Para compreender a Justiça Restaurativa é preciso desapegar-se do pensamento linear e cartesiano, ir além também do pensamento sistêmico para utilizar-se do pensamento complexo - ou seja, "ver a terra plana e redonda ao mesmo tempo" (MARIOTTI, 2000, p. 30). É necessário mudar o foco epistemológico – mudar as lentes - como sugere Zehr, que assim vislumbra as noções de crime e justiça.
“Crime is a violation of people and relationships. It creates obligations to make things right. Justice involves the victm, the offender and the community in a search for solutions wich promote repair, reconciliation and reassurance" (ZEHR, 1990, p.181) (Tradução da autora: Crime é uma violação da pessoa e das relações. Ele cria obrigações de fazer as coisas corretas. Justiça envolve a vítima, o ofendido e a comunidade em busca de soluções que promovam reparação, reconciliação e reafirmação).
O crime, para a Justiça Restaurativa, não é apenas uma conduta típica e antijurídica que atenta contra bens e interesses penalmente tutelados, mas, antes disso, é uma violação nas relações entre o infrator, a vítima e a comunidade.
Para uma melhor compreensão, e garantia de uma comparação fiel aos conceitos jurídicos, sociais, éticos e políticos, que envolvem justiça retributiva, e Justiça Restaurativa, serão apresentadas algumas tabelas 3, que apesar de simples, garantem a base de um pensamento acadêmico social que será desenvolvido a seguir (PINTO, 2011, p. 5).
VALORES
JUSTIÇA RETRIBUTIVA JUSTIÇA RESTAURATIVA Conceito estritamente jurídico de
Crime – Violação da Lei Penal - ato contra a sociedade representada pelo Estado
Conceito amplo de Crime – Ato que afeta a vítima, o próprio autor e a comunidade causando-lhe uma variedade de danos
Primado do Interesse Público (Sociedade, representada pelo Estado, o Centro) – Monopólio estatal da Justiça Criminal
Primado do Interesse das Pessoas Envolvidas e Comunidade – Justiça Criminal participativa
Culpabilidade individual voltada para o passado – Estigmatização
Responsabilidade, pela restauração,
numa dimensão social,
compartilhada coletivamente e voltada para o futuro
Uso Dogmático do Direito Penal Positivo
Uso Crítico e Alternativo do Direito
Indiferença do Estado quanto às necessidades do infrator, vítima e comunidade afetados – desconexão
Comprometimento com a inclusão e Justiça Social gerando conexões
Mono-cultural e excludente Culturalmente flexível (respeito à diferença, tolerância)
Dissuasão Persuasão
3
Essa análise é baseada nas exposições e no material gentilmente cedido pelas Dras. Gabrielle Maxwell e Allison Morris, da Universidade Victoria de Wellington, Nova Zelândia, por ocasião do memorável Seminário sobre o Modelo Neozelandês de Justiça Restaurativa, promovido pelo Instituto de Direito Comparado e Internacional de Brasília, em parceria com a Escola do Ministério Público da União e Associação dos Magistrados do DF, em março de 2004.
PROCEDIMENTOS
JUSTIÇA RETRIBUTIVA JUSTIÇA RESTAURATIVA Ritual Solene e Público Ritual informal e comunitário, com as
pessoas envolvidas
Indisponibilidade da Ação Penal Princípio da Oportunidade Contencioso e contraditório Voluntário e colaborativo Linguagem, normas e procedimentos
formais e complexos – garantias. Procedimento confidencialidade informal com Atores principais – autoridades
(representando o Estado) e profissionais do Direito
Atores principais – vítimas, infratores, pessoas da Comunidade, grupos religiosos, ONGs.
