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Esta dissertação se trata de uma pesquisa qualitativa, levada a cabo pela perspectiva de uma Pesquisa-Intervenção, tendência de pesquisa participativa que visa à análise de coletividades e práticas institucionais em sua diversidade qualitativa. A Pesquisa-Intervenção opera no plano coletivo a partir de uma prática micropolítica (PAULON; ROMAGNOLI, 2010), incidência esta que afirma a indissociabilidade entre ciência e política; transformação da realidade social e produção de conhecimento.

Desenvolvida a partir do movimento institucionalista francês na década de 1960 e no movimento institucionalista latino-americano nas décadas de 1970 e 80 (ROCHA; AGUIAR, 2003), a Pesquisa-Intervenção parte de um paradigma ético-estético-político em processos de transformação da realidade social e da produção de conhecimento, criando narrativas do e no cotidiano com os grupos que dele fazem parte. Segundo Guattari (1992), a dimensão ética analisa acontecimentos que podem representar potencializadores ou não de vida; a dimensão estética indica o potencial de criação, mesclando os aspectos referentes ao pensamento-ação- sensibilidade; a dimensão política representa a responsabilização perante aquilo que foi produzido, a delimitação de sentidos individuais e coletivos.

A atitude de pesquisa adotada na Pesquisa-Intervenção representa a implicação do pesquisador em acompanhar processos de subjetivação e desterritorialização de modos de ser juvenis de jovens em cumprimento de medida socioeducativa de meio aberto, de forma a singularizar experiências humanas, em vez de generalizá-las ou individualizá-las (PAULON; ROMAGNOLI, 2010).

O embasamento teórico-metodológico em questão prescinde da rigidez metodológica de pesquisas que tradicionalmente partem do pressuposto da neutralidade e distanciamento do campo de inserção/atuação, adotando, como ethos de pesquisa, as implicações do pesquisador como estratégia investigativa que representa o rigor metodológico da Pesquisa-Intervenção. Mantém-se a cientificidade a partir da consideração da complexidade dos acontecimentos da realidade social, sustentando-se os planos de análise que compõem a realidade, nos jogos de forças que atravessam o pesquisador; o campo social; as instituições e os atores sociais que participam da construção do conhecimento na pesquisa, os quais são transversalizados por forças de produção, reprodução e anti-produção, moleculares e molares

(PAULON; ROMAGNOLI, 2010).

A intervenção objetiva uma atuação micropolítica que pretende realizar problematizações em torno de questões referentes ao sistema de garantia de direitos para crianças e adolescentes e a própria construção do “sujeito infrator”, desnaturalizando discursos e práticas instituídos e afirmando outros modos de subjetivação juvenis (contraponto com a noção estática e essencialista de sujeito). O caráter interventivo justifica-se pelo fomento aos espaços de discussão com jovens em cumprimento de medida socioeducativa de meio aberto sobre histórias de vida e modos de subjetivação juvenis, sendo possível analisar como esses jovens dão sentido às suas histórias nos contextos sociais onde estão inseridos. Moraes (2014, p. 132) assevera que:

O método de pesquisa é como um guia de viagem, ou como uma mala que levamos quando saímos em viagem, eu diria que nessa mala não podem faltar algumas coisas. a) o outro que interpelamos é tomado como sujeito agente expert e não como objeto passivo, como alvo de nossas ações; b)os mal-entendidos são pistas relevantes que podem anunciar novas e interessantes versões do mundo; c) pesquisar e intervir são inseparáveis, de sorte que a pesquisa, mais do que representar o mundo, é uma ação de produzi-lo, ou seja, pesquisar é performar certos mundos, é delinear fronteiras, fazer movê-las, alargá-las e problematizá-las.

Portanto, um dos aspectos centrais de nossa Pesquisa-Intervenção, o pesquisar COM o outro, pretende colocar em análise as relações entre juventude e violência urbana produzidas nas narrativas de trajetória de vida de jovens em cumprimento de medida socioeducativa de meio aberto, sobre experiências do que é ser jovem, sobre a presença da violência urbana em suas trajetórias e seus percursos socioinstitucionais, com foco naqueles ligados ao próprio processo de cumprimento da medida socioeducativa. Além disso, contratempos em relação à parceria institucional21 também representam pistas interessantes para

destacar o lugar que jovens autores de atos infracionais ocupam na instituição.

