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2 A SOCIEDADE, A MULHER E O JORNALISMO

2.1 JORNALISMO COMO MEDIADOR SOCIAL

O jornalismo, gestado e estruturado no contexto da organização social capitalista, é uma necessidade social, histórica e também cultural. As transformações do século XIX, materializadas em urbanização, alfabetização da população e avanços tecnológicos, propiciaram à sociedade lançar as bases materiais e sociais para o surgimento do jornalismo informativo (GENRO FILHO, 2012; NONATO, 2013; TRAQUINA, 2005). Afinal, uma sociedade complexa demanda meios de comunicação que sejam mediadores entre os acontecimentos e o público, exercendo os mais diversos papéis: prestação de serviço; abastecimento e até formação de consumidores; circulação de ideias e consolidação de uma

opinião pública; repercussão de fatos de interesse social ou de determinados grupos; integração de uma população e sua conexão com outras sociedades e o engajamento de pessoas em causas diversas, além de meios de entretenimento e cultura. Como diz categoricamente Figaro (2013, p. 147): “A necessidade social da informação produziu a necessidade do jornalismo”. E foi em meio ao crescimento das cidades, no século XX, que o jornalismo se consolidou como peça-chave do processo de difusão de informação, concomitante à “explosão midiática”, a partir da chegada do rádio, nos anos 1930, e da televisão, duas décadas depois. “Além de ser um difusor de informação, o jornalismo carrega instrumentos que possibilitam a reflexão e a compreensão dos fatos e da própria história, consolidando-se como fonte de conhecimento” (NONATO, 2013, p. 144).

Importante lembrar, entretanto, que os primórdios desse jornalismo que permeia nossa sociedade atual estão fincados no século XVII. O resgate da tese de Tobias Peucer, apresentada em 1690, na Alemanha, em um texto escrito originalmente em latim16, revela um trabalho com reflexões sobre ética jornalística, relação entre jornalismo e história, noticiabilidade e até mesmo o papel do mercado na produção da notícia.

Os jornais do século XVII17 mostram, afinal, que, ao contrário do que por vezes se lê, a imprensa noticiosa não é uma invenção norte-americana do século XIX, mas sim uma invenção europeia dos séculos XVI e XVII, que recupera uma tradição noticiosa (nunca perdida) iniciada com as Efemérides gregas e as Actas Diurnas romanas (SOUSA, 2004, p. 3).

Na primeira tese de doutorado sobre jornalismo, denominada Relatos jornalísticos (tradução de De relationibus novellis), Peucer (2004) associa o fazer jornalístico ao ato de construir a história da vida diária (capítulo IV18), afirma ter caráter de utilidade pública (capítulo XXVI) e, no capítulo VIII, pontua que, por força do desejo mercadológico do lucro, “tanto da parte dos que confeccionam os periódicos, como da parte daqueles que os comerciam, vendem” (PEUCER, 2004, p. 17), os periódicos se prestam a satisfazer a

16 O texto tornou-se conhecido quando da tradução para o alemão, em 1944. A versão em português data de 2000.

17 Como marca de um tempo, a imprensa do século XVII, foco do estudo de Peucer, é diferente dos jornais contemporâneos. Eram compêndios noticiosos que tratavam de pessoas interessantes, batalhas, acontecimentos envolvendo a corte etc. A periodicidade variava de anual a mensal, quinzenal. Sousa (2004) conta não haver consenso acerca do primeiro diário. Alguns historiadores, diz o autor, acolhem o Daily Courant, jornal inglês de 1702, como o pioneiro a circular diariamente. Outros historiadores, entretanto, dão esse crédito ao alemão Leipziger Zeitung, datado de 1660.

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curiosidade humana.

Não afirmaria que a utilidade dos periódicos seja tão grande como a da história escrita [...] Da mesma forma, não se pode negar que haja neles alguma utilidade que afeta a vida tanto privada como pública dos homens (PEUCER, 2004, p. 26).

