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Legislação protetiva patrimonial UNESCO, Constituição Federal e IPHAN

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2.4 Legislação protetiva patrimonial UNESCO, Constituição Federal e IPHAN

movimento político que ocorreu em nível mundial baseado na preservação do patrimônio cultural, eram os olhares que se voltavam com mais força à preservação de nossa identidade nacional, existindo hoje uma ideologia baseada na compreensão social de que essa responsabilidade da preservação do patrimônio cultural, seja de natureza material ou imaterial é de todos, Estado e sociedade.

Nesta conjuntura, destacando-se a importância para a humanidade do patrimônio cultural, é que foi criada sob a efervescência das políticas internacionais em 1945 a UNESCO- Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, com o objetivo de fomentar a solidariedade intelectual e moral da humanidade.

Em 17 de outubro de 1972, aconteceu em Paris uma Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, onde se ratificou a Convenção para a proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Nacional, que tem como atribuições promover, identificar, proteger e preservar este acervo patrimonial cultural e natural mundial. O Brasil é signatário desta convenção desde 1977 em conformidade com o Decreto Legislativo Nº 74, de 1977.

As discussões envolvendo o patrimônio cultural, entendimentos relativos a este, proteção e estratégias necessárias para sua efetivação, têm sido foco de anos de estudo, pesquisas e articulações de muitos estudiosos mundo à fora, que o tratam numa perspectiva sociológica, antropológica, histórica, jurídica, turística, ambiental e tantas outras que envolvem esse objeto de estudo dos mesmos há décadas. Uma das contribuições mais relevantes neste âmbito de estudos foi o reconhecimento dado pela UNESCO dessa categoria que conhecemos por patrimônio imaterial, onde se insere a gastronomia.

Nesse sentido, em conformidade com outra convenção formalizada em Conferência Geral da UNESCO, realizada em Paris do dia 29 de setembro ao dia 17 de outubro de 2003, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto nº 5.753, de 12/04/2006, com pauta baseada na salvaguarda do patrimônio imaterial cultural, que objetivou, de acordo com o prescrito no art 1º da supracitada convenção: a) a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial; b) o respeito ao patrimônio cultural imaterial das comunidades, grupos e indivíduos envolvidos; c) a conscientização no plano local, nacional e internacional da importância do patrimônio cultural imaterial e de seu reconhecimento recíproco; d) a cooperação e a assistência internacionais. Desta forma, a UNESCO definiu o que era patrimônio cultural imaterial, de acordo com o art. 2º da supracitada convenção:

1. Entende-se por “patrimônio cultural imaterial” as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. Para os fins da presente Convenção, será levado em conta apenas o patrimônio cultural imaterial que seja compatível com os instrumentos internacionais de direitos humanos existentes e com os imperativos de respeito mútuo entre comunidades, grupos e indivíduos, e do desenvolvimento sustentável. 2. O “patrimônio cultural imaterial”, conforme definido no parágrafo 1 acima, se manifesta em particular nos seguintes campos: a) tradições e expressões orais, incluindo o idioma como veículo do patrimônio cultural imaterial; b) expressões artísticas; c) práticas sociais, rituais e atos festivos; d) conhecimentos e práticas relacionados à natureza e ao universo; e) técnicas artesanais tradicionais. 3. Entende-se por “salvaguarda” as medidas que visam garantir a viabilidade do patrimônio cultural imaterial, tais como a identificação, a documentação, a investigação, a preservação, a proteção, a promoção, a valorização, a transmissão – essencialmente por meio da educação formal e não- formal - e revitalização deste patrimônio em seus diversos aspectos.