A partir da pesquisa-intervenção, o estudo seguirá a perspectiva da cartografia como método de pesquisar e intervir, sendo desenvolvida por Gilles Deleuze e Félix Guattari, objetiva acompanhar processos inventivos e de produção de subjetividades e realidades, e não representar objetos (BARROS; KASTRUP, 2010). A cartografia atenta-se ao plano das forças, as relações de saber-poder e seus efeitos na produção de modos de subjetivação, por meio da atenção concentrada, flutuante e aberta, porém sem focalização que capta materiais até então fragmentados e desconexos que ganham delimitação e conexão ao longo do caminhar da 21 Referência ao Centro Urbano de Cultura, Arte, Ciência e Esporte (CUCA) localizado na Barra do Ceará. Trata-se do equipamento voltado para política pública na área da juventude na qual a pesquisadora se inseriu para a realização da pesquisa em questão. A parceria institucional, em modelo de corresponsabilização, ocorreu para a operacionalização de Grupo Discussão com jovens em cumprimento de prestação de serviços à comunidade (PSC). Mais detalhes sobre o lugar de inserção e a ferramenta metodológica em questão serão realizadas logo à frente no texto.

pesquisa (KASTRUP, 2010).

Esta perspectiva engendra a noção de território como algo em constante processo de mudança e reorganização, evidenciando contínuas territorializações; desterritorializações e reterritorializações como processos que se sobrepõem dinamicamente e possibilitam a desnaturalização de discursos e práticas instituídos (PAULON; ROMAGNOLI, 2010). Além disso, visa a inserção, a contextualização histórica e a identificação de interconexões de redes de força que estão presentes na delimitação do objeto ou fenômeno estudado (BARROS; KASTRUP, 2010).

A maneira de acessar as práticas cotidianas de jovens a quem se atribui o cometimento de ato infracional ocorrerá por meio do ato de cartografar suas narrativas de trajetórias de vida, explicitando os percursos institucionais para o cumprimento da medida de meio aberto e os múltiplos atravessamentos presentes em suas histórias de vida. O ato de cartografar, como afirma Costa, Angeli e Fonseca (2012), trata-se de saber COM o outro, construir conhecimentos com os jovens e não apenas um saber sobre eles. “Habitar um estado de coisas, seus trajetos possíveis, seus incompossíveis, subtrair o que insiste e produzir com” (COSTA, ANGELI, FONSECA, 2012, p. 45).

Adotar tal atitude de pesquisa implica em um compromisso ético-político da pesquisadora em relação à conjectura atual – crise do sistema socioeducativo local marcada pela superlotação dos centros socioeducativos e pela desestruturação das medidas socioeducativas de meio aberto, além de índices alarmantes de violência envolvendo jovens. Delimita-se, portanto, uma intervenção que construa, micropoliticamente, transformações sociais e institucionais.

Deleuze e Guattari (1995) consideram a cartografia como um “mapa aberto”, no qual o próprio campo social e o caminhar da inserção do pesquisador vão estabelecendo conexões e delimitando o percurso da pesquisa. A cartografia propõe o fazer-saber (PASSOS; BARROS, 2009), portanto, um saber construído na e pela prática a partir do contato da pesquisadora com o plano interventivo, evitando-se lançar um olhar objetificante aos jovens que cumprem medida socioeducativa, olhar este que dificulta a abertura para as configurações do campo que vão além da proposta previamente delimitada de inserção. A partir de tais considerações, cabe ressaltar que a cartografia permitirá, a partir das narrativas de jovens sobre suas trajetórias de vida e percursos socioinstitucionais, traçar um mapa da rede de saber-poder- subjetivação a partir da qual se constitui a figura do jovem infrator, bem como as práticas de resistência e criação forjadas por esses jovens.

Cartografar, portanto, indica pesquisar um acontecimento sempre “em processo” e em permanente construção COM os jovens em cumprimento de medida socioeducativa. Habita- se, através das narrativas de história de vida destes jovens, as múltiplas temporalidades que emergem em seus discursos, em um único instante. Com isso, questionar COMO as narrativas de histórias de vida dão visibilidade à relação entre juventude e violência urbana indica evidenciar as singularidades de percursos institucionais e sociocomunitários presentes nas histórias de vida destes jovens, constituindo uma realidade a partir da relação que se estabelece com eles. Portanto, cartografar essas narrativas indica “pesquisar o acontecimento acontecimentalizando[…], dar corpo a um acontecimento se relacionando com ele” (COSTA, ANGELI e FONSECA, 2012, p. 46).

Dessa forma, torna-se imprescindível estar sensível às situações-problemas que se evidenciarem, acompanhando processos de constituição da realidade através da imersão no plano da experiência. Assim, conhecer a constituição da figura do “sujeito infrator”, do “potencialmente perigoso” em jovens que cometeram ato infracional e que estão cumprindo medida socioeducativa de meio aberto equivale a caminhar com esse objeto; constituir esse próprio caminho; constituir-se no caminho (DELEUZE; GUATTARI, 1995), uma vez que cartografar indica o acompanhamento de processos de produção de subjetividades. Portanto, pretende-se, por meio da cartografia, explicitar o plano coletivo de forças que engendram a produção de territórios juvenis atravessados pelo signo da periculosidade, ao mesmo tempo em que se produz interferências nesse plano coletivo.