Guardadas, obviamente, as particularidades de cada tempo (a tese de Peucer foi apresentada no fim do século XVII), podemos depreender que há muito de contemporâneo no que Peucer pontuou acerca do jornalismo, especialmente temas como ética profissional, critérios de noticiabilidade, mercantilização, sensacionalismo e, sobretudo, a função dos jornais junto ao leitor: fonte de entretenimento, satisfação da curiosidade, recebimento de informações úteis e “contador” de novidades. Para Peucer, a ética e a qualidade jornalísticas sobrepõem-se e estão atreladas à qualidade do jornalista (SOUSA, 2004; ADGHIRNI, 2017). Ele, no entanto, reduziu a utilidade dos periódicos em relação à história escrita. Hoje, podemos afirmar, os jornais são a própria história escrita. São documentos, em muitos casos únicos, essenciais para o conhecimento da vida cotidiana e de um povo. A consulta desses acervos em arquivos públicos são, atualmente, uma das principais fontes de informação para historiadores, pesquisadores, estudantes, escritores e os próprios jornalistas.

Feita essa crítica, de certa forma periférica em relação ao conteúdo principal, o texto de Peucer é atual. Ele nos revela que o papel do jornalismo em qualquer sociedade, de qualquer tempo, é fundamental no sentido de contribuir para a construção da história; para trazer temas de utilidade pública, efetivamente, ao público; para pautar temas que serão discutidos na sociedade. Ou seja, o jornalismo, a liberdade de expressão e a audiência estão imiscuídos entre os valores e costumes da sociedade.

O jornalismo que conhecemos hoje é fruto dos ideais do Iluminismo europeu dos anos 1700, que se propunha estabelecer uma esfera pública não vinculada ao Estado (NONATO, 2013; OLIVEIRA, 2005). Nos primórdios, tinha caráter revolucionário. Fazia denúncia, esclarecia, trabalhava, enfim, na formação de ideias e fomentava o debate. “A atividade nada tinha de mercantil” (OLIVEIRA, 2005, p. 2). Foi a imprensa, afirma também Oliveira (2005), que trouxe o direito à liberdade de expressão, notadamente um dos mais importantes valores para a construção da sociedade democrática atual. E, o mais importante, no nosso entendimento: sendo a liberdade de expressão um valor social pertencente a todos, “a liberdade de imprensa é imediatamente relacionada com o público, destinatário da

informação” (CORNU, 1994, p. 58). Ou seja, a liberdade de imprensa é importante, em ultima instância, à população em geral.

A razão de ser da informação jornalística alicerça-se no direito do público em saber o que interessa à vida da comunidade. Este direito construiu-se ao mesmo tempo que se afirmou a liberdade de imprensa, como um dos aspectos da liberdade de opinião. Os jornalistas são legitimados na sua atividade por esse dever para com o público (CORNU, 1994, p. 304).

Inicialmente, os iluministas recorriam aos panfletos como forma de pregar o direito à liberdade de expressão. Depois os livros e jornais impressos participaram também da introdução à esfera pública. A partir do século XIX, com os avanços tecnológicos e econômicos, o jornalismo mudou. “Deixou de ser uma atividade com caráter militante para se transformar em um empreendimento comercial. E tal mercantilização se acentua quando ele se articula dentro de um espaço maior, que é o sistema de comunicação de massas” (OLIVEIRA, 2005, p. 2). Surgiu a concorrência e a necessidade de sobrevivência do negócio, o que implicava em estratégias de venda do produto informação.

Mas não no Brasil dessa época. A primeira tipografia brasileira veio com a família real portuguesa, em 1808. O primeiro jornal nela impresso, no mesmo ano de sua chegada, foi a

Gazeta do Rio de Janeiro19. O Brasil já contava com um jornal nacional, o Correio

Brasiliense20, mas era editado em Londres (SODRÉ, 1966)21.

Ou seja, a instalação de uma instância do poder português no Brasil trouxe, a reboque, a necessidade do jornalismo, que servisse à corte e à população local como fonte de informação para os fatos políticos e sociais da época. A partir da instalação da imprensa no Brasil, os periódicos, ainda que produzidos artesanalmente, atuaram na cobertura de importantes momentos do país, como a independência da coroa portuguesa e a abolição da escravatura.

É nessa época – primeiras décadas do século XIX – que surge a imprensa feminina, junto da literatura e a consciência feminista (DUARTE, 2017). A autora afirma que também foi a vinda da família Real, com seus costumes europeus, como etiqueta, modismos e gosto pela literatura, que influenciou diretamente o aparecimento dessa imprensa. No Brasil, o

19 A Gazeta do Rio de Janeiro foi fundada em 10 de setembro de 1808, no Rio de Janeiro.

20 O Correio Brasiliense começou a circular em 1º de junho de 1808. Era mensal e impresso em Londres. Circulou até 1º de dezembro de 1822.

