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2.3 Discussão dos Resultados

2.3.1 Juventude e Modos de Subjetivação: desnaturalizando a identidade do

Diante da apresentação da revisão de literatura, é interessante a discussão em contraposição a uma certa naturalização da identidade do “adolescente infrator”, de modo a subverter a ideia de uma construção de identidade como algo fixo e imutável no sujeito, além de situar a infração como um fenômeno historicamente construída, contrapondo-se a uma visão individualizante e estigmatizante do jovem autor de atos infracionais.

Segundo Guattari e Rolnik (1986, p. 31), “a subjetividade não é passível de totalização e centralização no indivíduo”. A “identidade” no modelo neoliberal nada mais é do que uma produção em massa, serializada, registrada e modelada. O indivíduo exerce a posição de consumidor de “sistemas de representação, sensibilidade, etc – sistemas que não têm nada a ver com categorias naturais universais”14. Como os referidos autores asseveram15:

[…] a identidade é um conceito de referenciação, de circunscrição da realidade a quadros de referência […] é aquilo que faz passar a singularidade de diferentes maneiras de existir por um só e mesmo quadro de referência identificável […] o que interessa à subjetividade capitalística, não é o processo singularização, mas justamente esse resultado do processo, resultado de sua circunscrição a modos de identificação dessa subjetividade dominante.

A produção de subjetividades “capitalísticas” instaura, assim, processos de individualização e apresenta a tendência a bloquear processos de singularização. A experiência deixa de exercer a referência para a criação de modos de organização do cotidiano, esvaziando- se o caráter processual das vivências e ocasionando na interrupção de processos de singularização. Dessa maneira, os sujeitos passam a se organizar a partir de padrões universais, 14 GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Cultura: um conceito reacionário. Micropolítica. Cartografias do Desejo,

1986, p. 32 15 Ibid., p. 68-9

que os serializam e os individualizam (GUATTARI, ROLNIK, 1986).

Guattari e Rolnik (1986)16 apontam três funções de sujeição da economia subjetiva

capitalística: a culpabilização, a segregação e a infantilização. A primeira função diz respeito a uma exigência de referência por parte do sujeito: “Quem é você?” “Qual posição social ocupa para emitir tal fala?”. Esses procedimentos de culpabilização estão dissolvidos nos valores capitalísticos. A segregação, atrelada a culpabilização, pressupõe a identificação do sujeito com quadros de referência imaginários. A ordem social instaura todo um campo de valorização social, estabelecendo “sistemas de hierarquia inconsciente, sistemas de escalas de valor e sistemas de disciplinarização” (Ibid., p. 41).

A infantilização – dos loucos, das mulheres e de certos setores sociais, por exemplo-, indica uma constante e intensa mediação pelo Estado de tudo o que o sujeito faz ou possa vir a fazer. A relação de dependência do Estado configura-se como um elemento essencial para a manutenção de subjetividades capitalísticas, sendo toda e qualquer troca econômica e produção cultural e social mediada pelo Estado17.

A partir das ideias de Foucault e da Filosofia da Diferença, parte-se da consideração de que não há o estabelecimento de identidades fixas para os ditos “jovens infratores”, identidades estas que insistem em individualizar e interiorizar questões sociais, endossando práticas discursivas e não discursivas que promovem a psiquiatrização e a criminalização de jovens “em conflito com a lei” (COIMBRA; BOCCO; NASCIMENTO, 2005).

Desloca-se essa noção de um sujeito essencializado para os processos de subjetivação, ou seja, o diagrama de forças que compõem determinados modos de existência e conformam certos tipos específicos de indivíduos – os jovens tidos como violentos e infratores. Como afirmam Guattari, Rolnik (1986), em vez de operarmos por uma lógica desenvolvimentista e individualizante, preferimos pensar em termos de processos de subjetivação, no qual o sujeito encontra-se em um permanente devir. A ideia de devir refere-se à afirmação de multiplicidades, pluralidades, a possibilidade ou não de processos de singularização virem à tona.

Cabe problematizar a lógica desenvolvimentista vinculada à noção de adolescência, uma vez que traz a naturalização e a universalização dessa etapa do desenvolvimento e considera que todos passariam de forma homogênea por esta fase, expressando-se uma nítida concepção a-histórica (BOCCO, 2006). Em contrapartida a esta lógica desenvolvimentista, que

16Ibid. 1986. 17 Ibid., 1986.

estabelece parâmetros para a normalidade e o “desvio” a partir do grau de aproximação que o sujeito estabelece com as características e atributos psicológicos delimitadas como inerentes a essa etapa da vida (COIMBRA; BOCCO; NASCIMENTO, 2005), parte-se da consideração de que a adolescência é um fenômeno engendrado socialmente.

