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Turismo Patrimônio

CAPÍTULO 4 Resultados e discussão

4.1 O Choriço, o filhós e a linguiça do sertão

A culinária da região do Seridó constitui-se em uma das nítidas formas de se exteriorizar a personalidade arraigada do sertanejo, que sabe o que come, valoriza o que é da terra e faz questão de consumir sua produção alimentícia. Os seus modos de fazer, espelhados no seu cozinhar identitário e sua forma própria de servir comida, lhe são imanentes e os apropriam de um contexto social e econômico em que viveram e vivem, como reflexo de sua pertença.

Dentro deste cenário histórico, sabe-se que os costumes alimentares e suas receitas muitas delas centenárias, fundaram-se em bases onde a mistura cultural deu sabor e tempero à sua comida, muito típica e característica, rememorada pelo retrogosto que fica na boca e nas lembranças gustativas dos que um dia experimentaram o sabor do sertão do Seridó Potiguar.

Figura 31. Choriço.

Fonte: Museu Virtual, 2018.

Deste modo, tem-se conhecimento que esta gastronomia identitária é composta pela utilização de produtos como os derivados de bovino, a exemplo da carne de sol, os queijos de coalho e manteiga, a manteiga de garrafa, o arroz de leite e a coalhada, entre outros muito consumidos na região, sem deixar de citar os biscoitinhos artesanais. Também há duas produções muito representativas do Seridó que se utilizam do porco, que são a linguiça do sertão e o choriço. Outro representante gastronômico muito relevante neste contexto alimentar é o

filhós. Sendo as técnicas utilizadas nos preparos e os produtos, resultado de uma miscigenação de gostos sociais dos colonizadores portugueses, dos costumes indígenas, da alimentação dos escravos africanos e também da influência judaica sefardita na região. Foi assim que foi formado o gosto social alimentar do seridoense, gerador de iguarias deliciosas e peculiares.

Não desmerecendo as outras tantas iguarias formadoras do acervo de comidas seridoenses, mas por questões de delimitação de campo de estudo e pela representatividade social e histórica, e, tendo em vista que constam em Inventário Cultural do Seridó e são referenciadas em livro do IPHAN, foram escolhidas o choriço, a linguiça do sertão e o filhós para serem foco de análise de nossas dimensões gastronômicas observáveis: Identidade, proteção patrimonial e incentivo turístico gastronômico.

Figura 32. Choriço.

Fonte: Arquivo pessoal, 2018.

Demonstrando a sua característica de povo que na adversidade gerou diversidade cultural, nasceu o choriço do Seridó, doce herdado dos colonizadores portugueses (Cascudo, 1991), tendo sido adaptado à realidade da região do Seridó. Neste cenário em que haviam poucas terras agricultáveis e, por isso, também não se dispunha de tanta fruta, se usava a criatividade além do aceitável e, desta forma se inseria na mesa do seridoense o doce do sangue, inconcebível para uns, a iguaria adoça o sague como tempero e obtém aceitação e respeito de muitos. Exótico em sua essência, o choriço é a pura transformação do proibido em presente de Deus, por meio da “metamorfose” do sangue com sua legitimação como comida. São horas estabelecidas no relógio para a feitura deste doce com sua cocção completa. Não se pode deixar

de mexer um só instante, senão o doce pode queimar no fundo da panela, sendo necessárias várias mãos para esse trabalho. A receita leva elementos facilmente encontrados na localidade, o que faz dele impregnado à terra sob a ótica simbológica e da territorialidade. Câmara Cascudo, ensina a receita tradicional:

Faz-se o mel da rapadura, esfria-se e mistura-se no fogo brando com o sangue de porco, até ferver, mexendo-se com colher de pau para não encaroçar. Depois de bem fervido, coa-se e adiciona-se à farinha e aos temperos. Depois vai-se despejando devagar a banha derretida de porco e mexendo-se sem parar em fogo esperto, para que fique a mistura perfeita. O chouriço só está no ponto de tirar quando se vai despregando do tacho, deixando o fundo da vasilha limpo. Demora umas duas horas. Enfeita-se com castanhas inteiras e come-se frio, com farinha bem fina (Cascudo, 1991, p. 223)27.

Tratando do assunto, Cavignac et al. (2018, p. 55), prescrevem:

Durante a efervercência coletiva da matança do porco e de sua transformação em alimento e do seu consumo, podemos observar como os vínculos sociais se constituem: os laços de parentesco, a vizinhança e a amizade estruturam as relações socias do cotidiano comunitário. A abundãncia da comida corresponde à generosidade para a criação do animal – todas as partes são aproveitadas, a carne é consumida no mesmo dia ou redistribuída entre parentes e amigos que não podem participar da festa.