21 Há registros de jornais antes da chegada da Imprensa Régia, em 1808. “Relação da Entrada..., de 1747, é uma das raras peças gráficas produzidas durante os três séculos de proibição da tipografia no Brasil” (MELO; RAMOS, 2012, p. 26). Ainda conforme Melo e Ramos, Relação de Entrada... era produzido pelo português Antonio Isidoro da Fonseca. Entretanto, a coroa portuguesa, a partir de Lisboa, ordenou a interrupção das atividades do impressor no mesmo ano do lançamento.

primeiro periódico feminino de que se tem notícia é o Espelho Diamantino. Lançado no Rio de Janeiro, em 1827, tratava de assuntos como política, literatura, arte e moda (BUITONI, 1990; TEIXEIRA; VALÉRIO, 2008). Depois, em Recife, foi lançado O Espelho das Brasileiras (1831). Essas primeiras publicações apareciam nos moldes das publicações femininas europeias22.

A começar pelos nomes, essa imprensa surge e se define pelo sexo de suas leitoras (BUITONI, 1990). E denota o emergir de um tempo em que o olhar da mulher para a sociedade e da sociedade sobre a mulher começa a ser redirecionado. “O quadro começa a mudar com os ventos soprados da Europa e lentamente vai deixando de ser ‘heresia social’ instruir o sexo feminino” (DUARTE, 2017, p. 14, grifo da autora). Ou seja, o aparecimento desse segmento do jornalismo demonstra, ao mesmo tempo que acompanha, uma mudança do papel social da mulher no Brasil do século XIX. O que nos mostra a relevância sócio-histórica do jornalismo.

O Espelho Diamantino, que circulou no Rio de Janeiro, entre 1827 e 1828, fora fundado

por Pierre Plancher. Ao denominar o jornal como “periódico de política, literatura, belas artes, teatro e modas, dedicado às senhoras brasileiras”, o fundador chegou a publicar, em uma das edições, conforme reproduz Duarte (2017, p. 20), que manter as mulheres “em estado de estupidez, pouco acima dos animais domésticos, é uma empresa [com sentido de ser uma iniciativa] tão injusta quanto prejudicial ao bem da humanidade”. Ao longo das décadas, o apelo à educação estava presente na maioria desses jornais tidos como femininos. Afinal, até para que o jornalismo fosse de alcance para a maioria da população, era preciso que as pessoas fossem alfabetizadas. O primeiro Censo realizado no país, em 1872, mostrava que 81% da população livre era analfabeta. Ou seja, os jornais e revistas da época eram destinados aos poucos brasileiros e brasileiras letrados.

O século XX foi o período de expansão do jornalismo no Brasil, tanto o geral quanto o segmentado para o público feminino. Com a industrialização da imprensa e sua transformação em empresa, aumentaram as vendas e o interesse da publicidade, estreitando as relações entre jornalismo e mercado. Entendemos, entretanto, que, a despeito de o jornal ser mercadoria, ele está para além desse processo, uma vez que representa o retrato de uma época, está inscrito na

22 O primeiro periódico feminino de que se tem notícia é o Lady’s Mercury, que surgiu na Inglaterra, em 1693. Mais sobre o surgimento da imprensa feminina europeia e brasileira pode ser acessado na dissertação Jornalismo feminino em Santa Catarina: uma análise do suplemento Donna DC, do Diário Catarinense, defendida por nós, em 2012.

cultura, forma elos sociais e, sobremaneira, faz com que conheçamos a própria sociedade por meio das notícias e demais gêneros textuais do jornalismo. Citamos novamente a imprensa focada na mulher como exemplo. Se, no século XIX, Duarte (2017) conseguiu rastrear 143 jornais e revistas femininos e feministas, o mesmo trabalhado empreendido no século XX, ainda em andamento, apurou, por ora, cerca de 300 periódicos. Isso porque, além dos avanços tecnológicos e de mercado, o leque de interesses cada vez mais diversificado das mulheres, junto das transformações dos papéis femininos na sociedade, resultaram numa expansão ainda maior da segmentação.

