• Nenhum resultado encontrado

6 MULHERES JORNALISTAS: GÊNERO, PRÁTICAS E ROTINAS

6.1 AMBIENTE DE TRABALHO

6.2.1 Uma profissão de autonomia relativa

Ao ser questionada sobre os lados bom e ruim da função que ocupa, a jornalista 5A, que é editora executiva, cargo que se assemelha ao de chefe de redação no Brasil, diz que o pior é estar entre os editores e a direção, ou seja, mediar as decisões da direção, de modo que sejam executadas pelos editores de área. “A direção é quem manda, não é? É a última palavra. Às vezes a direção quer mesmo isto e os editores não entendem porque para eles não faz sentido. Eles têm essa resistência” (5A, 2017, entrevista à autora). A jornalista explica:

As direções têm conhecimentos, têm informações, que a redação não tem, que passa nomeadamente pelas relações financeiras da empresa, pelas relações com a administração, a relação com os clientes/anunciantes, que até aí eu não tenho, os editores e os redatores não têm, então as coisas que às vezes são pedidas não fazem sentido aqui embaixo [na redação] (5A, 2017, entrevista à autora).

Warren Breed (2016) aponta essa dimensão ao tratar de controle social na redação. Diz o autor que, num cenário ideal de um país democrático, não haveria controle ou políticas no jornal. O que importaria seria a natureza do acontecimento e a habilidade do repórter em lidar com os fatos. Na prática, contudo, tem-se que a direção estabelece uma política editorial que deve ser seguida pela redação. O relato da jornalista 5A, ao referir-se ao cotidiano da redação onde trabalha, é sistematizado por Breed (2016, p. 213) em três razões que geram esse “conflito” hierárquico: 1 – a existência de normas de ética jornalística; 2 – o fato de os subordinados tenderem a ter atitudes mais liberais do que a direção e invocarem as normas para justificar matérias que vão de encontro à política do jornal; 3 – o tabu ético que impede a direção de obrigar subordinados a seguirem a sua orientação.

Como se trata de algo que algumas vezes é admitido e outras vezes é velado, gera margem para conflitos entre direção e os jornalistas que produzem as matérias. “Uma vez que a política editorial é determinada pelos executivos, é obvio que eles não podem recolher e escrever pessoalmente as notícias. Têm que delegar estas tarefas aos staffers” (BREED, 2016, p. 215). Porém, é muito comum ouvir profissionais se considerarem autônomos, a despeito de ratificarem o fato de que “a última palavra é da direção” ou “a direção é quem manda”. E, ao avaliarem estender essa autonomia a sua equipe, existem respostas como a do editor 4A: a dificuldade de impor autoridade e chamar atenção de um subordinado mais velho, com mais experiência no jornalismo e tempo de casa. Ou de 5A, que, na posição de chefe dos editores,

observa que muitas vezes o editor de área não está disposto a impor um comando de produção de matéria para seu repórter por manter com ele uma relação amistosa, de parceria e até de dependência.

Isso não é uma linha de montagem [...] dependes dos trabalhos de terceiros [...] um editor depende muito da boa vontade também dos redatores, dos jornalistas. É uma engrenagem. Porque assim, se o jornalista [repórter] não estiver com vontade de colaborar, isto se reflete no trabalho do editor” (5A, 2017, entrevista à autora).

São experiências que remetem a uma postura hierárquica horizontalizada entre as chefias intermediárias e suas equipes de trabalho, de modo que, ainda que exerça um cargo de chefia, o editor mantém com o repórter uma relação mais pautada na troca e partilha de experiências e condutas profissionais – ao menos quando se trata da produção jornalística, propriamente. Não nos referimos, aqui, à gestão de pessoas de forma ampla (que inclui horários, escalas, promoções, demissões etc.). Referimo-nos, propriamente, ao processo de produção da notícia.

