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Legítima defesa da honra aplicada no direito brasileiro

VENTURA Flávia1, SIQUEIRA Warley C2, SAITER Jaqueline 3

RESUMO

O presente artigo tem por objetivo discorrer sobre a Legítima Defesa da Honra e sua aplicação no Direito brasileiro, apresentando o seu conceito e abordando o contexto histórico em que se desenvolveu, bem como, o seu percurso no âmbito jurídico e social. Este estudo esclarece o conceito da legítima defesa da honra, por meio de análise de textos legais do ângulo doutrinário e análise de caso concreto, além de pesquisa sobre extensa bibliografia legal, dando ênfase à supervalorização da legítima defesa da honra frente o direito à vida. Concluindo que o direito à vida é inviolável e assegurado pela Constituição, a proteção da honra não sobrepõe o direito à vida, de forma que tal jurisprudência não encontra mais assento no direito brasileiro, o que independe de a honra ser também um bem jurídico visto que a violação desta é reparável, diferente da vida. A consagração do direito à vida se deve às mudanças de cunho político, social e cultural, impulsionando a modernização da legislação positiva e a aplicação e interpretação da lei em prol da proteção da vida.

Palavras-chave. Direito à vida. Direito penal. Legítima defesa da honra. Misoginia.

ABSTRACT

This article aims to discuss the Self-Defense of Honor and it’s application in Brazilian’s law, presenting it’s concept and addressing the historical context in which it developed, as well, it’s path in the legal and social sphere. This study clarifies the concept of self-defense of honor through analysis of legal texts from the doctrinal angle, the analysis of specific cases and research on extensive legal bibliography, emphasizing the overvaluation of the self-defense of honor against the right to life.

Concluding that the right to life is inviolable and guaranteed by the Constitution, the protection of honor does not override the right to life, so that such jurisprudence no longer finds a place in Brazilian’s law, which is independent of the fact that honor is also a legal asset since the violation of this is reparable, different from life. The consecration of the right to life is due to changes of a political, social and cultural nature, driving the modernization of positive legislation and the application and interpretation of the law in favor of the protection of life.

Keywords. Right to life. Criminal law. Self-defense of honor. Misogyny

INTRODUÇÃO 5

Na ciência jurídica, a defesa de crimes passionais por meio da prática jurisprudencial de “Legítima Defesa da Honra” colocou em discussão o seguinte tema: a legítima defesa da honra em sobreposição ao direito à vida.

Para tanto, à luz da técnica jurídica, um crime passional é “a conduta de causar a morte de outrem, levado por uma forte paixão ou

1Formanda e autora deste Trabalho de Conclusão de Curso da graduação em Direito pela Faculdade Novo Milênio – flavia.ventura@sounovomilenio.com.br;

2 Formando e autor deste Trabalho de Conclusão de Curso da graduação em Direito pela Faculdade Novo Milênio – warley.siqueira@sounovomilenio.com.br

emoção”, logo, crimes passionais são os motivados pelo ódio, inveja, ciúme ou intenso amor, conforme ensinamentos de RABINOWICZ (2000, p. 68).

A legítima defesa da honra surgiu como uma manobra jurídica que visava inocentar assassinos, atribuindo o ato de homicídio a uma autotutela quanto à honra do homem criminoso em sobreposição ao direito à vida da vítima.

3Professora orientadora deste trabalho de Conclusão de Curso da graduação em Direito pela Faculdade Novo Milênio;

Revista Espaço Transdisciplinar

Volume 4 – Número 1 – 2020 – ISSN: 2526-6470

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Embora seja uma prática que se iniciou no século passado, ainda hoje é possível detectar o discurso misógino que transita as relações pessoais (de caráter sentimental e matrimonial) no Brasil.

O pacto de São José da Costa Rica, oriundo da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, que tem o Brasil como signatário desde 1969, define em seu artigo 11 que “toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade”. Por honra, entende-se o “sentimento de dignidade próprio (honra internou subjetiva), pelo apreço social, reputação e boa fama” (CATHREIN, 1904).

Similar ao conceito doutrinário, o Dicionário Michaelis (2020) define honra como “princípio moral e ético que norteia alguém a procurar merecer e manter a consideração dos demais na sociedade; pureza sexual feminina; castidade, virgindade”.