Processo Decisório a cargo de autoridades (Policial, Delegado, Promotor, Juiz e profissionais do Direito – Unidimensionalidade
Processo Decisório compartilhado com as pessoas envolvidas (vítima, infrator e comunidade) – Multi- dimensionalidade
RESULTADOS
JUSTIÇA RETRIBUTIVA JUSTIÇA RESTAURATIVA Prevenção Geral e Especial
- Foco no infrator para intimidar e punir
Abordagem do Crime e suas Conseqüências
- Foco nas relações entre as partes, para restaurar
Penalização:
Penas privativas de liberdade, restritivas de direitos, multa Estigmatização e Discriminação
Pedido de Desculpas, Reparação, restituição, prestação de serviços comunitários
Reparação do trauma moral e dos Prejuízos emocionais – Restauração e Inclusão
Tutela Penal de Bens e Interesses, com a Punição do Infrator e Proteção da Sociedade
Resulta responsabilização espontânea por parte do infrator
Penas desarrazoadas e
desproporcionais em regime carcerário desumano, cruel, degradante e criminógeno – ou – penas alternativas ineficazes (cestas
Proporcionalidade e Razoabilidade das Obrigações Assumidas no Acordo Restaurativo
básicas)
Vítima e Infrator isolados, desamparados e desintegrados. Ressocialização Secundária
Reintegração do Infrator e da Vítima Prioritárias
Paz Social com Tensão Paz Social com Dignidade
EFEITOS PARA A VÍTIMA
JUSTIÇA RETRIBUTIVA JUSTIÇA RESTAURATIVA Pouquíssima ou nenhuma
consideração, ocupando lugar periférico e alienado no processo. Não tem participação, nem proteção, mal sabe o que se passa.
Ocupa o centro do processo, com um papel e com voz ativa. Participa e tem controle sobre o que se passa.
Praticamente nenhuma assistência psicológica, social, econômica ou jurídica do Estado
Recebe assistência, afeto, restituição de perdas materiais e reparação
Frustração e Ressentimento com o sistema
Têm ganhos positivos. Suprem-se as necessidades individuais e coletivas da vítima e comunidade
EFEITOS PARA O INFRATOR
JUSTIÇA RETRIBUTIVA JUSTIÇA RESTAURATIVA Infrator considerado em suas faltas e
sua má-formação
Infrator visto no seu potencial de responsabilizar-se pelos danos e conseqüências do delito
Raramente tem participação Participa ativa e diretamente Comunica-se com o sistema por
Advogado
Interage com a vítima e com a comunidade
É desestimulado e mesmo inibido a dialogar com a vítima
Tem oportunidade de desculpar-se ao sensibilizar-se com o trauma da vítima
É desinformado e alienado sobre os fatos processuais
É informado sobre os fatos do processo restaurativo e contribui para a decisão
Não é efetivamente
responsabilizado, mas punido pelo fato
É inteirado das consequências do fato para a vítima e comunidade
Fica intocável Fica acessível e se vê envolvido no processo
Não tem suas necessidades consideradas
Supre-se suas necessidades
Após estes apontamentos apresentados nas tabelas anteriores que mostram de forma resumida breves anotações sobre as concepções das justiças retributiva e Restaurativa, pode-se partir para o debate sobre a posição da Justiça Restaurativa em relação ao sistema de justiça criminal. Esse debate envolve a discussão de se a Justiça Restaurativa estaria em plena oposição à justiça criminal tradicional ou, caso não, se sua estrutura funcional poderia ser aplicada pelo sistema judiciário brasileiro atual em um curto espaço de tempo.
Recentemente, alguns teóricos, como Roche (apud PALLAMOLLA, 2009, p. 14 e 15), têm dito que as duas formas não são totalmente opostas, pois os dois sistemas convivem em todos os países onde a Justiça Restaurativa é aplicada.
A dualização entre Justiça Restaurativa e justiça retributiva pode ocasionar uma série de problemas: (1) desconsideração da complexidade dos processos de punição fora do sistema de justiça; (2) simplificação do modelo retributivo – que não é uniforme –, e que fica reduzido à vingança, mas, na verdade, está adstrito a limites, ademais de atuar, em muitos países, com a Justiça Restaurativa inserida no sistema de justiça criminal; (3) incentivo à conclusão de que tudo que não for Justiça Restaurativa é ruim; e (4) crença na possibilidade de se extinguir qualquer retribuição e punição do sistema de justiça.
A forma de atuação conjunta que se pretende estabelecer entre os dois modelos de justiça é a que possibilitar que os espaços e lógicas de ambos sejam preservados, evitando-se, sobretudo, que a Justiça Restaurativa seja contaminada pela lógica punitiva do sistema de justiça criminal. Com base nessas premissas, entende-se que a relação adequada entre estes modelos será a que possibilitar à Justiça Restaurativa atuar em conjunto com o sistema de justiça criminal. Nesse sentido, Pelikan (apud PALLAMOLLA, 2009, p. 14-15) destaca que o adequado seria que a Justiça Restaurativa mantivesse uma “autonomia condicional” em relação ao
sistema de justiça criminal, ou seja, atuasse em conjunto com ele, porém com estrutura separada e certa autonomia.
