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Aceitar a realidade do jeito que ela é: esta atitude que parece ser apenas a filosofia dos que dizem adotar uma postura pragmática e objetiva diante da vida começa a desvanecer quando o real passa a ser visto não como um dado imutável, mas como o resultado de uma construção social.

O que estamos chamando de real aqui é o mundo da vida cotidiana que o homem compartilha com os outros (Schutz, 2003) é o mundo que compartilhamos como um domínio público no qual trabalhamos, nos comunicamos e vivemos nossa vida.

Conforme nos mostram Berger e Luckman (2004), a realidade da vida cotidiana só é possível por causa das objetivações e é na linguagem e mais especificamente na significação lingüística que está a base para manutenção das objetivações comuns da vida cotidiana. A linguagem é que nos permite participar da vida cotidiana com nossos semelhantes. O uso dos signos nos permite compreender a mente dos outros indivíduos, mesmo que de forma parcial, mas o suficiente para possibilitar nossa convivência e troca de experiências, nossas relações sociais. “O mundo social em que o homem se encontra inserido é assim entendido como uma rede de relações sociais, um sistema de signos e de símbolos com a sua particular estrutura de significados” (CORREIA, 2002, p. 154).

No entanto, não podemos esquecer a importância do elemento subjetivo humano. Para Schutz, cada indivíduo se situa na vida de acordo com o que ele chamou de sua situação biográfica, que é constituída pelo acervo de conhecimento que ele tem a mão e de que pode dispor facilmente para interpretar a realidade. “Cada pessoa segue durante toda sua vida interpretando o que encontra no mundo segundo a perspectiva de seus particulares interesses, motivos, desejos, aspirações, compromissos religiosos e ideológicos” (SCHUTZ, 2003, p. 17, tradução nossa).

Assim é que, por um lado, temos a possibilidade de uma multiplicidade de visões de mundo a partir de cada visão subjetiva, e, de outro, a necessidade de compartilhamos um só

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mundo em nossa vida em sociedade. Neste jogo de forças a priori antagônicas nasce a noção de uma realidade social e não será preciso dizer como esse jogo se desenrola. “Se toma como realidade eminente o mundo do executar, o mundo de sentido comum da vida diária” (SCHUTZ, 2003, p. 28).

Assim, é como se o mundo como todos o vêem fosse transposto ao mundo particular de cada um, de acordo com sua situação biográfica. Adentramos aqui na noção de um mundo como construção do indivíduo enquanto autor e ator de sua própria concepção. Cada pessoa vê a realidade do mundo a partir de sua própria perspectiva, de sua posição no tempo e no espaço.

Mas, como viver numa realidade em que o mundo e seus objetos podem não ser o que parecem? Adotando, ainda que de modo inconsciente, a atitude natural de suspensão da dúvida e crença na realidade, nas coisas que existem num mundo de sentido comum. Assim, a realidade eminente estaria baseada nessa verdade aparente da atitude natural (SCHUTZ, 2003).

A chave para compreendermos a realidade social está na intersubjetividade, pois mesmo vendo o mundo de sua própria perspectiva, o homem é um ser social, habitando um mundo “real” compartilhado com outros homens, dentro do qual ele se comunica com outros, trabalha e vive.

A comunicação tem papel fundamental na construção da realidade social, já que é através dela que o sujeito consegue objetivar sua subjetividade, ou seja, transmitir ao outro uma parte de suas crenças, sentimentos e opiniões e ao mesmo tempo partilhar com ele da construção de um sentido partilhado de realidade. “A objectivação do sentido e, logicamente, a possibilidade de coordenação de sentidos subjectivos originados no universo profundo da corrente de consciência, é algo que só pode ser conseguido através de actos comunicativos” (CORREIA, 2002, p.147).

Apesar de haver sempre uma parcela que não é plenamente comunicável, a importância da comunicação marca decisivamente a construção de realidade. “Se a realidade é como é não é porque tem de ser assim - porque dispõe de uma qualquer propriedade ontológica – mas sim graças a um consenso que se estabelece na vida quotidiana” (CORREIA, 2002, p. 65).

