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6. O reinado Josefino: a queda dos jesuítas e as reformas pombalinas

6.2. As Reformas Pombalinas

6.2.3. Reforma da Universidade de Coimbra

O ensino foi uma das áreas que requereu especial cuidado na ação reformadora do Marquês de Pombal. As opiniões sobre a eficácia de tal reforma dividem-se ao ponto de alguns a considerarem o foco de onde irradiaram todas as outras reformas223. Mas certo é que se estabeleceram as traves mestras daquilo que viria a constituir os três graus do sistema de ensino: primários, secundário e superior, produzindo-se a respetiva legislação para cada um deles.

Qualquer instituição, para sobreviver e para cumprir a missão para a qual foi criada, tem de evoluir e de se adaptar ao tempo e à sociedade que mudam. Este postulado serve para qualquer instituição, mas aplica-se particularmente às instituições de ensino que não devem ser apenas o espelho e o reflexo de uma sociedade, mas também e sobretudo o projeto e o motor da sociedade que há-de vir. As instituições tendem a imobilizar-se por isso é que geralmente as reformas quase sempre têm de vir de fora. Isto foi o que aconteceu com a Universidade de Coimbra que, na sua história, as grandes reformas de que foi objeto, foram impostas pelo poder régio224.

222 Ibidem, p. 585.

223 M., MOTTA VEIGA, Esboço Historico-Litterario da Faculdade de Theologia da Universidade de Coimbra em Comemoração do Centenário da Reforma da mesma Universidade Effeituada pelos Sabios Estatutos de 1772, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1872, p. 167.

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A reforma da Universidade era vista como uma «necessidade imperiosa»225. Transferida definitivamente para Coimbra por D. João III em 1537, a Universidade beneficiara então de uma ampla reforma a que presidiram as duas grandes linhas de força do universo cultural de então: o Humanismo e a Reforma Católica.

Os dez anos que Sebastião José passou em Londres e em Viena tê-lo-ão sensibilizado para escutar os apelos à reforma de intelectuais como Luís António Vernei226, Jacob de Castro Sarmento e António Ribeiro Sanches.

O projeto de reforma da Universidade amadureceu no espírito do Ministro de D. José durante cerca de uma década. Disto é testemunha uma carta de 12 de março de 1761, dirigida a Jacopo Ficciolati, professor da Universidade de Pádua, na qual já o então Conde de Oeiras projetava reformar a Universidade de Coimbra227. Por sua vez, Frei Manuel do Cenáculo, no seu Diário, referindo-se a uma reunião havida no dia 19 de junho de 1771, informa-nos que João Pereira Ramos estava encarregado desde «há seis ou sete anos» de ir «ajudando e compondo o que fosse preciso para a reforma da Universidade».

Por carta régia de 23 de dezembro de 1770, D. José cria a Junta de Providência Literária, a cujos membros mandava «que conferindo sobre as referidas decadência e ruína [da Universidade], examinando com toda a exatidão as causas delas, ponderando os remédios que considerarem mais próprios para elas cessarem, e apontando os Cursos científicos e os métodos que devo estabelecer para a fundação dos bons e depurados estudos das Artes e Ciências que, depois de mais de um século, se acham infelizmente destruídas, me consultem o que lhes parecer a respeito de tudo o sobredito». Os membros da Junta, que, segundo a referida carta régia, deveriam trabalhar sob a inspeção do Cardeal da Cunha e do Marquês de Pombal, eram os seguintes: Frei Manuel do Cenáculo, José Ricale Pereira da Castro, José Seabra da Silva,

225 IDEM, “A reforma pombalina da Universidade”, separata da Revista Portuguesa de Pedagogia 6 (1972), pp.

25-63.

226 Sobre Luís António Vernei consultar A., BANHA DE ANDRADE, Vernei e a Cultura do seu Tempo, Coimbra,

1996. Vernei e a projecção da sua obra, Lisboa, 1980.

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Francisco António Maques Giraldes, Francisco de Lemos de Faria, Manuel Pereira da Silva e João Pereira Ramos de Azeredo.

Ao fim de alguns meses de trabalho, a Junta apresentou a D. José a 28 de agosto de 1771, o seu Parecer sobre o estado das Artes e das Ciências no país, submetendo à apreciação régia o Compêndio Histórico do Estado da Universidade de Coimbra que pretendia apresentar «uma clara e específica ideia dos estragos que os mesmos denominados jesuítas fizeram, primeiro na Universidade e, consequentemente, nas aulas de todos estes reinos». A Companhia de Jesus foi, então, apresentada como o grande «obstáculo epistemológico» ao progresso e à iluminação do Reino228. O paradigma educativo que a reforma pombalina quis substituir é identificado no Compêndio com o jesuitismo pedagógico e este com a escolástica que teria feito mergulhar as letras e as ciências em Portugal numa escuridão que urgia iluminar através de um processo reformista radical e depuratório das causas desta decadência229.

