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3. LINGUÍSTICA ECOSSISTÊMICA E VARIAÇÃO LINGUÍSTICA

3.3. Língua e variação

Primeiramente, precisamos assentir que as línguas não são estruturas acabadas isentas dos fenômenos da variação e mudança, assim como devemos considerar que existe uma relação imanente entre a língua que falamos, a sociedade em que vivemos e os grupos sociais que pertencemos.

Ao falarmos de variação, precisamos elucidar as diferenças entre os termos variedade, variação, variável e variante que, muitas vezes, são usados de maneira imbricada, mesmo entre os estudiosos de linguagem.

Segundo Coelho et al. (2015, p. 14) “damos o nome de variedade à fala característica de determinado grupo” que pode ser analisada através de critérios diversos tais como geográficos, sociais, ocupacionais, etc. Já a variação linguística seria o fenômeno em que duas formas ocorrem na mesma conjuntura com o mesmo valor representacional sem comprometer o funcionamento adequado da língua (COELHO et.

al. op. cit.). Sobre a variação linguística é necessário acrescentar que, além de ser

intrínseca às línguas naturais e não comprometer o mútuo entendimento dos falantes, carrega significados sociais, perpassando, em muitos casos, o próprio significado referencial/representacional que veicula.

119 Em relação à diferença entre os termos variáveis e variantes, Coelho et. al. (2015, p. 17) destacam que “comumente chamamos de variável o lugar na gramática em que se localiza a variação” e as variantes seriam “as formas individuais que disputam pela expressão da variável”. Para Monteagudo (2011, p. 19) variáveis seriam “unidades de qualquer plano do sistema gramatical (fônico, morfológico, sintático...) que apresentem realizações diferentes” e uma variante seria “um elemento linguístico que se encontra em concorrência com outro ou outros, representando cada um deles realizações alternativas de uma mesma unidade”. De uma maneira exemplificada, Coelho et. al. (op. cit., p. 17) usam o caso da variação na língua portuguesa entre os pronomes pessoais “tu” e “você” para ilustrar as diferenças entre os termos supracitados, sobrelevando que a variável em questão seria a “expressão pronominal de segunda pessoal do singular” e as variantes seriam “as formas individuais que disputam pela expressão da variável – no caso, os pronomes ‘tu’ e ‘você’”.

A variação linguística permite ser analisada em diferentes níveis linguísticos: pode ser observada tanto de dentro da língua como a variação lexical, fonológica, morfológica, sintática, discursiva, como fora desta nos casos da variação geográfica, social, estilística, etc. Essas forças que agem dentre e fora da língua que levam à variação são chamadas de condicionadores e estão intimamente relacionadas à escolha das variantes, uma vez que levam o falante a eleger e delimitar quais são os contextos mais adequados para o uso das variantes em questão. Além disso, os condicionares permitem ao investigador descrever a variação linguística através de critérios específicos, conduzindo o trabalho do linguista em relação ao caminho a seguir na pesquisa e na dimensão de análise.

Lançamos mãos novamente dos estudos de Labov (2008 [1972]) para exemplificar os possíveis caminhos no estudo da variação: o autor logrou estabelecer em sua investigação na ilha de Martha’s Vineyard a relação de condicionadores extralinguísticos com a variação linguística investigada. Em sua observação, o sociolinguista percebeu que a oposição dos ditongos /ay/ e /aw/, articulados de maneiras diferentes entre os falantes pesquisados, estava relacionada com a noção de pertencimento de grupo e identidade: os indivíduos que se identificavam mais com a ilha e desejavam marcar sua identidade local em relação aos turistas centralizavam mais os ditongos supracitados, deixando clara a relação entre o contexto social de enunciação, identidade e atitude linguísticas.

Segundo Le Page e Tabouret-Keller (1985, p. 180-181) os falantes combinam elementos linguísticos de maneira que conseguem construir modelos interacionais que permitem a aproximação dos grupos com os quais, em diferentes ocasiões, desejam ser

120 identificados e/ou distanciados/diferenciados. Os referidos autores fazem uma analogia comparando os falantes a “camaleões linguísticos”, pois moldar o discurso de acordo com a identidade que se deseja salientar é prática constante do uso linguístico cotidiano.

O sistema linguístico comporta a variação sem grandes problemas uma vez que, apesar de heterogêneo e eminentemente variável, possui regras categóricas que não permitem que a mudança aconteça sob o caos. Isso explicaria, por exemplo, o porquê da maioria das variedades não comportarem alterações drásticas no nível sintático: no caso da koroniago, percebemos que é notória a variação no nível lexical, já que a ordem sintática da língua japonesa e da língua portuguesa (línguas motoras na situação de CL) é demasiadamente diferente.

Em japonês a ordem sintática prototípica é SUJEITO +

COMPLEMENTOS/PREDICADOS + VERBO, enquanto em português temos SUJEITO + VERBO + COMPLEMENTOS/PREDICADOS. Essa discrepância inviabiliza, de certo modo, que alterações drásticas ocorram no sistema sintático da variedade originada, já que mudanças nesse nível acarretariam frases consideradas agramaticais108 por qualquer falante nativo de ambas as línguas em questão. Assim, como salientam Coelho et al. (op. cit. p. 63) “a competência linguística do falante envolve o domínio para lidar com a heterogeneidade do sistema” e lidar com essa heterogeneidade significa saber até onde é possível ir ou não no uso da língua de maneira diversificada.

Até mesmo aprendizes brasileiros de japonês como língua estrangeira dificilmente produziriam mudanças extremas de ordem sintática ao falar frases básicas nessa língua alvo, uma vez que o sistema linguístico da língua japonesa não aceitaria como gramatical ou inteligível a construção de enunciados que tivessem como modelo a ordem sintática da língua portuguesa. Vejamos no exemplo que segue como ficaria uma frase em japonês que usasse como padrão a ordem sintática do português:

108 “Uma sequência de palavras é agramatical quando não respeita as regras gramaticais do sistema

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Quadro 16. Exemplo de frases em português e japonês: ordem sintática Modelo de frase em língua portuguesa: EU SOU BRASILEIRO Modelo de frase em língua japonesa

seguindo a ordem sintática prototípica do português:

私 はで すブ ラ ジ ル 人 (Watashi

desu 109 burajirujin) Frase agramatical em japonês uma vez que foi seguida a ordem sintática da língua portuguesa.

Frase gramatical em língua japonesa: 私はブラジル人です(Watashi wa

burajirujin desu) Fonte: o autor (2020)

No subcapítulo seguinte trataremos mais detalhadamente sobre a variedade linguística investigada, sobrelevando alguns aspectos relevantes da variação linguística que exemplificam de maneira evidente seu caráter ordenado e não caótico. Destacamos que compreender de maneira mais notória uma variedade linguística e o fenômeno da variação, ajuda a combater, de certa maneira, a estigmatização, preconceito e discriminação linguística, tão intimamente enraizados na tradição gramatical e normativa demasiadamente difundida no ensino brasileiro de línguas ao longo de sua história.