O que Breed chama de conformismo pode ser encarado como adaptação ao modus

operandi do veículo de comunicação. Ou mesmo uma perda da consciência de classe,

expressa no fato de que o profissional aproxima-se das proposições da empresa e não da categoria. O que acaba se refletindo em relações duradouras de trabalho. Alguns profissionais acreditam que o nível de autonomia, em última instância, se reflete na “cara” do jornal, por estar muito ligado à chefia – sobretudo a chefia mais alta, em nível de editor-chefe ou diretor de redação. Aos 45 anos, o jornalista 6A já vivenciou algumas trocas de direção ao longo dos seus 20 anos de redação. Para ele, esse modus operandi nada mais é do que “a cara da direção”. Conforme avaliação do profissional, o diretor propõe uma cultura organizacional que se mantém até que outro diretor ocupe o posto e proponha uma nova cultura de trabalho. Mesmo posicionamento de 3A, 36 anos, editor que há nove anos exerce cargos de chefia: “a cara do jornal muda a partir da direção”. Uma realidade, contudo, que não se dá assim de forma automática. Porém, distancia-se do que Pulitzer (2009, p. 19) chama de consciência de classe necessária entre os jornalistas, baseada na moral, educação e caráter.

O que no parágrafo acima chamamos de proposições da empresa é o que Cornu (1994, p. 255-256) trata como “liberdade modesta e concreta” da empresa midiática ou, ainda, “liberdade interna”. Modesta porque fica distante da chamada liberdade de imprensa em sentido lato, que por norma atinge a todos, enquanto sociedade com plenos direitos ao acesso

à informação, e não somente ao jornalista no exercício da sua profissão. Em meio a essas liberdades em nível de sociedade e de organização é que se questiona quão autônomo é o trabalho cotidiano do jornalista (CORNU, 1994).

4D, 30 anos, há oito anos no jornal D (começou ainda estudante de Jornalismo, fazendo estágio), entende que a autonomia está atrelada à relação com a chefia. Ele, que se mostra bastante crítico à empresa, pontua que até mudar a edição geral do jornal, pouco mais de um ano atrás, se sentia mais autônomo e, por consequência, mais confiante na definição de conteúdos e desdobramentos de pautas. 4D utiliza a metáfora do eletrocardiograma: “Às vezes tem uns picos de alta autonomia, às vezes de baixa autonomia. Aí fica meio que esse gráfico de batimento cardíaco” (4D, 2018, entrevista à autora).

É até mesmo possível observar uma diversidade de compreensões do sentido de autonomia, por parte dos jornalistas. Autonomia pensada pela perspectiva da tomada de decisões editoriais (tanto para execução de matérias quanto para seleção de temas a incluir na edição), autonomia na condução das equipes, autonomia em relação à direção da empresa ou ainda autonomia do jornal frente aos anunciantes privados e públicos.

Amparado em Bourdieu (1997), Schmitz pontua que:

Por ‘autonomia jornalística’ não se entende ‘liberdade de imprensa’ nem do ‘poder do jornalista’ e menos ainda do jornalismo como ‘quarto poder’, mas a influência sobre os mecanismos do campo jornalístico, cada vez mais sujeito às exigências da sociedade e do mercado (leitores, audiência, anunciantes) em primeiro lugar sobre o jornalista e, em seguida, em parte por meio dele, sobre os diferentes campos (SCHMITZ, 2017, p. 4-5, grifos do autor).

Bourdieu (1997) advoga a autonomia como uma conquista contra as injunções econômicas e políticas. Ao mesmo tempo em que defende o campo jornalístico139 como menos autônomo, se comparado a outros campos, a exemplo da arte e da ciência, uma vez que está sob a pressão do campo econômico, traduzido em índice de audiência e anunciantes.

O campo jornalístico tem uma particularidade: é muito mais dependente das forças externas que todos os outros campos de produção cultural, campo da matemática, campo da literatura, campo jurídico, campo científico etc. Ele depende muito diretamente da demanda, está sujeito à sanção do mercado (BOURDIEU, 1997, p. 76).

139 Bourdieu (1997, p. 57) define campo jornalístico como “um espaço social estruturado, um campo de forças – há dominantes e dominados, há relações constantes, permanentes, de desigualdade, que se exercem no interior desse espaço – que é também um campo de lutas para transformar ou conservar esse campo de forças.

Razão pela qual a autonomia jornalística, de forma geral, fica comprometida. Ao que Bourdieu posiciona o campo jornalístico, categoricamente, como “relativamente autônomo”. Não obstante, quando pensamos no grau de autonomia de um jornalista, no contexto de uma empresa, como ao que o jornalista 4D se refere, é preciso levar em conta a “saúde” da imprensa, como um todo, no raio de ação do profissional (quanto menor o número de potenciais empregadores, maior a insegurança do jornalista empregado) e a posição do seu jornal comparado aos demais órgãos de imprensa (BOURDIEU, 1997).

