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Língua Materna e língua segunda: precisões conceptuais

Capítulo 2 – Encontro de línguas: as representações dos professores

2.2. Língua Materna e língua segunda: precisões conceptuais

No contexto Cabo-verdiano, quando se fala de ensino de língua, sobretudo quando se trata da LP, torna-se necessário recorrer a conceitos de Língua Materna (LM) e Língua Segunda (L2). É devido à especificidade do contexto sociolinguístico e linguistico- educativo onde se insere o presente estudo que entendemos, assim, ser conveniente esclarecer esses conceitos.

2.2.1. Língua Materna (LM)

O conceito de LM tem sido objecto de muitos estudos e reflexões. Apesar disso, pode-se afirmar que é muito difícil chegar a uma noção de língua materna unívoca, dado que a sua situação varia com as épocas e com as áreas geográficas (Ançã, 1999b). É nesta óptica

que achamos pertinente a discussão deste conceito, a fim de proceder ao seu enquadramento no nosso contexto linguístico.

Dado que a língua não é um sistema homogéneo, torna-se complexa e ambígua a definição de LM, em qualquer contexto, quer seja monolingue, bilingue ou plurilingue. Se tomarmos a LE como sendo toda aquela que não é materna, então a LM será toda aquela que não é estrangeira. No entanto, segundo R. Kochmann (1982 apud Ançã, 1999b), podemos adoptar três critérios para o esclarecimento deste conceito: o afectivo, o ideológico e o de auto-designação.

Segundo o critério afectivo, LM é sinónimo de idioma falado por um dos progenitores, geralmente a mãe. Neste sentido, é tomada como a língua em que, aproximadamente até aos cinco anos de idade, a criança estabelece a sua primeira gramática, que depois vai reestruturando e desenvolvendo em direcção à gramática dos adultos da comunidade em que está inserida (Leiria, 2006: 1). Galisson e Coste também compartilham desta ideia, porque afirmam que se trata da língua aprendida no seio do grupo mais restrito em que o indivíduo se inclui: a família e, iconicamente, a mãe (1983: 442 apud Freire, 2007: 63). Segundo o critério ideológico, LM será o idioma falado no país onde se nasceu e onde supostamente se vive ainda.

De acordo com o critério de auto-designação, a LM será o idioma a partir do qual aquele que o fala manifesta um sentimento de posse mais marcado do que em relação a outro idioma.

W. Mackey (1992 apud Ançã, 1999b), por seu turno, propôs três critérios para definição da lexia Língua Materna: a primazia, o domínio e a pertença. De acordo com a primazia, a LM é a primeira língua aprendida e a primeira língua compreendida. Galisson e Coste seguem esta mesma linha de ideias, na medida em que, para estes autores, ela assim se chama porque é aprendida como primeiro instrumento de comunicação, desde a mais tenra idade, e é utilizado no país de origem do sujeito falante (1983: 442 apud Freire, 2007: 63). Quanto ao domínio, a língua que se domina melhor será a LM. A LCV não se enquadra neste conceito, pois, embora seja a primeira aprendida pelos cabo-verdianos residentes, a nossa língua, e mais bem falada, por exemplo, do que a LP, dominamos melhor a escrita e as estruturas funcionais da LP. Logo, este critério demonstra-se

insuficiente no que diz respeito ao seu enquadramento nos diferentes contextos linguísticos.

Quanto à associação, trata-se de um critério que está relacionado com a pertença a um determinado grupo cultural ou étnico. Este conceito é válido para a LCV, pois é a língua dos Cabo-Verdianos.

Nota-se que estes critérios não se enquadram em todos os contextos, pois um falante pode ter uma Língua Materna que é diferente da dos seus pais. Por exemplo, o critério de afectividade e o de primazia para definir a LM são válidos para os cabo-verdianos nascidos no arquipélago mas não para muitos Cabo-Verdianos que nasceram no estrangeiro e que podem ter como LM a LCV e não a do país onde nasceram. Para além disso, a língua nativa pode não ser aquela que foi aprendida em primeiro lugar. Por exemplo, os filhos dos estrangeiros que nasceram em Cabo Verde, apesar de serem cabo- verdianos, não aprendem em primeiro lugar a LCV, mas sim a LM dos seus pais.

2.2.2. Língua Segunda (L2)

A diferenciação dos campos da L2 e da LE são recentes. A sua distinção no âmbito do ensino e aprendizagem da LP começou a ser feita com a descolonização dos países africanos, no retorno dos portugueses e dos seus descendentes da Europa Comunitária ou da América e ainda dos vários grupos étnicos e culturais que, por razões diversas (históricas, políticas), vivem em Portugal.

Para além de ser um conceito recente, o conceito de língua segunda é também algo confuso. Ele está sujeito a diversas interpretações, variando conforme as características linguísticas do país em que as línguas em questão são usadas e das situações nas quais estas são ensinadas e aprendidas.