Em nível de Brasil, os bens culturais vêm sendo protegidos desde a Constituição Federal de 1937, muito embora a tutela fosse concedida apenas para órgãos públicos. A Carta Magna de 1988, lei maior de nosso país trouxe a ampliação conceitual para as categorias de patrimônio, como também aumentou a abrangência no que concerne a possibilidade de edição de leis protetivas ao patrimônio cultural, artístico, turístico e paisagístico, já que estabeleceu em seu texto a competência concorrente. Ademais, elaborou em seu bojo outras medidas protetivas e a utilização de remédios constitucionais no que atine a patrimônio cultural, possibilitando o exercício desse direito até em caráter individual. Rodrigues (2006), relata que:

A instalação da Constituinte Brasileira no final dos anos 80 foi também um marco considerável na construção do atual conceito de patrimônio cultural, uma vez que as forças dos partidos de esquerda, dos grupos intelectuais e dos órgãos de cultura juntaram-se para construir um conceito de patrimônio cultural de conteúdo mais dinâmico, mais vivo, mais popular e, acima de tudo, que favorecesse o exercício da cidadania, processo que vinha sendo construído desde os anos 70 (Rodrigues, 2006, p. 11)

.

Observa-se da letra da lei, que a Constituição da República Federativa do Brasil de 5 de outubro de 1988, ampliou a noção de bens culturais, quando trouxe em seus artigos 215 e

216 o reconhecimento da existência de bens culturais de natureza material e imaterial. Deste modo, de acordo com o prescrito no art. 215 “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes de cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais” (Brasil,1988).

Neste intento, o legislador constituinte, como guardião de direitos e garantias individuais e sociais, estabeleceu direitos relativos aos bens culturais e à cultura e o acesso às suas fontes nacionais, como garantiu o apoio, incentivo, valorização e a disseminação dessas manifestações que expressam cultura. Outrossim, também definiu a composição do patrimônio cultural. De acordo com art. 216,

[...] o patrimônio cultural é composto pelo conjunto dos bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Entre os bens que compõem o patrimônio cultural brasileiro, destacam- se: a) as formas de expressão; b) os modos de criar, fazer e viver; c) as criações científicas, artísticas e tecnológicas; d) as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; e) os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico (Brasil,1988, s.p.).

Além disso, cumpre fazer referência que a CF/88, em seu artigo 24, VII, dispõe que compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre a proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico.

Desta forma, conforme o texto magno a competência é de todos, ou seja, concorrente. Neste entendimento, todos os entes políticos da Federação são competentes e responsáveis em matéria pertinente à necessária proteção aos bens culturais. Essa competência comum evidencia a obrigação solidária entre os entes federativos no que concerne a proteção desses patrimônios.

Ademais, o texto constituinte definiu uma relação de mecanismos de proteção do patrimônio cultural brasileiro: 1) inventários, 2) registros, 3) vigilância, 4) tombamento, 5) desapropriação, e 6) outras formas de acautelamento e preservação. Outrossim, ficou sob responsabilidade da administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental.

Não obstante, a Constituição ter contemplado o conceito e definição de patrimônio cultural imaterial em 1988, estabelecendo diretrizes para sua efetiva materialização, gestão e proteção por meio de criação de instrumentos competentes para o alcance da norma, ações de

órgãos com atribuições para tanto eram esperadas e necessárias, como forma de complementação legislativa, dada pela sua efetiva proteção, o que ocorreu alguns anos depois, em 4 de agosto de 2000, por meio da edição do Decreto 3.551 emitido pelo IPHAN, instituindo o “Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial”.

A nova legislação instituiu, então, o registro e o compromisso do Estado em inventariar, documentar, produzir conhecimento e apoiar a dinâmica dessas práticas socioculturais, agora sujeitas a formas protetivas que os tornassem concretos e não apenas reconhecidos pela Constituição Federal.

Desta forma, deixava de ser sonho e tornava-se realidade os ideais desejados por Mário de Andrade e, posteriormente, por Aloísio Magalhães, que almejaram muito o reconhecimento e tratamento protetivo adequado para esse patrimônio intangível. Ademais se criou o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI) e o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC).

Em conformidade com o IPHAN, os bens culturais imateriais do Brasil podem ser classificados e dispostos em 04 livros de registros: Livro 1: Livro de Registro dos Saberes23,

Livro 2: Livro de Registro das Celebrações24, Livro 3: Livro de Registro das Formas de

Expressão25 e Livro 4: Nele, são inscritos os mercados, feiras, santuários e praças onde se

concentram e/ou se reproduzem práticas culturais coletivas26.

