pastorales à L’incrédulité” in J., MAYEUR – L.,

PIETRI – A., VAUCHEZ (org.), Histoire du Christanisme des Origines à nos Jours, Vol. X, Desclée, Lonrai,1997, p. 267.

319 Cf. A., MATOS FERREIRA “Secularização”, in C., MOREIRA DE AZEVEDO (org.), Dicionário de História Religiosa de Portugal, Círculo de Leitores, Mem Martins, 2001, p. 196.

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relação às vivências e práticas religiosas, tanto dos cristãos comuns como do entendimento da função e carácter do clero, que se alteram com a paulatina passagem da ruralidade à implementação e desenvolvimento de espaços urbanos e consequentes alterações das atividades humanas e do tipo de vínculos sociais. Neste percurso, a centralidade ocupada pela Igreja, enquanto instância definidora de inclusão ou exclusão sociais, é questionada pela afirmação de outros e novos protagonismos quer de enquadramento, quer de sentido320.

Os iluministas católicos portugueses aceitaram a supremacia da Coroa sobre a Igreja, enfatizaram nalguns casos a primazia do concílio sobre o Papa. Colocaram em evidência notícias de autonomias das antigas dioceses portuguesas, atacam os jesuítas, promoveram a teologia positiva, baseada nas fontes da Escritura e da Tradição, em detrimento do aristotelismo, empenharam-se na denúncia do fanatismo religioso e das superstições, dão-se à depuração de falsos milagres e santos inexistentes, inscritos na literatura confessional. Às festividades e à oratória barrocas preferem uma religiosidade austera321.

11. O Marquês de Pombal – um paradigma de iluminismo católico ou de