A “identidade adolescente” parte de uma visão cartesiana racionalista- desenvolvimentista construída a partir da crença na primazia da razão, a qual situa o adolescente em um progressivo aprimoramento na aquisição de habilidades e competências, principalmente no quesito racional, proporcionando ao sujeito um melhor conhecimento acerca de si mesmo e do mundo. A crença na primazia da razão estabelece, assim, um ponto de partida e um ponto de chegada – o nível da racionalidade madura, introduzindo a necessidade do estabelecimento de uma identidade do sujeito individual para demarcar o nível de amadurecimento por ele obtido (COIMBRA; BOCCO; NASCIMENTO, 2005).

Subverte-se, portanto, a concepção desenvolvimentista que exacerba atributos biologizantes e psicologizantes como inerentes à adolescência, além da construção de uma subjetividade moldada pelo modelo neoliberal que adensa uma lógica individualista e culpabilizante, remetendo ao sujeito os méritos e fracassos presentes em seu desenvolvimento. (COIMBRA; BOCCO; NASCIMENTO, 2005). Considerar uma “identidade adolescente” implica em afirmar um jeito correto de ser e estar no mundo, pressupondo certa essencialização do “ser adolescente” endossada por discursos científico-racionalistas.

Contrapondo-se ao atravessamento de uma subjetividade capitalística no modo de ser juvenil contemporâneo, que estabelece parâmetros que homogeneízam maneiras de ser e estar no mundo, enrijecendo territórios existenciais juvenis, afirmam-se linhas de fuga que operam na multiplicidade e diferença, afirmando outras formas de funcionamento e de organização e enfatizando processualidades em modos de subjetivação juvenis. (COIMBRA; BOCCO; NASCIMENTO, 2005).

Tendo em vista os resultados desta revisão de literatura, pensar em juventudes, em vez de reafirmar uma “identidade adolescente”, constitui-se como uma ação política importante, uma vez que a noção de comportamentos fixados e maneiras de ser de uma determinada faixa etária é substituída pela evidenciação de intensidades juvenis no público em questão: jovens que cometeram ato infracional, enfatizando as forças que atravessam e constituem os ditos “potencialmente perigosos”, em vez de reafirmar normas e modelos de desenvolvimento a serem seguidos (COIMBRA; BOCCO; NASCIMENTO, 2005).

categoria juventude, universalizando o processo de subjetivação jovem que, capturada pela lógica do capital, passa a ser um modo de viver mais desejado do que a própria adolescência, uma vez que não apresenta em si a noção de incompletude típica da construção adolescente. Produz-se o desejo pela eterna juventude, um ser e permanecer jovem (NASCIMENTO; COIMBRA, 2015).

Pensar e problematizar a categoria juventude no campo da garantia de Direitos significa considerá-la na imanência da transformação e produção de si (DIAS, 2012). A própria categoria referente aos Direitos Humanos necessita ser desnaturalizada e historicizada, de modo a entrarmos em contato com a construção do que é direito e do que é humano, suas emergências e construções históricas. Desse modo, pensar a juventude no campo referente à garantia de direitos compreende tecer uma rede das produções sociais em torno dessas categorias – juventude e direitos humanos (NASCIMENTO; COIMBRA, 2015).

A articulação entre juventude e direitos humanos não se estabelece, assim, em um campo abstrato, mas regido por um campo de militarização, controle, tutela e mecanismos de segurança. Segmentos juvenis marginalizados são construídos à margem dos direitos e da própria humanidade. Esses direitos são produto e produção de modos de subjetivação, definindo quem são os humanos a ter direito de ter direitos (NASCIMENTO; COIMBRA, 2015).

Como afirmam Coimbra; Bocco; Nascimento (2005, p. 08):

Ao operarmos, por exemplo, com o conceito de juventude em nossas práticas, constituído e atravessado por fluxos, devires, multiplicidades e diferenças, talvez possamos perceber não mais um adolescente infrator, mas sim um jovem no qual a linha da infração é apenas uma a mais dentre tantas outras que o compõem. Isso permite a certa prática de psicologia um trabalho de intervenção que afirme a abertura de espaços para que, tanto os jovens com quem trabalhamos como nós, psicólogos, possamos criar outras vias de relação com a vida e com nós mesmos.