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Esse papel fundamental da comunicação na construção social da realidade nos interessa, sobretudo, em termos de seu emprego como atividade profissional, institucionalizada e até econômica – através do jornalismo - com uma influência cada vez mais decisiva nas sociedades contemporâneas.

Quando queremos ficar informados sobre o que está acontecendo de mais importante no mundo, assistimos um noticiário na TV, lemos o jornal, ouvimos notícias nas rádios, navegamos por portais de empresas de comunicação na Internet. Essa atitude tão comum para os seres humanos na maior parte do planeta são uma mostra de quanto o jornalismo pode construir o que a gente chama de realidade social. “A corrente construcionista inaugurada por Alfred Schutz permite toda uma frutuosa abordagem das notícias como construção social da realidade” (CORREIA, 2002, p. 208).

Gamson (apud SÁDABA, 2004) reconhece que embora não sejam a única fonte de conhecimento público, os meios de comunicação se transformaram na mais importante, sobretudo nos casos em que não há possibilidade da experiência pessoal direta relativa a um acontecimento. “Quanto menos uma pessoa utiliza sua própria experiência como fonte de conhecimento e mais recorra a fontes culturais, mais vulnerável será frente aos efeitos dos enquadramentos usados pelos meios” (SÁDABA, 2004, p. 45).

Essa tradição não existe por acaso. Conforme nos lembra Alsina (2009), os próprios meios de comunicação ao se colocarem como portadores de notícias da atualidade apresentam sua missão como a de transmitir a realidade.

A virtualidade do discurso jornalístico informativo está nas suas pretensões referenciais e cognitivas. Esse tipo de discurso se autodefine como o transmissor de um saber muito específico: a atualidade. Esse acontecer social cotidiano, que ficou definido como a atualidade, deve ser desmistificado rapidamente. Se conceituarmos a atualidade não como o que acontece no mundo e poderia ser transformado em notícia, mas, unicamente, como os acontecimentos aos quais tem acesso a mídia, mesmo assim, a ‘atualidade’ transmitida em forma de notícias é apenas uma pequena parte desses acontecimentos (ALSINA, 2009, p. 9- 10).

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Meditsch (1992) também nos revela um pouco de como o campo jornalístico se arvora a ser espelho da realidade e das implicações que uma tal postura acarreta para a formação de consciência social dos cidadãos.

O último argumento dos práticos será o seu apego aos fatos. O bom jornalismo ensina que a realidade se encontra nos fatos, e não nas ideias que se têm sobre ela. Assim, é a eles, os práticos, que a objetividade pertence. O apego aos fatos, concordarão os teóricos, é o caminho da objetividade, mas ela só é alcançada pelo correto relacionamento entre eles. [...] O apego de ambos aos fatos, esta visão fatal, costuma esquecer que os fatos se referem à realidade, mas não são a realidade. São construções do pensamento de que os nomeia (MEDITSCH, 1992, p.74).

O próprio procedimento intrínseco à atividade jornalística de selecionar um acontecimento como notícia pressupõe um recorte da realidade e isso não ocorre de maneira casual. Não podemos esquecer que o sistema de relevâncias criado pela mídia acaba acarretando implicações profundas na construção social – dando destaque a alguns fatos da atualidade e relegando outros ao ostracismo, dando voz a algumas categorias e classes sociais e deixando mudas tantas outras.

O jornalismo como conhecimento é condicionado por sua produção industrial como mercadoria, por valores ideológicos de seus produtores, pelo autoritarismo de suas formas, pela arbitrariedade de suas escolhas, pelas falsas categorias que a sua tradição e sua técnica [...] construíram (MEDITSCH, 1992, p.42).

O mais comum é que os agentes sociais não se questionem sobre o que vêem, nem sobre a finalidade prática para a qual os objetos foram construídos. Mas, não podemos esquecer que a definição do que vem a ser um acontecimento digno de virar notícia não é uma realidade externa ao próprio sujeito (jornalista) que assim o identificou. Há diversos fatores que incidem sobre o processo de seleção dos acontecimentos como notícia, a relevância que lhes é atribuída (e nem sempre coincide com a de grandes parcelas da sociedade) e o destaque que ganham da mídia.