Partindo da origem da aceitação coletiva do entendimento jurisprudencial e aplicabilidade da tese de legítima defesa da honra no direito brasileiro, onde, explicitamente, o homem detinha em suas mãos direitos e poderes muito maiores que os da mulher ao longo dos séculos, percebe-se a natureza machista da prática jurídica em defesa de homicídios passionais.

É, portanto, ao notar a diferenciação de tratamento entre homens e mulheres perante a sociedade que essa pesquisa tem início, fazendo o levantamento histórico do papel social desempenhado por estes, pautando a legitimação de seus atos e submissões de acordo com a legislação que os regiam e a cultura em que estavam inseridos.

A discussão do tema abordado é de extrema relevância social, pois demonstra como a sociedade pode ser refém de uma legislação que admite (como foi o caso no Brasil do século XIX, por exemplo) o assassinato de um indivíduo como “pagamento justo” à infidelidade matrimonial, o que acaba por pesar a honra como um bem mais valioso que a vida, embora, neste mesmo cenário, seja possível observar também a clara e rígida aversão de tratamento justo às mulheres, que não tinham poder de fala ou defesa frente às acusações que sofriam.

Os movimentos sociais que nasceram ao longo do século XX, munidos de premissas de igualdade de gênero, liberdade de expressão e garantias fundamentais, somados à

modernização de pensamento, trouxeram ao Brasil uma realidade mais justa quanto à aplicação dos direitos individuais no ordenamento jurídico, o que demonstra, na prática, que os códigos antigos que vigoraram abraçavam ideais conservadores em sua essência, silenciando parte do povo e traçando diferenças relacionadas à gênero e posição social.

Ao observar toda a transformação que a sociedade brasileira foi submetida e os efeitos da aplicação da Legítima Defesa da Honra, à luz da história e da ciência jurídica, levantou-se a questão primordial desta pesquisa, que é indagar se o direito à legítima defesa da honra sobrepõe o direito à vida.

Contextualização histórica e sociocultural

- O berço da misoginiabrasileira

O enunciado “honra” percorre as mais antigas civilizações e fornece uma herança histórica às sociedades atuais. Neste contexto, abriga-se a própria honra como elemento personalíssimo frente à ciência jurídica e as transgressões cometidas em meio ao processo da consolidação deste direito.

Em se tratando da honra, observa-se sua personalidade (enquanto atributo essencial para ser sujeito de direito, conforme artigo 1º do vigente Código Civil) assegurada pelo artigo 5º, X, da Constituição Federal de 1988, que diz:

“São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.”

À luz da formação patriarcal da sociedade, foi traçado um paralelo histórico de desenvolvimento social conforme o estabelecimento de normas penais regentes, destacando, sobretudo, ideais de liberdade e igualdade entre os gêneros sexuais, refletindo na dominação masculina sobre o cenário familiar e na coletividade social, além da aplicação das penalidades aos transgressores da lei. Vale salientar que a lei acompanha os ideais do povo a quem ela é aplicada, portanto, se torna mutável com o passar do tempo.

Ao ser colonizado por Portugal, o Brasil foi um depósito de cultura. A configuração de honra e poder foram moldadas sob a figura do

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colono, que prezava suas tradições europeias e, a todo custo, tentava impor seu posicionamento dominador. A rigidez com que a elite colonial mantinha sua cultura viva, foi capaz de disseminar um padrão de comportamento reflexo da metrópole (RAMOS, 2011), e é nesse cenário que a opressão masculina irradia para a figura da mulher na sociedade.

A Coroa de Portugal começou a ditar as regras quando se instalou no Brasil em 1808, e, a partir daí, fixar as normas culturais, jurídicas, econômicas e religiosas lusitanas (SCHIMIDT, 2008). Como vigia em Portugal, as Ordenações Filipinas (conjunto de livros que determinavam a “conduta correta” dos indivíduos) passaram a limitar o comportamento dos residentes da colônia também.

Esses códigos não primavam a igualdade entre pessoas, mas reafirmavam a discriminação destas tendo como base aspectos como sua origem, sexo e acúmulo de riqueza, entre outros pontos tidos como necessários para estabelecer uma posição social elitista do indivíduo (DÓRIA, 1994).