Colocar em discussão as categorias: juventude, direitos humanos e proteção, portanto, implica escapar de modelos hegemonicamente estabelecidos, buscando afirmar outros modos de cuidar e proteger e outros modos de ser jovem, escapando a uma política que busca a normalização e assujeitamento de condutas. Há de se colocar em questionamento e discussão, também, práticas do fazer psi no campo da garantia de direitos, de modo a constituir-se como uma prática ético-política (NASCIMENTO; COIMBRA, 2015).

O empobrecimento das condições de construção da experiência que, como dito anteriormente, promove o esvaziamento do caráter processual das vivências, acompanhado do esvaziamento do espaço público como espaço de representação do sujeito ocasionam a interrupção de processos de singularização juvenil, endossando a inscrição social via

representações juvenis perpassadas pela violência (GURSKI, 2012). Dito isso, discutir a violência juvenil como representação de si na contemporaneidade indica problematizar as condições constituintes dos modos de subjetivação atuais.

A noção de representação social indica uma demarcação de um lugar singular que, no caso dos jovens, aponta uma mudança no olhar do Outro social, visto que os traços constituintes da infância (o sujeito colado ao olhar parental), tornam-se insuficientes para dar conta da relação Eu com o Outro. Neste sentido, quais seriam as condições que a cultura atual oferece como suporte para essa urgência de representação social do jovem? (GURSKI, 2012).

O esvaziamento da dimensão da experiência como traço da contemporaneidade constitui-se como indício para que a violência juvenil se expresse como manifestação possível de ser escutada. Os atos violentos estariam associados ao desamparo do qual padece o jovem na atualidade, sendo uma tentativa do jovem constituir-se no laço social, prescindindo do Outro 18.

O jovem na contemporaneidade ocuparia “uma posição de vazio com relação às formas de se fazer representar, restando-lhe o corpo próprio e o corpo do outro como arrimo de inscrição, como sítio maior de suas marcas”(GURSKI, 2012, p. 241).

Dialogando com Bocco (2006), a infração juvenil na contemporaneidade, portanto, deve ser tomada como analisador para pensar o modo de funcionamento da sociedade como um todo e não como um ato praticado por um sujeito específico, em uma leitura individualizante da infração. Deve-se tomar a infração como um fenômeno histórico-social “produzido a partir de um conjunto de fatores que operam em determinado lugar e momento, fazendo emergir uma manifestação social ao invés da outra” (BOCCO, 2006, p. 48).

Pensar a infração juvenil a partir do conceito de agenciamento proposto por Deleuze e Parnet (1998) implica em pensar as linhas e fluxos presentes no plano da imanência que se cruzam e configuram realidades, em vez de considerar uma concepção dicotômica de sujeito-objeto. Não há, a priori, uma conceituação do que é sujeito e o que é objeto, uma vez que ambos são constituídos por linhas móveis que os atravessam a todo momento (BOCCO, 2006). “Falar em agenciamento é, então, falar em conexão de componentes heterogêneos que configuram realidades: nem sujeitos conscientes dos quais partem as ações, nem objetos pré- concebidos aos quais a ação se dirige (Ibid., p. 49).

O agenciamento, além de produzir territórios existenciais (territorialização), também abrange pontas de desestabilizações, que se abrem para novas configurações territoriais (desterritorialização). Pensar a infração como agenciamento implica desfocar a análise 18 GURSKI, Rose. Três ensaios sobre juventude e violência. Escuta, 2012.

exclusivamente sobre o jovem que cometeu o ato infracional. Cai em ruínas a díade de análise infração-indivíduo, visualizando-se a infração como uma produção social, datada historicamente (BOCCO, 2006).

O foco agora não é mais pensar em normalizações de condutas, mas em como práticas sociais operam produzindo sujeitos infratores, em como políticas públicas intervêm em populações juvenis endossando a moralização e o governo de condutas. Diz-se, portanto, de modos de socialização na contemporaneidade que “fabricam” esses sujeitos ditos como “potencialmente perigosos”.

A infração é aqui vista, portanto, como integrando o dispositivo de segurança (DELEUZE, 1988), visto que este coloca em análise um modo de funcionamento contemporâneo, das práticas sociais e modos de subjetivação juvenis. Explicita a maneira como lidamos com a pobreza, criminalizando-a; com a desigualdade social e, principalmente, com juventudes desiguais, associando-as ao risco eminente. Pensar a infração como fenômeno social historicamente construído desloca o debate de discursos e práticas individualizantes e culpabilizantes acerca do jovem que cometeu o ato infracional, “convocando a todos para a construção de novos caminhos para aquilo que aparece como pronto, fechado e imutável” (BOCCO, 2006, p. 50).