Logo, ante o exposto, pode-se observar que a proposta de Pelikan vai ao encontro do chamado “modelo de bitola dupla” (dual track model) que prevê a Justiça Restaurativa atuando lado-a-lado com a justiça criminal, de maneira que reste mantida a independência normativa de ambas. Neste modelo, há cooperação eventual entre os sistemas, possibilitando que vítima e ofensor possam migrar de um para o outro, de acordo com certas regulamentações estabelecidas pelos programas de Justiça Restaurativa e pelo sistema de justiça criminal. O caso, então, vai para a Justiça Restaurativa e retorna ao sistema de justiça criminal para ser arquivado (dependendo do delito) ou o acordo impactará na sentença.
Observando-se esta formatação sugerida por Pelikan (apud PALLAMOLLA, 2009, p. 14-15), e tomando-a como base, pode-se dizer que:
A Justiça Restaurativa pode ser aplicada em diversos momentos da atuação do sistema de justiça criminal, sendo possível o encaminhamento do caso nas seguintes fases: (1) Na fase policial ou pré-acusação, quando é feito pela Polícia ou pelo Ministério Público; (2) Na fase pós-acusação, mas antes do início do processo, quando é feito pelo Ministério Público; (3) Na etapa do juízo, antes do julgamento ou ao tempo da sentença, hipótese que é feito pelo juiz; (4) Na fase da aplicação da pena, momento em que a Justiça Restaurativa aparece como alternativa ao cárcere ou soma-se a ele.
Dentre estas possibilidades, em razão do observado quando da pesquisa em campo, ocorrida no Projeto Piloto de Aplicação da Justiça Restaurativa no Núcleo Bandeirantes em Brasília, considera-se mais adequada a aplicação da Justiça Restaurativa logo quando do ingresso do caso no sistema de justiça criminal. Assim que a justiça comum recebe o inquérito policial, é feita uma triagem para ver quais casos podem e devem ser enquadrados para a aplicação da Justiça Restaurativa. Isso acontece por dois motivos distintos: não cabe a atuação de Justiça Restaurativa em todos os casos, como por exemplo, aqueles que ocorreram com uso de extrema violência, como em um estupro; e em segundo plano e não menos importante, para que o uso tardio da Justiça Restaurativa não comporte o risco de sobreposição dos modelos restaurativo e punitivo, o que ocasiona a violação do princípio ne bis in idem, em outras palavras, faz com o que ofensor responda duplamente pelo mesmo ato.
Analisando-se o cenário do Poder Judiciário brasileiro, e considerando o que foi visto na experiência do Núcleo Bandeirante em Brasília, o mais acertado parece
ser outorgar o encaminhamento do caso ao Ministério Público ou ao Juiz, dependendo do momento em que for feito. Isso porque, estes dois atores estão legitimados a verificar se estão presentes os indícios de autoria e constituindo materialidade que autorizam o envio do caso à Justiça Restaurativa, uma espécie de triagem.
Nesse sentido, cabe frisar alguns critérios que devem se observados para se encaminhar um caso à Justiça Restaurativa.
É imprescindível que haja uma vítima personalizada, certa entidade da infração, o que faz com que se exclua a possibilidade de envio de casos de bagatela e de casos onde não exista o mínimo esclarecimento sobre fato e circunstâncias, o reconhecimento do fato (que não equivale a confissão em termos jurídicos), além da não proibição aos reincidentes de participarem. Outros critérios devem ficar a cargo dos próprios programas restaurativos, e não nas mãos do sistema de justiça, a fim de evitar-se, dentre outras conseqüências negativas, a discricionariedade no envio dos casos (PALLAMOLLA, 2009, p. 14-15).
Observados esses requisitos, acredita-se que a Justiça Restaurativa poderá contribuir para a redução do número de casos encaminhados ao sistema de justiça criminal tradicional, o que reduzirá, por conseguinte, a aplicação de sanções punitivas, e incrementar o acesso à justiça, eis que oferece à sociedade outra possibilidade de resolução de conflitos, mostrando que existem outras respostas possíveis ao delito, além da punitiva.