Neste cenário de modificação do proibido no permitido, o sangue, considerado exótico e estranho à alimentação humana, ganha status de comida e é adoçado, o que o torna ainda mais incomum e diferenciado. Revelando em seus modos de fazer, também uma prática social suigeneris, onde existe todo um ritual para a sua feitura. Necessitando de muitas pessoas para o seu preparo, onde todo essa união, gera dentro do seu núcleo, aproximação, comensalidade e obrigações solidárias.

27 A referida receita foi inserida dentro do texto fundamentada em representatividade cultural, tendo em vista a

singularidades de Luiz da Câmara Cascudo nesta seara. Observa-se, portanto, que a receita do choriço em sua execução habitual, geralmente, leva para a total feitura de 12 a 14 horas, em média, podendo variar de acordo com quem a executa.

Figura 33. Filhós.

Fonte: Arquivo pessoal, 2018.

De acordo com informações retiradas do site Correio Gourm@nd (2019), Filhós se constitui em um doce típico português estando presente em seu receituário tradicional. Guloseima extremamente disseminada por todo Portugal, em especial, produzido nas regiões do Alentejo, Beira Baixa e Trás-os-montes, a iguaria está fixada no memorial afetivo do povo português, estando associada a diversas festas em especial a natalina.

Ainda, em conformidade com o site supracitado, o nome nasceu da palavra latina foliola, que é o mesmo que pequena folha, que deu origem ao vocábulo filhó, sendo seu plural filhós, recebendo o doce esse nome já que é feito a partir de uma folha de massa frita, que pode vir a ser moldada de diversas formas, podendo ser redondas, retangulares, triangulares ou como se preferir.

Em conformidade com o site português “A senhora do Monte” (2019), de norte a sul de Portugal há variações na denominação dos filhoses, podendo ser chamados de coscuréis, tendidas, fintas, borrachões, judias, malassadas. O site também revela que na região do Alentejo (em Mora) há a tradição de se fazer o doce em forma de sonhos e degustados embebidos em mel de rapadura, tal qual na região do Seridó. O filhós do Seridó é feito sempre redondinho, podendo ser moldado ou de colherada. Deste modo Carvignac et al. (2018, pp. 49-50), se reportam ao filhós do Sertão:

O filhós, doce frito, tem sua origem em Portugal, mas a receita foi modificada no Seridó, com variações da substituição da farinha de trigo por batata doce, macaxeira ou fubá de milho. No seridó é servido com mel feito a partir da rapadura fervida em água. É um dos quitutes mais apreciados em toda região, associado ao calendário cristão: consumido preferencialmente no carnaval: durante a quaresma e na Festa de Santa’Ana, é um doce apreciadíssimo. Segundo as doceiras, o filhós era produzido tradicionalmente no domingo de carnaval, conhecido como “domingo de Entrudo” ou “domingo mela-mela”, quando as pessoas tinham o costume de se sujarem com goma e mel e saírem “melando” as outras, invadindo as casas durante esses “assaltos”, Os “papangus”, brincantes fantasiados com máscaras, trajavam-se com roupas velhas e saíam assustando as pessoas, principalmente as crianças. Para que eles não fizessem medo às crianças, os adultos davam-lhes filhoses com mel.

De acordo com o portal G1 da Inter Tv Cabugi, para a receita são necessários os seguintes ingredientes:

 500 gramas de farinha de trigo sem fermento;

 125 gramas de manteiga - cerca de três colheres de sopa (não pode ser margarina);

 4 copos americanos de água;  3 ovos;

 sal a gosto;  mel de rapadura.

E o seu modo de preparo é o seguinte:

1. O primeiro passo é colocar a água com manteiga e sal para ferver no fogo. 2. Em seguida, é preciso colocar a farinha de trigo em uma vasilha, onde será feita a massa.

3. Quando a água estiver fervendo, ela deve ser colocada na vasilha com a farinha e misturada. "Tem que ficar bem unido, bem amassadinho, senão não fica fofo".

4. Os ovos são colocados em seguida, mas é preciso que o material ainda esteja bem quente. "O ovo é cozido na massa".

5. Depois de misturar bem a massa, é necessário deixá-la descansando por uma hora. É o tempo que ela leva para ficar no ponto de serem feitas as bolinhas. A dica é usar um pouco de óleo nas mãos, para facilitar o trabalho. Assim, a massa não gruda.

6. Com as bolinhas prontas, é hora de fritar em óleo quente. Em cinco minutos, o filhós estará pronto.

Para fazer o mel de rapadura, basta colocar a rapadura dentro de água, no fogo. Na hora de comer, a pessoa mela o filhós no mel de rapadura.

Figura 34. Linguiça do sertão.

Fonte: Arquivo pessoal, 2018.

Em conformidade com o site novonegocio (2019, s.p.):

As linguiças são originárias dos embutidos, que já eram produzidos e servidos desde a civilização Romana. O termo linguiça vem do italiano, derivando da palavra luganega, que surgiu na tribo itálica. A produção e consumo dos embutidos resistiu aos séculos, chegando ao produto que conhecemos na atualidade”. “No Brasil, as linguiças chegaram juntamente com a colonização portuguesa, pois a especiaria era amplamente consumida pela população colonizadora.

