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2 A SOCIEDADE, A MULHER E O JORNALISMO

2.4 MAIS MULHERES, MAIS PLURALIDADE?

Ao estudar a cobertura dos movimentos feministas por parte da televisão, revistas femininas e jornais, Tuchman (1978) desenvolveu reflexões decisivas para a sustentação das ideias de representação simbólica e de aniquilamento simbólico41. Se os meios de comunicação são reflexo dos valores sociais dominantes, o fazem incorporando ideias ou ideais como representações simbólicas. O inverso disso seriam os atos de aniquilamento simbólico, que se materializam quando se condena, quando se trivializa ou quando se ignora comportamentos, ações, grupos de pessoas etc.

Embora haja uma população jornalista feminina superior a 60% no Brasil, de quase 50% em Portugal e igualmente representativa em vários outros países ocidentais, o aniquilamento simbólico (TUCHMAN, 1978) existe quando muito mais que 50% das fontes, entre oficiais e especializadas, ouvidas nas matérias, são compostas por homens. Ou quando as fontes mulheres são descritas e retratadas de forma que as desvie das suas aptidões profissionais e se concentre em atributos de beleza, vestimenta, estado civil e outras abordagens de ordem pessoal. Ou ainda quando se estereotipam comportamentos e características “natas”, como sensibilidade para mulheres e frieza/objetividade para homens.

Quando se quer refletir sobre a relevância do jornalismo para uma sociedade e da

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A expressão “aniquilamento simbólico” ou “aniquilação simbólica” foi inicialmente usada pela escola americana de comunicação George Gerbner (em alusão ao teórico fundador da teoria da enculturação) e por Gaye Tuchman, em 1978, para descrever a ação de grupos poderosos na sociedade que suprimem os menos poderosos, marginalizando-os a ponto de serem virtualmente invisíveis como um grupo representável (CARTER; STEINER, 2009).

presença da mulher nesse contexto, faz sentido olhar para o jornalismo por diferentes óticas. Uma delas, que vai nortear a pesquisa empírica que será apresentada e analisada nos capítulos à frente, é a ótica interna, obtida dentro das redações, junto aos profissionais que ali atuam. Outra maneira de perceber como o jornalismo se insere sob o ponto de vista de gênero é por meio do produto jornal. Ao menos duas dimensões podem ser observadas, a partir do que se diz e como se diz nos veículos de comunicação informativos: 1 – o quanto as mulheres são ouvidas, ou seja, o quanto elas aparecem como fontes especializadas para tratar de diferentes áreas do conhecimento, como política, economia, saúde e segurança, dentre outras editorias dos jornais. 2 – o que se fala e como se fala das mulheres nas matérias jornalísticas (GALLAGHER, 2009).

Nesta pesquisa, não nos centramos nos produtos jornalísticos. Interessam-nos as práticas e rotinas dentro das redações. Porém, aludimos a pesquisas e pesquisadores que fazem registros determinantes sobre a forma como as mulheres e as questões de gênero aparecem na mídia. De modo a pensar até que ponto a imprensa pode contribuir para a construção da mulher enquanto cidadã, baseado numa visão de igualdade e equidade (GALLAGHER, 2004). E também para avaliar se e em que medida a hibridização da profissão resulta em notícias mais igualitárias sob os aspectos das temáticas, das abordagens e das fontes consultadas. Afinal, as análises de produtos informativos (notadamente a notícia) podem revelar formas sutis de lidar com diferenças de gênero. Desde a seleção de perguntas, passando pela forma de apresentação das fontes entrevistadas, até o estilo de entrevista adotado, entre outros aspectos.

Para Gallagher (2004), o mais importante do estudo sob a perspectiva de gênero é o envolvimento de homens e mulheres conscientes dos desequilíbrios na representação de gênero nos conteúdos midiáticos. A questão central, para a estudiosa, é fazer com que profissionais de ambos os sexos compreendam que a “representação justa e diversificada de gênero contribuirá para uma produção de maior qualidade, o que provavelmente atrairá uma gama maior de audiências” (2004, p. 158). E uma forma de fazer isso é debatendo e refletindo sobre as masculinidades e feminilidades construídas no jornalismo.

Tuchman (1978) avalia a imprensa americana dos anos 1970. Conclui que as mulheres são pouco representadas na televisão, ainda que sejam maioria em termos populacionais (51%) e mais de 40% da força de trabalho. “A escassez de mulheres na televisão americana diz aos espectadores que as mulheres não têm grande importância na sociedade americana”

(TUCHMAN, 1978, p. 140). Mas não só ao quantitativo refere-se a pesquisadora. O tratamento e a imagem retratados das mulheres e dos homens dão conta da ideia de que as mulheres não contam muito. Isso acontece, por exemplo, quando pouco se mostra mulheres profissionais ou quando as retratam como inferiores ou subordinadas aos profissionais homens. Denegrir, vitimizar ou trivializar a imagem das mulheres são formas, diz Tuchman, de aniquilamento simbólico.