A contradição principal do jornalismo, tal como é praticado em situações como a brasileira, é ser, por um lado, produção social de conhecimento – portanto, atividade intrinsecamente criadora – e, por outro, mercadoria produzida industrialmente para gerar lucros aos monopólios que controlam esta produção – portanto, atividade submetida (MEDITSCH, 1992, p. 80).

Sádaba (2004) defende a necessidade de o cidadão compreender como a mídia se apropria da realidade e quais as limitações e possibilidades do trabalho jornalístico para que possa avaliar as informações que recebe continuamente. Schutz (apud CORREIA, 2002) nos fornece uma chave interessante para compreensão de um ato comunicativo genuíno ao

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esclarecer que esse só ocorre quando existe a clara intenção de “dar a conhecer” o significado de uma enunciação ou ação.

Nesse caso, o jornalismo é uma atividade perfeitamente encaixada à visão de Schutz para o ato comunicativo e enquanto atividade profissional traz uma série de implicações ao nosso estudo, justamente por sua intencionalidade (revelada ou obscura) na transmissão de uma realidade social. “A efetividade do discurso jornalístico informativo está em saber fazer chegar a informação, embora sem deixar de lado que também pode fazer crer (persuadir), fazer ver (manipular) e fazer sentir (emocionar)” (ALSINA, 2009, p. 10). Em nossa avaliação, a comunicação tem sempre uma finalidade que pode ser resumida como a busca por produzir um determinado efeito no receptor.

Se está na comunicação o poder de criar referências e partilha de significados na construção da realidade social, a transformação da comunicação em um negócio – conforme estamos assistindo com o intenso desenvolvimento dos veículos de comunicação de massa nas últimas décadas – traz implicações concretas no entendimento comum de uma realidade social caracterizada por sua inevitabilidade e sua existência independente da ação humana.

Além disso, se, conforme nos ensina Schutz (CORREIA, 2002), a ação dos atores sociais é determinada com base nos saberes adquiridos, na sua situação biográfica, podemos refletir sobre os condicionantes da realidade social transmitida pelos profissionais do jornalismo, através dos veículos de comunicação. A situação biográfica, incluindo-se também a cultura profissional, é um potente filtro do real que se materializa nas notícias.

Definir um tema como relevante pressupõe critérios. Nesse sentido, urge perguntar: até que ponto os jornalistas usam o sistema de relevâncias do seu próprio mundo da vida enquanto comunidade interpretativa para decidirem o que deve merecer dignidade de notícia? (CORREIA, 2002, p. 201).

Um dos principais questionamentos na investigação de Correia (2002) é sobre o sistema de relevâncias utilizado pelo jornalismo. A principal dúvida consiste em saber se os critérios de definição dos valores-notícia são determinados pelo sistema de relevâncias dos jornalistas enquanto categoria profissional e comunidade interpretativa, pelo sistema de relevância do próprio jornalista individualmente ou ainda pelo sistema de relevâncias que se tornou histórica e socialmente dominante. Para Sádaba (2004), há a influência de fatores coexistentes. “ Tanto o jornalista como um indivíduo com características concretas, quanto o

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jornalista enquanto profissional que trabalha com rotinas e em uma determinada organização, faz com que os fatos adquiram enquadramentos diferentes” (SÁDABA, 2004, p. 14).

A análise de Correia caminha para constatação semelhante ao entender que o sistema de relevância dos jornalistas faz parte de uma província de significado finito que é a própria comunidade de profissionais, mas esse sistema se inter-relaciona com outros. “A produção do sistema de relevâncias do jornalista é resultado das interacções entre si nas rotinas organizacionais e das interações com outros sistemas de relevância” (CORREIA, 2002, p. 209).

Junto ao público, a seleção dos acontecimentos noticiáveis gera um agendamento3 que alteraria os sistemas de relevância do público receptor. Dentro do contexto de condicionamentos socioculturais em que realiza seu trabalho, o jornalista corre o risco de desenvolver uma atitude eminentemente prática frente ao mundo e uma certa confiança ingênua na realidade e permanência do mundo do modo como é percebido.