Sobre este Parecer, exarou D. José em 2 de setembro do mesmo ano a seguinte resolução: «Como parece. Subam as minutas dos Estatutos e Cursos Científicos, para sobre eles determinar o que entender que é mais conveniente ao serviço de Deus e meu e ao bem comum dos meus vassalos. E louvo muito à Junta o grande e frutuoso desvelo com que se tem aplicado a este importante negócio, o qual confio que seja por ela prosseguido com o mesmo exemplar zelo e completo acerto»230.

Algumas semanas depois, a 25 de setembro, Sebastião José comunica à Universidade que o Rei decidira que, no ano letivo seguinte, os estudos fossem regulados por novos Estatutos e cursos científicos, suspendendo os antigos, bem como a abertura das aulas, os juramentos e as matrículas, que se faziam em outubro.

228 J., FRANCO, O Mito dos Jesuítas em Portugal, no Brasil e no Oriente (Séculos XVI a XX): Das Origens ao Marquês de Pombal, Vol. I, Gradiva, Lisboa, 2006, p. 562.

229 IDEM, “A reforma antijesuítica da Universidade Portuguesa pelo Marquês de Pombal” Itenerarium 181-183

(janeiro-dezembro 2005), p. 411.

230 Cf. J., FERREIRA GOMES, “Pombal e a Reforma da Universidade”, in M., ANTUNES (org.), Como Interpretar Pombal? No Bicentenário da sua Morte, Edições Brotéria, Lisboa, 1983, pp. 237-238.

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O Reitor da Universidade, Francisco de Lemos, anunciou em 19 de setembro de 1772 a visita de Pombal à instituição, visita essa que tinha sido ordenada pelo Rei a 28 de agosto desse ano como seu «Lugar-Tenente, com jurisdição privativa, exclusiva e ilimitada», e nela fizesse publicar os novos Estatutos. Nessa mesma data assinou D. José a «Carta de Roboração» dos novos Estatutos e criou a Junta de Administração e Arrecadação que deveria substituir a Mesa da Junta da Fazenda da Universidade, então extinta.

A 11 de setembro, o Monarca nomeou Francisco de Lemos «Reformador da Universidade, para servir com o de Reitor por tempo de três anos», cargo em que Pombal o viria a empossar no penúltimo dia da sua estadia em Coimbra.

O Marquês de Pombal tinha consciência de que não era possível fundar uma Universidade «nova» com os «velhos» professores da «velha» Universidade. Deste modo, por vários despachos publicados ao longo do mês de setembro de 1772, jubilou quatro lentes de Teologia, sete de Cânones, três de Leis e treze de Medicina. Para substituir os lentes jubilados foram nomeados novos lentes e novos substitutos231.

A fim de proceder à «nova fundação» da Universidade, o Marquês de Pombal saiu de Lisboa em 15 de setembro, chegando a Coimbra no dia 22 onde permaneceu até dia 24 de outubro, hospedado no Paço Episcopal da mesma cidade.

No dia 26 dirigiu-se à Sala dos Capelos e na sua presença foi lida, pelo Secretário da Universidade, a carta régia de 28 de agosto. A seguir, o Reitor recitou uma oração em que, em nome da Universidade, agradecia ao Rei os benefícios que, pela mão do Marquês, lhe havia concedido. Da Sala dos Capelos dirigiram-se para a Capela da Universidade, à porta da qual o Lugar-Tenente do Rei «foi recebido debaixo de pálio», cantando-se, em ação de graças, o Laudate Dominum e o Te Deum232.

231 Cf. Ibidem, p. 242.

232 A., VASCONCELOS, Diario do que se passou em a cidade de Coimbra, desde o dia 22 de Setembro de 1772, em que o Ilustrissimo e Excelentissimo Senhor Marquês de Pombal entrou, até o dia 24 d’Outubro, em que partio da dita cidade, Imprensa da Universidade, Coimbra.

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Na sua versão impressa, os Estatutos constam de três volumes. O primeiro volume ocupa-se da Faculdade de Teologia; o segundo da Faculdade de Cânones e da Faculdade de Leis; o terceiro dos «Cursos das Ciências Naturais ou Filosóficas», ou seja, a Faculdade de Medicina, a Faculdade de Matemática e a Faculdade de Filosofia.

No que concerne a cada uma das seis faculdades, os Estatutos contêm disposições de natureza meramente administrativa como por exemplo a idade dos estudantes para se poderem matricular, tempo letivo, tempo feriado e outros assuntos, existem também disposições de natureza metodológica que apontam geralmente para uma nova conceção de ciência. É neste segundo aspeto que reside o que de verdadeiramente novo e até audacioso trouxe a reforma pombalina233.

No título dos Estatutos, lê-se que foram compilados «pela Junta de Providência Literária». É muito provável que todos os membros da Junta tenham dado o seu contributo. Também parece estar fora de dúvida o enorme interesse com que Pombal acompanhou os trabalhos da Junta e a elaboração dos Estatutos234.