Tuchman verifica também um discurso de “mulher ideal” nas páginas impressas para as mulheres. Diferente da TV, que abarca um público maior e heterogêneo, as revistas embutem discursos distintos conforme o público a quem se dirigem. “Atraindo uma audiência menor e, por definição, mais especializada, as revistas para mulheres podem responder mais rapidamente às mudanças na posição das mulheres na sociedade americana” (TUCHMAN, 1978, p. 148). Por regra, entretanto, mesmo os distintos discursos dirigidos a diferentes perfis de mulheres – donas de casa, casadas, jovens solteiras, profissionais emancipadas, divorciadas etc. – vão ao encontro da criação de padrões de comportamento, como que discursos orientados no sentido de sugerir certa identidade (MAINGUENEAU, 2006), que ao fim e ao cabo limitam o papel da mulher (TUCHMAN, 1978).

Queremos dizer, com isso, que as diferentes revistas destinadas às mulheres trilham “caminhos paralelos” para alcançar públicos cujos interesses podem divergir ou convergir, dependendo da situação (BANDEIRA, 2012; 2015). Chamamos de “paralelos” no intuito de não colocá-los em posições opostas. Buitoni (2009) afirma que a história da imprensa feminina se desenvolve em dois planos: o tradicional (dos “deveres das mulheres”) e o progressista (que envolve os direitos delas). Ambos, porém, muitas vezes recaem a proposições de padrões comportamentais colocados de forma imperativa (BUITONI, 1990; 2009). Esses dois segmentos, que chamamos de “imprensa feminina” e “imprensa feminista”42

, são o berço do que Buitoni (2009) classifica como imprensa feminina moderna, resultado da mistura e da herança do feminino e do feminismo, acompanhado da tendência de segmentação do mercado editorial.

Nos jornais impressos, historicamente havia a preocupação de atrair leitoras. A estratégia era tratá-las como audiência especializada, contemplada em páginas ou suplementos

42 No Brasil, os jornalismos feminino e feminista datam do século XIX. A partir da metade do século XX, ganham força. Em 1975 os ideais feministas avançaram nas reivindicações de igualdade de direitos e o papel da mulher na sociedade. Woitowicz (2009) lembra que surgiram duas vertentes do movimento: a das lutas gerais, envolvendo questões de classe; e a da emancipação das mulheres em questões específicas, como a desigualdade entre os sexos. À frente nos deteremos mais detalhadamente ao feminismo.

diferenciados. “Para aumentar a circulação roubando os leitores uns aos outros e para cativar novos leitores, os jornais recrutaram repórteres femininas para escreverem sobre sociedade e moda” (TUCHMAN, 1978, p. 151). Essas matérias, explica a pesquisadora, vinham atreladas a anúncios de produtos que as mulheres poderiam comprar para a família. “A origem das notícias das mulheres revela o quanto os jornais têm tradicionalmente definido os interesses das mulheres como diferentes do dos homens” (1978, p. 151). O movimento feminista daquele fim dos anos 1970 é um fator de mudança desse cenário. Mas, mesmo a partir dele, a visão tradicional dos interesses das mulheres encontra resistência e ainda representa uma forma de alienação (à frente nos centraremos em inclusão, exclusão e formas de tratamento às questões de gênero). Conforme Veiga (2012):

As concepções e os atributos de gênero [importante deixar claro que esses atributos não se restringem ao sexo biológico, uma vez que homens e mulheres estão sujeitos à égide de uma cultura patriarcal] dos jornalistas estão imiscuídos nos processos de produção e nas notícias, revelando que o próprio jornalismo é constituído de hierarquias de gênero (VEIGA, 2012, p. 491).

Byerly e Ross (2008, p. 124-127) propõem, com base em pesquisa feita por elas com mulheres que atuam como ativistas feministas de mídia, quatro caminhos que nos ajudam a pensar essa relação entre sociedade, jornalismo, mulher e o papel de uns sobre os outros – e em relação aos outros. O caminho número um (1) é chamado de políticas para a mídia, representado pelas mulheres que produzem produtos jornalísticos voltados para a atuação feminista. O segundo caminho – que neste momento mais se aproxima da nossa discussão envolvendo as mudanças no jornalismo com olhar para questões que dizem respeito às mulheres, uma vez que trata de uma característica que reflete o conhecimento, a experiência e lições de mulheres que trabalham em empresas jornalísticas – (2) descreve estratégias de mulheres jornalistas que, de dentro dos jornais, buscam incluir conteúdos relacionados às mulheres, além de atuar numa melhora do status profissional da jornalista. O terceiro caminho apontado pelas pesquisadoras (3) é o das profissionais que, de fora dos veículos de comunicação, advogam em defesa da melhoria no tratamento das mulheres que atuam na mídia e que são retratadas pela mídia. Um exemplo são as pesquisadoras da área. O último caminho (4) é o de publicações femininas, que permitem às mulheres maior controle de produção e distribuição.

apresentam-se para nós como temas emaranhados em uma mesma teia, ou seja, não de forma isolada, e sim de maneira complementar, eles aparecem como molas propulsoras desse movimento que é possível observar no dia a dia da cobertura jornalística.