No limite, corre-se o risco que um esquema rígido de normas de especificação produtiva [...] que busca a sua adequação ao “homem comum”, se torne o elemento que estrutura a positividade da linguagem mediática, pervertendo a possibilidade da inovação e da dissidência e contrariando as possibilidades de reforço do pluralismo. Nesta hipótese, a negação da diversidade faria parte da própria natureza da linguagem e práticas discursivas da instituição mediática e do jornalismo (CORREIA, 2002, p. 217).

Para Correia, os meios de comunicação precisam sair do lugar de conforto e adotar uma posição de estranhamento em relação à realidade social dada como mundo objetivo e imutável numa atitude de quebra e ruptura que teriam a ver com algumas técnicas passíveis de serem desenvolvidas pelo jornalismo se se revisse a clássica retórica do discurso da imprensa.

Estas técnicas passariam pelo aprofundamento do pluralismo e pela multiplicação das vozes susceptíveis de acederem à visibilidade pública através dos media, graças a formas de trabalho muito prático que implicam mais investigação e insistência escrupulosa não apenas em ouvir as partes que têm pertinência para o caso em apreço, mas, paradoxalmente, até as que parecem ausentes de pertinência, as que são olhadas como impertinentes, apenas porque falam num registro que invoca um outro sistema de relevâncias que por vezes não é socialmente aceite ou sequer evidente (CORREIA, 2004, p.10).

3 Conforme a hipótese da agenda-setting, desenvolvida por McCombs e Shaw (1972), os consumidores dos meios de comunicação de massa passam a agendar suas conversas de acordo com o que é veiculado pela mídia.

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O rompimento da atitude natural de aceitar a realidade como um dado a priori e o reconhecimento de uma dimensão possível de reflexividade crítica e de participação ativa na construção de sentido também são apontadas por Schutz como formas de romper com o conformismo frente à realidade social aparente. “Tudo em Schutz aponta para uma análise arguta sobre a forma como o conformismo se constitui, e de como, afinal, cada província de significado outra coisa não é senão um domínio de crenças válidas enquanto os sujeitos as partilharem” (CORREIA, 2002, p. 187).

O profissional do jornalismo também precisaria efetuar algumas mudanças em suas rotinas produtivas, a partir de um outro posicionamento de assumir-se como agente de transformações sociais.

O jornalista, se e só se estiver consciente da sua condição de actor no mundo da vida, pode recolher novos pontos de vista, novos modos de chegar aos significados que os agentes observados atribuem às suas acções. Para isso importa deixar as fontes do costume e manter uma perspectiva crítica relativamente às rotinas institucionalizadas (CORREIA, 2002, p.221).

Se, como vimos, o jornalismo online “conhece certamente menos limites que as formas tradicionais de jornalismo” (FIDALGO, 2004, p. 13), cabe à sociedade e aos profissionais e estudiosos da comunicação empreender bases para que essa falta de limites possa se reverter no aprofundamento do conhecimento social, na pluralidade de vozes, na maior circulação informativa e na construção de uma realidade mais justa. “É possível e necessário aos jornalistas trazer às pessoas o caráter incerto da verdade no qual suas opiniões são fundamentadas” (LIPPMANN, 2008, p. 306).

Não se trata de esvaziarmos a importância do jornalismo como atividade profissional construtora de sentido, nem de querermos fazer de todo cidadão um jornalista, trata-se, sim, de uma transformação da atuação profissional e também do público. O foco na interatividade e no jornalismo colaborativo são reflexos dessa postura que pode contribuir para uma compreensão menos massificada e mais rica, heterogênea e diversa da(s) realidade(s) social(is).

Se, conforme nos mostra Rocha (2011, p. 32) “os jornalistas não se sentem obrigados, diante do consenso social estabelecido pelo discurso ideológico dominante, de apresentarem as versões dissensuais, contra-hegemônicas ou contrafactuais”, a interatividade que propicia a participação do leitor nas discussões dos assuntos nos blogs acaba por dar uma contribuição

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muito importante para uma visão multifacetada dos acontecimentos, a partir do momento em que quem lê o blog tem acesso não só a notícia postada pelo blogueiro, mas também aos comentários feitos pelos outros leitores a respeito da notícia.

3 Jornalismo em tempos de Internet