Quanto à pena atribuída aos delitos praticados, segregava-se a mulher, considerando que esta não possuía poder de fala, tendo seu “dono”

como porta voz (RAMOS, 2011).

Ao figurar o papel de filha, a mulher era mantida como propriedade do pai, que repassava a responsabilidade ao homem que a tomasse como esposa. Em ambos os casos, a mulher era a figura que sustentava a honra de seu “dono”. Ao manter-se virgem, a mulher garantia ao pai que era honesta e puritana, e ao manter-se sexualmente fidedigna ao marido, a mulher legitimava na nova família constituída o status social de um agrupamento familiar saudável conforme os padrões que a Coroa Portuguesa trouxera à realidade brasileira:

[d]a mulher esperava-se castidade e fidelidade no matrimônio e virgindade antes do matrimônio [...].

Assim, a reputação pública da mulher [...] era, simultaneamente, um dos componentes da honorabilidade do homem que a dominava. [...]

Para o pai da moça [...] a ‘defloração’ significava que o sedutor havia ‘levado’, junto com a virgindade e para sempre, a honra que ‘valia mais que a vida’ (DÓRIA, 1994, p. 66, grifos do autor).

A mulher era desprovida de honra própria.

Tratada como objeto, a mulher teve sua

dignidade dissipada entre as relações heterônomas, muitas vezes até de cunho econômico, mas nunca como uma pessoa detentora de direitos e escolhas, muito pelo contrário. Da mulher não se era esperado honra, pois esta característica era tratada como atributo masculino apenas. Como sugere Dória:

[a mulher é] desprovida de honra no sentido estrito do tempo; sua ‘honra’ sendo reflexo da honra masculina, merecia mesmo uma outra denominação: virtude. Sinônimo de pureza, é um dom de nascimento e cabe à mulher defendê-la comportando-se da maneira esperada pelo código masculino (DÓRIA, 1994, p 62-63, grifo nosso).

Portanto, vê-se que a honra masculina se apoia majoritariamente na pureza da mulher, dependendo exclusivamente dela para se sustentar. O papel que a mulher desempenhava no Brasil Império, poucos séculos após a realidade do Brasil Colônia, era unicamente de procriadora e mantenedora da harmonia familiar.

Totalmente desprovida de significado na esfera social como pessoa ou cidadã, mas incumbida de uma única tarefa: submissão.

Essa configuração social era fortalecida pela Igreja Católica – que exercia forte influência na política e no cotidiano brasileiro -, reforçando a abominação do rompimento matrimonial e o engessamento de um núcleo familiar padronizado. Respaldados pelo sistema jurídico vigente, a Igreja apoiava a determinação de silêncio às mulheres com um discurso de total submissão, colocando-a em um lugar de abjeção, limitando seus atos e podando sua liberdade (SILVA, 2003) para que, assim, o homem pudesse ter plenitude em sua vida pública.

A vida como propriedade privada no Código Filipino

Quando instituído de poder e prestígio social o homem se encaixa em uma posição de mandatário de vida ou morte, tendo essa escolha assegurada pelo ordenamento jurídico regente dos séculos XVII e XVIII. Esse direito era encontrado nas Ordenações Filipinas (conjunto de livros que determinavam a “conduta correta”

dos indivíduos), no Título XXXVIII do Livro V, e era nomeado “Do que matou sua mulher, pô-la achar em adultério":

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[a]chando o homem casado sua mulher em adulterio, licitamente poderá matar assi a ella, como o adultero, salvo se o marido for peão, e ao adultero fidalgo ou o nosso dezembargador, ou pessoa de maior qualidade (ORDENAÇÕES FILIPINAS, grifo nosso).

A permissão do assassinato da mulher na mera hipótese de adultério não só reflete a sociedade com raízes machistas que aflorava, mas ecoa também a submissão social frente aos que possuíam acúmulos de riqueza (ou proveniente de uma família que o tivesse), afastando a ilicitude do ato em favor do fidalgo.

A honra em questão, portanto, além de ser exclusividade masculina, perambulava também as camadas sociais, distinguindo e atribuindo culpa àqueles “menos qualificados” na esfera de convívio coletivo.