Uma consequência para o aumento da população feminina nos cargos de chefia das redações pode ser o fato de haver olhares diferentes sobre a cobertura, sobre as fontes a serem ouvidas, assim como estilos de texto – ainda que o equilíbrio ou desequilíbrio de gênero nas redações não seja determinado pelo quantitativo de profissionais de diferentes sexos. Acerca das fontes, Rodgers e Thorson (2003), citados no relatório do GMMP (2015), afirmam que, comparadas aos homens, as mulheres jornalistas são mais propensas a incluir fontes femininas ou representantes de minorias nas matérias.

Exemplo trazido pelos pesquisadores Correa e Harp, em 2011 (GMMP, 2015), trata da cobertura da vacina contra HPV. A comparação se deu entre um veículo com maioria de jornalistas homens e outro com distribuição paritária de gêneros. No primeiro jornal, as coberturas ficaram mais restritas a ouvir as fontes oficiais. No segundo, além de abordar o tema de forma mais diversa, ouviu, além das fontes oficiais, os cidadãos. Os estudos permitiram inferir que jornais com chefes mulheres tendem a incluir mais mulheres entre as fontes de informação e são a chave para promover equidade de gênero nas práticas jornalísticas (GMMP, 2015; UNESCO, 2014).

Na sociedade brasileira atual, por exemplo, fala-se em feminicídio43 e não mais em crime passional, como se via num passado recente. Uma das jornalistas entrevistadas nesta pesquisa, com 37 anos de idade e 16 de jornalismo, afirma não crer em uma coincidência de momentos. Vê a atual visibilidade da pauta sobre o assassinato de mulheres motivado por questões de gênero como consequência de uma bandeira feminina erguida fortemente no jornalismo atual e, sobretudo, pelas jornalistas que trabalham e acompanham o dia a dia da sociedade. Outros termos servem de exemplo, como sexismo, dupla jornada, assédio sexual. São temas e termos incorporados, sobretudo, por feministas na sociedade como forma de descrever a realidade social e de reduzir o que Byerly e Ross (2008) avaliam como desvantagem da mulher na esfera pública oficial, que é predominantemente masculina (2008, p. 118).

43 No Brasil, a Lei do Feminicídio foi promulgada em 2015, pela então presidente da República Dilma Rousseff, como forma de qualificar o crime de homicídio. O termo, entretanto, foi usado pela primeira vez na década de 1970. A pesquisadora sul-africana Diana Russell está entre as primeiras a usar essa expressão, cujo significado é a morte de mulheres motivada por razões de gênero.

Ainda assim, ressaltam Carter e Steiner, não basta incluir imagens mais realísticas e positivas de mulheres e meninas na imprensa, afinal, “sexismo não é meramente uma questão de representação midiática” (CARTER; STEINER, 2009, p. 4, tradução nossa44

). Neste ponto, as pesquisadoras referem-se à necessidade de se falar em igualdade salarial, igualdade na ocupação de cargos, direitos humanos, fim da violência doméstica, dentre outros aspectos que denotam desigualdade entre os gêneros.

A abordagem e a cobertura de temas são questões discutidas por esta pesquisa nas entrevistas com profissionais jornalistas, cujos resultados serão apresentados nos capítulos adiante. Importante esclarecer, entretanto, que, para aferir a abordagem dos assuntos e tipos de fontes incluídas nas matérias jornalísticas, seria necessário fazer um estudo de produto, que não é aqui nosso propósito.

Assim, os termos sociedade, jornalismo e mulher representam a conjunção dos três pontos que dão sustentação a este capítulo introdutório: o jornalismo como mediador social, como uma necessidade social, histórica e também cultural, como prestador de serviço e mecanismo de circulação de ideias. Em última instância, mediador entre os acontecimentos e a sociedade. À medida que teve relevância ampliada, profissionalizou-se, permeado pelos ideais de objetividade difundidos nos Estados Unidos do início do século XX, até os patamares que vemos atualmente. Paralelamente, acompanhamos a entrada das mulheres na profissão, fortemente impulsionadas pelo surgimento dos cursos superiores de jornalismo no país. Ao mesmo tempo, a cultura profissional se sustenta em meio a uma sociedade com forte herança heteronormativa, dentro e fora das redações, na produção e no produto jornalístico. Na próxima seção, passamos a discutir questões de gênero e do mundo do trabalho. Os conceitos de gênero e de divisão sexual do trabalho são importantes nesse caminho, a fim de delimitar a chamada feminização das profissões.

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