O tipo de linguiça do Seridó é conhecido por linguiça do sertão ou linguiça da terra e é uma iguaria produzida mediante processo artesanal e reconhecida como uma preparação diferenciada da região do Seridó. Por ser feita por meio de secagem, é um produto extremamente duradouro, que por esse motivo é também facilmente encontrada em cidades fora do Seridó, fato que faz desta preparação gastronômica, uma das mais conhecidas do Seridó, para além de suas fronteiras.

Esta produção se materializa como um embutido similar em sua forma à uma salsicha. Feita de carne de porco é ensacada na própria tripa do porco. O processo de cura e conservação ao qual a linguiça é submetida lhe confere um gosto salgado, bem pronunciado e típico, sendo esta uma das características que a diferencia de outros tipos de linguiças produzidas sob outras formas de elaboração.

Ingredientes: 1 kg de carne de porco; 1 kg de carne de gado cortada em pedaços miúdos ou triturada no processador; 500 ml de leite de gado; sal, pimenta-do-reino, alho, cebolas, colorau; cominho, louro e limão a gosto; tripas para encher.

Modo de preparo: Tempere as carnes, já cortadas em pedaços miúdos, com sal, pimenta-do-reino, alho socado, cebola batidinha, colorau, louro, cominho e leite. Deixe ficar 24 horas neste molho. Passado este prazo, enata as tripas, previamente esfregadas com limão e muito bem lavadas, com a carne temperada. Depois de cheias, fure-as de quando em quando, para sair o ar, e amarre-as com barbante.

Leve-as ao sol. Faça isto durante uns três dias e, depois, guarde-as em uma vasilha, alternando uma camada de linguiça com outra de banha, sucessivamente.

Deste modo, apresentadas as preparações e, no sentido de tecer uma teia em que a memória é visitada e figura como a principal matéria prima para se estabelecer um diálogo esclarecedor e construtor de elementos desveladores da identidade de um lugar, no caso estudado, o Seridó, se utilizou, como aporte científico a análise da história oral de pessoas que mantiveram e mantém fortes vínculos afetivos gastronômicos com a região do Seridó Potiguar, levando em consideração a ligação existente entre memória e identidade social encontrada nessas narrativas de vida, delineadas e inseridas na solidificação memorial seletiva de cada um dos entrevistados.

Em decorrência disso, depreende-se que a memória das memórias de um povo nos oportuniza trazer à compreensão e adentrar no âmago pessoal e coletivo compartilhado, onde se perpetuam acontecimentos, fatos, marcos relevantes que não se esvaíram do pensamento dessas pessoas ao longo de suas vidas, por serem essas recordações seus cernes identificadores pessoais e sociais, que os corporificam e os tornam coesos por meio do pertencimento de ser seridoense, elegendo, assim, entre as suas semelhanças os seus pontos de encontro com seu povo e, em relação concomitante, também apresenta a sua distinção cultural com o mundo exterior, fazendo assim, com que se mostrem para o meio exógeno como sociedade identificável, sob a apresentação de seu eu individual e social diferenciado, apontando a alteridade como componente elementar na constituição do sujeito neste processo de reconhecimento trazido pela pós-modernidade que revela aproximação e, também, distanciamento.

Nestes termos, observou- se que o dizer ser seridoense imprime orgulho identitário nos seus integrantes, que se veem ao longo da vida com uma imagem adquirida por ele próprio com suas vivências e convivências, sendo estas seu espelho que são internalizadas para si e apresentadas aos outros sob a forma de características distintivas próprias e comuns ao Seridó,

que os aponta dentro do seu núcleo como igual e que os expõem fora dele em sua essência de sertanejo, portador de seu regionalismo peculiar, que atrai admiração, comparação e curiosidade do outro.

Então, relata-se que, dentro deste entrelaçamento onde memória e identidade do povo seridoense são averiguadas, se pondo em observação características como a sua hospitalidade própria, aqui abordada mais especificamente na questão da comensalidade e também na sua particularidade e singularidade cultural tão bem referida e corroborada por fontes anteriormente citadas, nos ativemos e focamos nas falas que trouxessem ratificação e comprovação ou não desse empoderamento sociocultural apontado e reconhecido por estudiosos da região sob exame.

Com o intuito de explorar analiticamente e obter esclarecimentos para este estudo por meio da compreensão da memória gustativa e afetiva dos ouvidos e na impossibilidade de trazer em questão para o estudo em comento toda a produção de comida da terra como material de investigação, dado a quantidade de preparações típicas variadas presentes neste campo riquíssimo de pesquisa, é que foram eleitas estas três importantes e representativas produções gastronômicas regionais, que foram apresentadas acima: o filhós, a linguiça do sertão e o choriço, apontadas em Inventário cultural do Seridó e em Dossiê do IPHAN, acerca da Festa de Santana.