Vê-se, portanto, que a simples desconfiança e/ou acusação do marido servia de julgamento condenatório à mulher casada, que era observada como propriedade masculina (BARSTED e HERMANN, 1995) na relação matrimonial, necessitando apenas da oitiva de testemunhas que confirmasse a sociedade conjugal entre os dois para confirmar a sentença de morte da esposa, como afirma Lella Barsted e Jaqueline Hermann:

era preciso apenas, que testemunhas comprovassem o casamento do assassino com a vítima, fazendo desta união o salvo conduto para que o homem exercesse seu direito de propriedade sobre a vida e a morte de sua esposa tal como exercia sobre seus escravos e dispunha de suas propriedades imobiliárias, móveis e semoventes (BARSTED e HERMANN, 1995, p. 55, grifo nosso).

Não havia uma ponderação de valores ao observar a vida (da mulher) frente à honra do homem. O provérbio “honra se lava com sangue”

tinha todo o embasamento necessário para se fortalecer nas entranhas da sociedade brasileira e ditar a submissão da mulher ao coletivo masculino, que vem reprimindo as manifestações femininas desde então.

A virilidade do homem é posta à prova quando sua esposa comete adultério, desenhando não só um ato de traição à

“santíssima constituição familiar”, como era defendido pela Igreja, mas também um questionamento social quanto à masculinidade e honra do marido, conforme afirma Dória:

aquela que verdadeiramente funda a família numa sociedade baseada no princípio da honra pessoal, onde o homem necessita dar provas públicas de sua

honorabilidade exercendo-a sob a forma de machismo. O adultério, neste contexto societário, evidencia que o marido falhou no exercício de sua masculinidade e que sua mulher tornou-se instrumento de afirmação de honra/masculinidade de outro homem (DÓRIA, 1994, p. 93).

- Penalidades do século XIX: o agravante de gênero

Na primeira metade do século XIX, o Brasil teve seu regime penal alterado pela vigência do primeiro Código Penal brasileiro, também conhecido como Código Criminal do Império do Brasil, que assegurava a imputação de pena ao indivíduo devido ao assassinato do cônjuge, mesmo em adultério.

Para o assassino, era previsto pena de prisão de um a três anos com a ressalva de poder “haver pena igual para o marido adúltero”

(BARSTED e HERMANN, 1995) desde que fosse comprovado que este mantivesse um relacionamento extraconjugal estável, duradouro.

O envolvimento em romances de curta duração e casuais não configurava crime para o homem - o que legitimava o adultério - tendo em vista que relações extraconjugais eram tidas como naturais para estes. No entanto, elas eram:

suficientes para a configuração de um delito criminal para a mulher, mesmo que a acusação se baseasse apenas na presunção do crime. [...] o Estado legislou para proteger a segurança do estado civil e doméstico do casamento, garantindo para o homem a certeza de sua prole e exercendo um controle mais severo sobre os corpos femininos (BARSTED e HERMANN, 1995, p. 55).

Em 1889, o Brasil passa a adotar o regime republicano e com este entra em vigor, um ano mais tarde, o primeiro Código Penal desse regime. O senso comum ainda pendia para a desvalorização da mulher no meio social e a supervalorização do papel do homem.

Os legisladores da época mantiveram neste novo código o agravante de pena baseada única e exclusivamente pelo gênero da pessoa, imputando à mulher deveres mais rigorosos que os dos homens, o que acarretou na confirmação do poder de assassinato à esposa adúltera por parte do marido traído, conforme cita Barsted e Hermann (1995), “este código conceitua a legítima defesa de tal forma que acaba, na prática, por legitimar a continuidade dos assassinatos de mulheres consideradas infiéis”.

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A exclusão de ilicitude, conforme o Código Penal de 1890, era mantida em três condições:

o estado de necessidade, a legítima defesa, e o estrito cumprimento do dever legal. Embora não seja positivada em texto legal a diferenciação de gênero ao se tratar da pena aplicada neste código, a herança cultural e jurídica manteve viva a determinação da legitimação da defesa da honra como bem tutelado pelo Estado, mesmo em hipótese de assassinato. Vê-se, portanto, que:

o problema não está na escrita da lei, mas sim na manobra feita pelo discurso jurídico que, munido de suas estratégias de poder, utilizou dessa prerrogativa para abrir espaço para a impunidade dos assassinatos das mulheres consideradas adúlteras (RAMOS, 2011, p. 63).