O jornal B é considerado pela direção como independente de qualquer governo. O que é possível somente em razão da vendagem. Obter 60% do mercado de venda de jornais, no país, significa garantir a independência do veículo.

O nosso patrão, prioritariamente, são as pessoas que todo dia compram o jornal. No dia em que estas pessoas deixarem de comprar o jornal, é de fato um problema gravíssimo. Enquanto essas pessoas, muitas milhares de pessoas comprarem o jornal, é sinal que o jornal está independente (2B, 2017, entrevista à autora).

Justo por isso a equipe valoriza tanto o que seu público quer saber. “A audiência é muito importante. E é importante que, quanto mais pessoas comprem o nosso jornal, mais pessoas saibam que podem contar com determinado tipo de informação” (4B, 2017, entrevista à autora). Fundamental pensarmos, contudo, que, para haver independência total de modo a focar nos assuntos de interesse público, o jornal precisa estar, inclusive, independente do público (assunto no qual entraremos a seguir). A jornalista 4B pondera, também, sobre a autonomia do jornalismo enquanto negócio e prestação de serviço para a sociedade. “Há a questão do financiamento dos meios de comunicação. Quanto mais gente houver a comprar jornais, seja qual for o jornal, mais emprego e mais autonomia financeira vai haver para que esse trabalho seja bem feito” (4B, 2017, entrevista à autora).

O jornal D, segundo os números a que tivemos acesso e conforme avaliações dos profissionais que ali estão, vai bem financeiramente. 60% do jornal que circula diariamente são compostos por anúncio (inclusive, o espaço comercial no jornal D é o mais caro entre os veículos do grupo de comunicação a que pertence). A jornalista 5D trabalhava em outro veículo do grupo. Ao ser transferida, lembra-se de ter se sentido “rebaixada”. Hoje, passados três ou quatro anos, se apercebe de que galgou espaço em um jornal com mais visibilidade e interesse por parte da empresa. “Houve um momento em que deixou de ser o jornal que se

espreme sai sangue, para ser o carro-chefe da empresa” (5D, 2018, entrevista à autora).

Pode parecer contraditório, mas, apesar de ser o jornal com mais estabilidade financeira, comparado aos concorrentes do mesmo estado, o jornal D é o que menos paga aos seus jornalistas, conforme afirmação do profissional 1D. “Eu não acredito que eu recebo bem aqui no jornal. Os jornalistas daqui são os que recebem menos [comparado aos jornais concorrentes]” (1D, 2018, entrevista à autora). O porquê disso ele não sabe, mas percebe ser como uma cultura que se perpetuou. Ainda assim, o jornalista conta que seus colegas de trabalho, assim como ele mesmo, não almejam trabalhar para a concorrência, justo por estar em meio a crises financeiras, que resultam em processos de demissão. “É uma estabilidade que a gente tá tendo aqui, porque é o jornal que cresce, né? E os outros, não, os outros tão afundados em crise, então é uma faca de dois gumes” (1D, 2018, entrevista à autora).

O jornalista 4D, que trabalha no mesmo jornal que 1D, reforça os apontamentos do colega, ao comparar com a realidade dos concorrentes:

Eu sei que o [jornal X] não tá pagando direito, tá atrasando. O [jornal Y] não tava recolhendo fundo de garantia. Então assim, eu acredito que tenha um clima talvez mais pesado por essas questões. Quanto a isso, a gente não tem nada do que reclamar. Salário sempre em dia, pagamento todo certinho, quando tem aumento é feito, férias, tal. Então, assim, isso gera uma estabilidade, né? Precisei usar meu plano médico, o plano tava em dia. Teve um colega no [Jornal Y] que precisou usar o plano médico e descobriu que ele tava sendo descontado, mas a empresa não estava pagando. Então ele teve que ir pro SUS. Então, assim, quanto a isso, não há o que reclamar, sabe? (4D, 2018, entrevista à autora)140.

Ou seja, o desejo de trabalhar em uma empresa sem estar a todo tempo assombrado pelo fantasma da demissão se sobrepõe à vontade de receber um salário mais justo. O que, segundo Bourdieu (1997), resulta em obstáculo definidor para a falta de autonomia do jornalista. E demissão é tema recorrente nas falas entre os profissionais e, portanto, norteia o ambiente de trabalho.