A inscrição dos nossos modos de fazer referentes às comidas típicas e atividades associadas a esses são efetuados no Livro 1 que é o “Livro de Registro dos Saberes- criado para receber os registros de bens imateriais que reúnem conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades. Os Saberes são, então, conhecimentos tradicionais associados a atividades desenvolvidas por atores sociais reconhecidos como grandes conhecedores de técnicas, ofícios e matérias-primas que identifiquem um grupo social ou uma localidade. Geralmente, estão associados à produção de objetos e/ou prestação de serviços que podem ter sentidos práticos ou rituais. Trata-se da apreensão dos saberes e dos modos de fazer relacionados à cultura, memória e identidade de grupos sociais” (IPHAN, 2018, s.p.).

Os quatro livros de Registro do IPHAN, competentes para a inscrição dos bens,

23 Livro de Registro dos Saberes- criado para receber os registros de bens imateriais que reúnem conhecimentos e

modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades (IPHAN, 2018).

24 Livro de Registro das Celebrações - Reúne os rituais e festas que marcam vivência coletiva, religiosidade,

entretenimento e outras práticas da vida social (IPHAN, 2018).

25 Livro de Registro das Formas de Expressão - Criado para registrar as manifestações artísticas em geral (IPHAN,

2018).

26 Nele são inscritos os mercados, feiras, santuários e praças onde se concentram e/ou se reproduzem práticas

denotam um grande progresso no que tange a questão patrimonial no Brasil. Desta forma, constata-se que, para que bens gastronômicos de valor se constituam como categoria de patrimônio imaterial, reconhecidos pelo Estado se faz premente estudos materializados por inventários, realizados por meio do IPHAN, através de seus agentes com auxílio da comunidade local. Esses estudos desembocam em dossiês temáticos que vêm a tornar concreto o seu registro no Inventário Nacional de Referências Culturais – INRC.

Então, com esta significação atribuída à gastronomia identitária, alerta-se para a urgência de ações que promovam a salvaguarda regional em busca de uma futura inscrição nos livros do IPHAN. Observa-se, da análise do site do instituto, bens gastronômicos e ofícios associados a estes sendo inscritos nos Livros do órgão e outros com processo de patrimonialização tramitando. São os casos do:

Figura 23. Acarajé.

Fonte: Destination Tips, 2018.

No que concerne a bens gastronômicos brasileiros inscritos no Livro do IPHAN, logo nos vêm à mente o caso do acarajé, uma preparação emblemática de sua região, que se transmuda na “cara” da Bahia. De antemão, imagina-se que seria quase inconcebível alguém viajar até Salvador e deixar de provar esse bolinho feito de feijão-fradinho, cebola e sal, frito no azeite de dendê. Especialidade gastronômica da cozinha afro-brasileira. O ofício das baianas do acarajé também foi inscrito no IPHAN. Mais ações têm sido implementadas no Brasil visando a proteção da gastronomia típica por meio do IPHAN e sua inscrição patrimonializadora. Esse é o caso do Tacacá.

Figura 24. Tacacá.

Fonte: Visite o Brasil, 2018.

Não os modos de fazer para a sua preparação, mas o ofício das tatacazeiras na região norte encontra-se em processo de instrução para registro no IPHAN, processo: 01450.014958/2010-22 – data: 08/10/2010. De acordo com informações retiradas do site do supracitado órgão, estão aguardando o trâmite processual para inscrição: produção de doces tradicionais pelotenses - processo: 01450.016835/2009-92 – data: 30/10/2009, modo de saber fazer do queijo artesanal serrano de Santa Catarina e Rio Grande do Sul- Processo: 01450.007311/2013-97 – data: 27/03/2013, ofício das quitandeiras de Minas Gerais - processo: 01450010688/2013-23 – data: 29/10/2013, processos esses que envolvem a gastronomia em si, seus modos de fazer ou os ofícios de quem lida com ela no dia-a-dia.