O entendimento majoritário, portanto, determinava que “o homem ao matar sua esposa, em defesa de sua honra, está simplesmente defendendo um bem que lhe foi lesado anteriormente ao crime de assassinato”

(RAMOS, 2011). Portanto, ao interpretar a legislação e moldar o crime nas excludentes de ilicitude para legitimar a defesa da honra como bem jurídico, o homem assassino era absolvido de seu crime e não pagava por ele.

Em 1891 foi promulgada a primeira Constituição Republicana com ideais liberais, que extinguiam o poder da Igreja Católica no país, trazendo à realidade brasileira os moldes idealísticos do liberalismo e a modernidade de pensamento, que influenciara na edição da Carta Magna” (RAMOS, 2011).

Com a Igreja sem os poderes que lhe eram, até então, incumbidos, oEstado laico passou a regular os direitos e deveres docasamento civil que, inclusive, passou a ser o único aceito na sociedade (mesmo havendo ainda as celebrações religiosas, mas sem força de lei em seus efeitos).

Embora a Constituição tenha sido inflamada com os ideais de liberdade que afloraram no mundo do século XIX, trazendo um avanço à República, ainda haviam muitos dogmas católicos que permaneciam nos ditames legais e sociais, com pautas conservadoras em sua essência - como podemos ver com a edição do Código Civil de 1916 - que, embora fosse o primeiro código elaborado especificamente no Brasil, mantinha relações íntimas com o conservadorismo no que diz respeito à configuração familiar e,

sobretudo, à designação comportamental feminina:

A família descrita no Código era organizada de forma hierárquica, tendo o homem como chefe e a mulher em situação de inferioridade legal.

O texto de 1916 privilegiou o ramo paterno em detrimento do materno; exigiu a monogamia;

aceitou a anulação do casamento face à não-virgindade da mulher; afastou da herança a filha mulher de comportamento ‘desonesto’. [...] Por esse Código, com o casamento, a mulher perdia sua capacidade civil plena, ou seja, não poderia mais praticar, sem o consentimento do marido, inúmeros atos que praticava sendo maior de idade e solteira. Deixava de ser civilmente capaz para se tornar ‘relativamente incapaz’ (BARSTED e GARCEZ, 1999, pg. 17, grifo nosso).

Independente da separação do Estado e Igreja, a moral católica ainda constituía a base do discurso jurídico, alimentando, frequentemente, resquícios regressistas frente à nova sociedade que vinha se firmando no início do século XX, que, embora sofresse com a condição da mulher como ser desqualificado de direito e passível de violência, trazia em sua formação ideais modernos e igualitários de direitos e, mais especificamente, de gênero (RAMOS, 2011).

A atualização do sistema jurídico do século XX

O Código Penal vigente no Brasil foi criado em 1940, pelo Decreto-lei Nº 2848 de 07 de dezembro de 1940, e foi reformado em sua parte geral pela Lei Nº 7.209, de 11 de julho de 1984. Este é a maior expressão do direito penal positivo no Brasil.

“Este código foi escrito em um momento diferente do atual, em uma sociedade essencialmente patriarcal e machista”

(PIMENTEL, SCHRITZMEYER e PANDJIARJIAN, 1998). Mesmo com a reforma

que sofreu em 1984, ainda existiam normas que não cabiam mais em uma democracia que positivou a igualdade de direitos entre homens e mulheres (Art. 5º, inciso I, CF/88).

A face democrática da lei que se estabelecia era voltada ao comprometimento jurídico mediante tratados internacionais e nacionais de proteção às mulheres contra qualquer atitude que leve à morte, danos e violência física, psicológica ou sexual, de forma pública ou privada, a garantir a igualdade e a não discriminação perante a lei e na prática de

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qualquer cidadão, assim como a eliminação do preconceito de gênero diante da justiça, conforme art. 1º e 6º, letra “a” da Convenção

qualquer cidadão, assim como a eliminação do preconceito de gênero diante da justiça, conforme art. 1º e 6º, letra “a” da Convenção