Demissões coletivas são igualmente realidades no Brasil e em Portugal. No período em que estivemos na redação do jornal B, estava em curso uma demissão em massa. No jornal C, ocorrera menos de três meses antes. E ainda era possível sentir os efeitos do processo na fala dos profissionais. O jornalista 3C, há 18 anos no jornal C, contabiliza, nesse período, seis ou

140 Como forma de não expor os dois jornais que circulam no mesmo Estado do veículo onde realizamos trabalho de campo, uma vez que não ouvimos as respectivas empresas, optamos por suprimir os nomes da fala do jornalista.

sete processos de enxugamento de profissionais. Nos jornais A e D não havia indicativos de estar havendo, ter havido recentemente ou mesmo perspectivas (boatos) de demissões coletivas num futuro próximo.

No jornal D, entretanto, percebemos que algumas mudanças haviam sido anunciadas no nosso primeiro dia de trabalho na redação. Tanto assim que a editora, que nos atenderia no início da tarde, pediu que aguardássemos por cerca de uma hora, pois a equipe havia sido chamada para uma reunião de última hora com a direção. Ocasião em que foram feitos ao menos dois anúncios importantes, que nos foi relatado pela editora: 1 – a demissão da superintendente de jornalismo do grupo (que havia sido, inclusive, nosso primeiro contato com o veículo, a fim de explicar a entrevista e solicitar autorização para entrar na redação); e 2 – a determinação de que a primeira edição do impresso passaria a fechar meia hora mais cedo (em vez de 20h30min, 20h). Mas, ao que os dias seguintes indicaram, não se tratava de um início de processo de demissão, e sim um desligamento pontual.

O tema demissão coletiva não foi diretamente abordado por essa pesquisa, mas o assunto surgiu em muitas das entrevistas, naturalmente por conta das realidades que as redações estavam vivendo ou mesmo em razão da história pregressa de profissionais mais experientes, que já vivenciaram crises nas empresas jornalísticas pelas quais passaram. Como, por exemplo, com a jornalista 5A, que lembra ter presenciado duas demissões em massa no jornal onde trabalha. Foi, inclusive, um dos argumentos que usou com o filho de 19 anos na tentativa de demovê-lo da ideia de cursar comunicação. Outro caso é o de 7D, uma profissional que já passou pela experiência de ser desligada durante um processo de demissão coletiva de profissionais – inclusive no mesmo veículo em que voltou a trabalhar em janeiro de 2018. Já a jornalista 2D está desde 2011 no mesmo veículo. Desde sua chegada, percebe uma redução gradativa da equipe, o que a deixa em alerta: “A gente fica, né, insegura, pensando como é que vai ser” (2018, entrevista à autora).

Ao relembrar os enxugamentos que presenciou ao longo de sua experiência de redação, o jornalista 3C ressalta que o jornal C historicamente é comandado por mulheres. Quando ele ingressou no veículo, até mesmo a editora de esportes era uma mulher. A última demissão coletiva, entretanto, resultou em uma mudança exponencial na redação. Afora a chefia maior, as editorias de área passaram todas ao comando de homens. “Prestei até atenção nisso, outro dia desse que a gente tava tendo uma reunião. A única mulher era a editora executiva” (3C, 2018, entrevista à autora). A jornalista 4C, há 15 anos no jornal C, fora desligada da empresa

em março de 2018, quando houve a demissão coletiva. Entretanto, reivindicou judicialmente e teve direito à reintegração à empresa, uma vez que, como está a menos de dois anos de se aposentar, não poderia ser demitida. Assim, por um mês ficou afastada. Ela tem uma hipótese para essa recente mudança de gênero nas chefias de áreas:

[A chefia maior] se preocupou, teve uma estratégia de [promover] pessoas com quem ela podia contar mais. Por exemplo, [2C], ele aguenta muita coisa. [2C] chega de manhã e sai de meia noite e meia. [O editor de política e economia] também. Os meninos, assim, eles recebem e não reclamam. Mulher, eu acho que reclamaria mais. Então, assim, por exemplo, eu acho que neste aspecto, talvez haja um pouco de preconceito ainda, porque a mulher tem outras atribuições (4C, 2018, entrevista à autora).