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4. Pombal e o Pombalismo

4.3. Pombalismo

O pombalismo foi uma forma de governar ditada pela aliança entre a teoria e a prática governativa. Ele expressa um sentido específico de política, em que o poder é exercido não tanto para gerir o que é, mas sobretudo para construir o que deve ser. Ou seja, em que governar implica uma teoria política assumida e um projeto político consequente. É este o sentido de qualquer reformismo que pretende propor alternativas à situação existente, e foi este o sentido das reformas que Pombal pensou para o Portugal da segunda metade do século XVIII. Para ele, reformar não significava introduzir medidas epidérmicas, mas mudar uma forma de estar que correspondia a uma outra forma de ser67.

Sebastião José de Carvalho e Melo compreendeu que o Antigo Regime, com os seus valores culturais, sociais, económicos e religioso começava a mostrar-se desajustado à realidade portuguesa muito paralisada no final do reinado joanino. O tempo que serviu Portugal em Londres e em Viena serviu para lhe rasgar novos horizontes e uma vez chamado ao poder constatou que existia potencial suficiente para viabilizar a mudança. Numa palavra, «apercebeu-se do despontar do mundo contemporâneo»68.

A consecução de algumas reformas nem sempre se mostrou adequada, mas está fora de dúvida que marcaram com o selo da «modernidade» o reinado de D. José. Por isso, qualquer

66 Ibidem, p. 45.

67 Z., OSÓRIO DE CASTRO “Pombalismo”, in C., MOREIRA DE AZEVEDO (org.), Dicionário de História Religiosa de Portugal, Círculo de Leitores, Mem Martins, 2001, p. 462.

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que seja o juízo de valor sobre as iniciativas tomadas, a verdade é que o pombalismo, mais do que um marco, representa, no essencial, uma mutação sem retorno na sociedade portuguesa setecentista69.

O pombalismo foi-se construindo tendo como fito elevar Portugal ao nível das outras nações europeias. Estabelecido o objetivo tornava-se necessário atingi-lo por isso vemos, nas medidas que foram tomadas neste período, mesmo nas mais polémicas, o percurso trilhado para atingir o almejado objetivo. Deste modo, a execução dos Távora e a expulsão da Companhia de Jesus podem ser vistas como «peças de um mesmo xadrez». E no mesmo projeto de reforma moderna se pode incluir a criação do Erário Régio, da Junta de Comércio, da Intendência da Polícia, da Real Mesa Censória70, assim como a reestruturação da Inquisição, a fundação das companhias monopolistas e majestáticas, os novos Estatutos da Universidade de Coimbra, a implementação dos Estudos Menores, a origem da Imprensa Régia e da Imprensa da Universidade. Desse mesmo xadrez foi também parte integrante toda a legislação e toda a literatura com que Pombal e os seus próximos colaboradores produziram para influenciar a vida e as ideias ao nível das lideranças sociais, eclesiásticas e políticas dos súbditos de D. José, obrigando a uma outra forma de estar e abrindo perspetivas para um modo de pensar diferente. Consequentemente, entender o pombalismo como um projeto dotado de coerência interna e considerar que ela está presente em toda a ação política de Pombal conduz, necessariamente, à aceitação da existência de uma unidade superadora das diferenças, ou seja, de uma ideia dinâmica que dá sentido e enforma com um significado único as iniciativas tomadas71.

Por outras palavras, que ideia de «modernidade» teria presidido ao projeto político gizado pelo Marquês para fazer de Portugal um Estado Moderno? Refletindo sobre o conjunto das reformas e, mais do que isso, sobre o que lhes é inerente e as caracteriza de modo

69 Cf. Ibidem, p. 462.

70 Sobre a Real Mesa Censória relevamos o estudo: R., TAVARES, O Censor Iluminado – Ensaio sobre o Pombalismo e a Revolução Cultural do Século XVIII, Tinta da China, Lisboa, 2018,

71 Cf. Z., OSÓRIO DE CASTRO “Pombalismo”, in C., MOREIRA DE AZEVEDO (org.), Dicionário de História Religiosa de Portugal, Círculo de Leitores, Mem Martins, 2001, p. 463.

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significativo, Zília Osório de Castro afirma que ressalta como uma constante oculta, mas nem por isso menos presente, o valor do tempo. Não do tempo temporalidade, isto é, enquanto vida vivida, mas do tempo temporal que engloba o aqui e o agora, característico da secularidade, por oposição à eternidade. E que se traduz numa certa imagem de tempo oposta à imagem do não- tempo, até então subjacente, em última instância, a toda a forma de pensar e de estar. A existência tinha um sentido escatológico e só ele lhe dava significado. Se bem que, sob o ponto de vista cultural, o Renascimento e o iluminismo tivessem questionado este ponto de vista, no plano político, em Portugal, só tomou forma com o pombalismo. Nesta perspetiva, o pombalismo identifica-se com a secularização da sociedade72.

Adotando a teoria de que a soberania não só era de origem divina, mas vinha direta e imediatamente de Deus para os príncipes, o pombalismo sacralizou o poder temporal dos soberanos e especificou a sua jurisdição. Pela sua origem, o poder dos reis era igual ao poder do Papa, só se distinguiam pelas respetivas e próprias esferas jurisdicionais: os príncipes tinham por missão sagrada promover o bem-estar e felicidade temporal dos súbditos; o Papa tinha por missão, igualmente sagrada, zelar pelo bem espiritual dos homens. As consequências deste entendimento não foram todas retiradas no reinado de D. José, mas foi nesse período que começaram a fazer-se sentir. Foi neste período que o poder régio se tornou verdadeiramente soberano. A sua origem divina direta e imediata tirava todo e qualquer fundamento à sua partilha com a sociedade, considerada quer no todo, quer nas partes. A especificidade da sua jurisdição tornava-o único no temporal. Deste modo as sociedades eclesiásticas, seculares e regulares, estavam legítima e exclusivamente sujeitas à jurisdição dos soberanos em tudo o que fosse temporal. Numa palavra, tudo o que de temporal existisse nas Igrejas locais, nos seus membros e nos seus domínios, estava sob o «poder jurídico dos reis». Neste sentido, a Igreja estava no Estado, dele fazendo parte e com ele colaborando na promoção da felicidade e tranquilidade temporal dos «cidadãos». O pombalismo, sem ignorar o carácter específico da

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missão da Igreja, atribuiu-lhe uma função política que, enquanto tal, a punha na dependência da autoridade do rei. Daqui decorre a fundamentação do regalismo pombalino. E daqui decorre também a fundamentação do absolutismo esclarecido defendido por Pombal. A especificidade do poder régio como único poder temporal esvaziava de legitimidade o domínio tradicional da Igreja e dos eclesiásticos, além de teoricamente inviabilizar a potencial intervenção da nobreza e dos povos nos negócios do Estado. Neste sentido, a execução dos Távora e a expulsão da Companhia de Jesus, tal como o reformismo, são exemplos paradigmáticos da conceção de poder político trazida pelo pombalismo e não fruto de mera arbitrariedade pessoal do Ministro73.