Não só o segmento feminino da imprensa, mas, a partir da década de 1930, período da chegada do rádio, os meios de comunicação no Brasil passam efetivamente a se desenvolver. Em 1938, o Estado Novo23 regulamentou a profissão de jornalista.

Um dos objetivos e uma das principais intenções era o de registrar e cadastrar aqueles que tinham vínculos com a imprensa, pois se considerava jornalista todo aquele “homem de imprensa” devidamente registrado no Ministério do Trabalho; condição fundamental para sua admissão no jornal. Dessa forma, o Estado passava a ter o controle sobre aqueles que desempenhavam atividades em jornais (PETRARCA, 2010, p. 83).

Em 1950, com o surgimento da primeira emissora de televisão24, o mercado de trabalho do jornalista continuou em uma crescente. E se ampliou ainda mais na década seguinte, quando Assis Chateaubriand25 (1892-1968) começou a lançar no país os Diários e Emissoras Associados. Nesse período, a chamada imprensa feminina consolidou-se no Brasil, da forma como a reconhecemos nos dias de hoje. Inicialmente nos veículos impressos, a imprensa dirigida à mulher foi também para a rádio e para a TV, tornando-se igualmente meios de atualização da mulher em temas como educação dos filhos, relacionamento, culinária, moda, dentre outros abarcados por esse segmento da imprensa.

A jornalista Edna Savaget (1928-1998)26 é reconhecida por seu pioneirismo na produção de programas de rádio e televisão voltados para o público feminino. No fim dos

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Estado Novo abarca o conjunto de mudanças que houve entre 1930 e 1945, período conhecido como “Era Vargas”. Foi um período marcado pelo controle à imprensa, por meio de órgãos como o Departamento de Propaganda e Difusão Cultural (DPDC), criado em 1934 e extinto em 1939, quando foi substituído pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), que funcionou até 1945 (BARBOSA, 2007).

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TV Tupi de São Paulo, de Assis Chateaubriand.

25 Jornalista e empresário do ramo das comunicações, Assis Chateaubriand foi responsável por trazer a televisão para o Brasil – a TV Tupi, inaugurada em 3 de abril de 1950. Mais informações em MORAIS, Fernando. Chatô, o rei do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

26 Disponível em: <http://memoriaglobo.globo.com/perfis/talentos/edna-savaget/trajetoria.htm>. Acesso em: 17 maio 2019.

anos 1940 apresentava o programa Boa tarde, Madame, na Rádio Nacional. Em 1957 foi para a TV Tupi apresentar o programa Boa tarde. Nos anos 1960, já na Globo, desenvolveu o primeiro programa feminino da emissora, o Sempre Mulher.

Nas décadas de 1960 e 1970 se começa a falar em indústria cultural no Brasil (ADGHIRNI, 2017). Essa cadeia produtiva da comunicação aprofundou seus avanços tecnológicos, nas décadas de 1980 e 1990, dando contornos definitivos para o padrão atual de jornalismo que vemos não só no Brasil, mas em escala internacional. O cenário atual do jornalismo ocidental é chamado por Charron e Bonville (2016) de “jornalismo de comunicação”. O início dos 1980 seria o marco de chegada desse modelo de jornalismo de comunicação. Está atrelado à inserção de novos mercados e inovações tecnológicas. Envolve também a retomada de gêneros jornalísticos mais opinativos.

O “jornalismo de comunicação”, conforme explicam os organizadores da obra Natureza e transformação do jornalismo,27 Zélia Leal Adghirni e Fábio Henrique Pereira, é caracterizado como aquele pautado em “lógicas comerciais e de uma hiperconcorrência entre publicações, suportes e mensagens” (ADGHIRNI; PEREIRA, 2016, p. 15). Nessa fase, entre os anos 1980-1990, a mão de obra do jornalismo já era cerca de 40% formada por mulheres (ROCHA, 2004). A primeira jornalista mulher a ocupar a função de apresentadora do Jornal

Nacional - que estreou em 1969 e é atualmente o telejornal com maiores índices de audiência

(IBOPE, 2019)28 – foi Valéria Monteiro, em 1992. Antes dela, entretanto, a jornalista Márcia Mendes (1945-1979) apresentava eventualmente o JN, nos anos 1970. Desde 1996, quando Lillian Witte Fibe assumiu a bancada, o telejornal não mais deixou de ter uma mulher entre os apresentadores titulares29.