No dia 1 de outubro, de manhã, foi celebrada Missa do Espírito Santo, na Capela da Universidade, a que assistiu o Marquês, na presença do qual deram o seu juramento costumado os novos lentes. À tarde, também na presença de Pombal, proferiu a Oração de Sapientia, «na abertura da nova Universidade», o lente de Teologia Bernardo António Carneiro235.

Por Carta236 de 11 de outubro, dirigida ao Marquês, o Rei ordena-lhe que se aplique o edifício do Colégio que fora dos jesuítas e do terreno do castelo em benefício da Universidade. Dando cumprimento às ordens régias, o Marquês Visitador, por Provisão de 14 de outubro, cedeu a igreja do Colégio dos jesuítas para nela se estabelecer a Catedral. Por provisão de dia

233 Cf. J., FERREIRA GOMES, “Pombal e a Reforma da Universidade”, in M., ANTUNES (org.), Como Interpretar Pombal? No Bicentenário da sua Morte, Edições Brotéria, Lisboa, 1983, p. 240.

234 Cf. Ibidem, p. 240.

235 Cf. IDEM, Dez Estudos Pedagógicos, Livraria Almedina, Coimbra, 1977, p. 227.

236 Esta carta está publicada na Relação Geral do estado da Universidade de Coimbra [1777] dirigida por Francisco

de Lemos à Rainha D. Maria I na obra F., LEMOS, Relação Geral do Estado da Universidade (1777), Coimbra, 1980, p. 255.

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15, aplicou o claustro da Sé Velha para a Imprensa da Universidade. Por Provisão de dia 16, aplicou o Colégio dos Jesuítas para o Hospital Anatómico, o Dispensatório Farmacêutico, o Gabinete de Física Experimental, o Museu da História Natural e o Laboratório Químico; o terreno do castelo, para o Observatório Astronómico. Por Provisão de dia 17, mandou reedificar a Real Capela e a Livraria da Universidade237.

No dia 23 de outubro, Francisco de Lemos, na qualidade de Reitor da Universidade de Coimbra, faz o seu juramento de Reformador, na capela do Paço, diante do Marquês que, por fim, no dia 24, parte de Coimbra em direção a Lisboa238.

A Universidade de Coimbra dispunha então de novos Estatutos e novos professores. O Marquês regressou à corte depois de ter lançado os fundamentos da «nova fundação» da Universidade. Uma carta régia de 6 de novembro de 1772 prorroga os plenos poderes do Marquês para edificar a obra da qual tinham sido lançados os alicerces.

As atenções de Pombal e de Francisco de Lemos vão incidir, de modo muito especial, na construção e apetrechamento dos estabelecimentos científicos previstos nos Estatutos, sem esquecer outros problemas como a nomeação de docentes e auxiliares239.

A partir de 2 de novembro estabelece uma assídua troca de correspondência com o Reitor, manifestando o interesse de ambos neste empreendimento que a ambos pertencia.

Bem reveladora da importância e do orgulho que significava a reforma da Universidade de Coimbra é a carta do Marquês do dia 7 de novembro:

«Os Estatutos da nossa Universidade fazem um tão grande objeto de expectação das nações estrangeiras, e hão-de fazer outro tão grande pungente estímulo de raiva jesuítica, que, por um e outro princípio, os livreiros do Norte se hão-de dar todo o movimento em os fazer traduzir para ganhar dinheiro; e os que eles apeiam dos seus cavalos de batalha para ver se podem estropear e difamar a mesma Legislação, introduzindo dela maliciosos erros e dissonantes imposturas. Por

237 Cf. J., FERREIRA GOMES, Dez Estudos Pedagógicos, Livraria Almedina, Coimbra, 1977, pp. 227-228. 238 Cf. Ibidem, p. 228.

239 Cf. IDEM, “Pombal e a Reforma da Universidade”, in M., ANTUNES (org.), Como Interpretar Pombal? No Bicentenário da sua Morte, Edições Brotéria, Lisboa, 1983, p. 245.

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ambos os referidos motivos, se faz indispensável que a nossa tradução seja a primeira que veja a luz do mundo[…]»240

Desta correspondência destaca-se ainda o desejo que Marquês de Pombal tinha de que a Universidade de Coimbra viesse a ser invejada por todas as outras universidades da Europa revelando o complexo psicológico que era o sentimento de inferioridade do país em relação à Europa evoluída, que Sebastião José queria reparar e superar a todo o custo241.

Tudo parecia encaminhar-se para a normal execução dos Estatutos, quando a reação antipombalina, na sequência da morte de D. José, ocorrida em 23 de fevereiro de 1777, fez nascer sérias dúvidas quanto ao prosseguimento da obra inaugurada havia pouco mais de quatro anos.

A reforma pombalina do ensino, em geral, e da Universidade, em particular, teve um propósito extremamente utilitário: «criar um corpo de funcionários educados segundo as ideias iluministas, dispostos a reformar a burocracia do Estado e a hierarquia da Igreja»242.