Tendo em vista ser o IPHAN um órgão federal, observa-se que ações de baixo para cima são bem-vindas também, para fortalecer em nível local, o que pode e deve ser protegido sobre as três esferas, tanto municipal, estadual como federal. Neste intento, políticas públicas locais são essenciais no sentido de buscar o seu patrimônio de valor, presente na identidade regional.

No Brasil, as ações no sentido de proteção patrimonial gastronômica por meio de criação de leis municipais, estaduais e federais ainda são bem novas, afinal essa compreensão do patrimônio imaterial é muito recente em nossa sociedade, mas já vem se delineando na direção de se estudar e proteger esse patrimônio imensurável que é a gastronomia típica. Exemplos de proteção por legislação pátria são o do Virado à paulista, do tereré, do bolo de rolo a da ginga com tapioca.

Figura 25. Virado à paulista.

Fonte: Veja São Paulo, 2018.

O virado à paulista é um prato tipicamente paulista que foi declarado como patrimônio cultural imaterial da cidade por meio do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Governo do Estado de São Paulo (Condephaat) – órgão da Secretaria de Cultura. Tendo sido reconhecido pelo do decreto 57.439, de 2011, que institui o registro de bens culturais de natureza imaterial do estado de São Paulo, portanto uma Lei estadual.

Interessante observar, ainda, que a cidade mais cosmopolita do Brasil, onde se encontra qualquer tipo de comida do mundo se preocupa com identidade gastronômica, isso é um sinal do relevo que a proteção patrimonial das gastronomias típicas tem ostentado.

Figura 26. Tereré.

Conforme site da Secretaria de Turismo do Estado do Mato Grosso do Sul (2018, s.p.) “a música e a culinária são os principais componentes da ‘genética’ cultural de Mato Grosso do Sul”.

Neste sentido de valorização cultural, baseados em alimentos e bebidas, é que um decreto do Governo do Estado determinou o registro do tereré como patrimônio imaterial histórico e cultural do estado, revelando dessa forma a importância do ciclo da erva-mate dentro do contexto de desenvolvimento da região.

O registro oficial foi efetuado por meio do Decreto nº 13.140 de 31 de março de 2011. A partir do Decreto o Tereré de Ponta Porã foi inscrito na Livro de Registro dos Saberes do estado do Mato Grosso do Sul.

Figura 27. Bolo de rolo.

Fonte: GNT, 2018.

O bolo-de-rolo é uma iguaria típica pernambucana que é feita a partir de camadas finíssimas de pão-de-ló. Teve seu reconhecimento patrimonial instituído em 2007 pela Lei Ordinária nº 379.

Passando a ser cada vez mais conhecido e divulgado, o bolo-de-rolo ganhou fama e começou a ser feito em praticamente todos os estados do Nordeste brasileiro, embora o original de Pernambuco guarde características diferentes tanto no sabor como na maneira de fazer. Turistas e até pessoas de outros estados, "encomendam" o doce a algum amigo ou parente quando têm oportunidade (Andrade, 2018, s.p.).

Figura 28. Ginga com tapioca.

Fonte: Humor digital, 2018.

Preparação gastronômica tipicamente natalense, foi criada por volta dos anos de 1950 e 1960. Em conformidade com informações retiradas do Livro intitulado “Ginga com tapioca” (Dantas, 2015). Usando na sua preparação insumos genuinamente locais, como o pescado escolhido, a tapioca feita de mandioca e coco, além do azeite de dendê, de origem africana, criou-se o famoso sanduíche de marinheiro, mais conhecido mesmo como ginga com tapioca. Pelo modo de fazer genuíno e sua história e simbologia regional, o mercado da redinha e a preparação “Ginga com Tapioca”, ganharam força de lei por meio de legislação municipal n. 6.617 sancionada em 2 de junho de 2016, onde em seu bojo foram considerados patrimônio cultural o mercado da Redinha e como patrimônio imaterial da cidade do Natal a Ginga com Tapioca.