Na tradição da Didáctica das Línguas, o conceito de L2 ocorre frequentemente como a língua que, não sendo materna, é oficial (ou tem um estatuto especial), sendo também a língua de ensino e da socialização secundária (Grosso, 2005:608 apud Freire, 2007). Ngalasso (1992 apud Ançã, 1999b) define duas vertentes de distinção de L2: uma cronológica e outra institucional. A cronológica assenta em critérios psicolinguísticos e tem a ver com a ordem pela qual a língua é adquirida, isto é, língua segunda, língua adquirida em segundo lugar, a seguir à materna; a vertente institucional, que se baseia

em critérios sociolinguísticos, aponta para uma língua internacional, que recobre as funções sociais consideradas oficiais, num determinado país. Neste caso, este critério é válido para os cabo-verdianos fixados no seu país. Já para muitos que residem fora, por exemplo em França ou nos Estados Unidos, não é válido porque a língua aprendida em segundo lugar não coincide com a oficial do seu país.

Lopes (2003: 27) define L2 como língua aprendida em segundo lugar numa situação formal; estrangeira, mas que beneficia de um estatuto social, cultural e jurídico privilegiado. Este conceito é válido para o caso da LP em Cabo Verde.

Passamos de seguida a ver os autores que definem L2 numa vertente cronológica, ou seja, os que consideram a L2 como sinónimo de segunda língua aprendida:

A Wikipédia, a enciclopédia livre (2007), a este respeito, apresenta os seguintes conceitos:

“Segunda Língua (L2) refere-se a qualquer língua que é aprendida subsequentemente à língua materna (L1). O termo ‘Segunda’ também não restringe tal estudo apenas às línguas estrangeiras aprendidas em consequência de uma vivência no exterior, ou seja, no país onde aquela língua é L1; L2 remete genericamente a qualquer língua estrangeira, mesmo as que aprendemos por meio de educação formal em sala de aula. Pode-se definir aquisição de L2 como a forma pela qual as pessoas aprendem outras línguas que não a sua L1, dentro ou fora de sala de aula e ASL11 como o estudo de tal ocorrência. Um dos caminhos mais comuns percorridos pelos pesquisadores em ASL é a colecta e análise de amostras do que chamam de linguagem do aprendiz – a língua que os alunos produzem quando são solicitados a usar a L2 em tarefas de fala ou escrita. Tais amostras fornecem aos pesquisadores evidências sobre o que os aprendizes sabem sobre a língua que buscam aprender (chamada nos estudos de língua-alvo)”.

Este critério não se aplica ao contexto cabo-verdiano por dois motivos: primeiro, porque as línguas inglesa e francesa também são aprendidas por meio de educação formal mas não são L2, seja para qualquer dos critérios utilizados; segundo, porque a LM/L1 é mobilizada para a aprendizagem de qualquer língua.

Já alguns autores optam pela vertente institucional, a que se baseia em critérios sociolinguísticos. Por exemplo, Ançã (1999b) define L2 como:

11

“Uma língua de natureza não materna (e aqui encontra o domínio da língua estrangeira), mas com um estatuto particular: ou é reconhecida como oficial em países bilingues ou plurilingues, nos quais as línguas maternas ainda não estão suficientemente descritas, – refiro os novos países africanos de expressão portuguesa – ou ainda, com certos privilégios, em comunidades multilingues, sendo essa língua uma das línguas oficiais do país, – o francês, na Suíça, por exemplo”.

Corroborando esta ideia, Leiria (2006: 6) dá a seguinte definição:

“Língua segunda (LS) costuma ser usado para classificar a aprendizagem e o uso de uma língua não materna dentro de fronteiras territoriais em que ela tem uma função reconhecida, por exemplo como língua oficial. Indispensável para a participação na vida política e económica do Estado, ela é também a língua, ou uma das línguas, da escola. Nesta situação se encontra a língua portuguesa nos PALOP e em Timor: não sendo língua materna para a maior parte da população, o seu uso é requerido a muitos cidadãos, que a adquirem em alguma fase do seu desenvolvimento.

Segundo Galisson e Coste, L2 é a “língua que beneficia de um estatuto privilegiado; língua ensinada como língua veicular a toda a comunidade em que a (ou as) língua(s) materna(s) é (ou são) praticamente desconhecida(s) fora das fronteiras do país” (apud Rassul, 2006: 15).

Verifica-se, nesta rápida precisão, que muitas vezes os conceitos de L2 e de LE se interceptam e são utilizados como sinónimos. Por exemplo, tanto a L2 como a LE são definidas como LNM e também como a línguas aprendidas em segundo lugar. No entanto, distinguem-se porquanto a LE é falada quase exclusivamente na aula de língua (estrangeira), não sendo, portanto, partilhada pela comunidade circundante (Ançã, 2005b: 38).

Sabe-se, no nosso caso, e como vimos no capítulo anterior, que a LM é a LCV, portanto a que geralmente é aprendida em primeiro lugar. A L2 é a LP, aquela que, devido às exigências contextuais, por ser a língua oficial, é aprendida logo a seguir à LCV.