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CAPÍTULO 2 – Cultura e identificação social

2.1 O homem pela sua comida

Quando é trazido à reflexão a assertiva de que o homem é aquilo que come, coloca- se em evidência o caráter cultural e identificador da alimentação, partindo-se do pressuposto essencial, que através da sua comida este indivíduo poderá ser distinguido como integrante de determinado núcleo social onde quer que esteja e, neste intento, procura-se demonstrar a importância do fenômeno alimentar para a sociedade, como ratificador de alteridades6 e fortalecedor de cultura.

Diante disto, antes de aprofundarmos a respeito da relação íntima entre alimentação e sua natureza cultural, e, como forma de generalizar para uma maior apreensão das considerações e conceitos expostos nesta temática, traz-se uma noção do que seria cultura em um enfoque sócio - antropológico aqui aplicado, para a posteriori, seguindo neste âmbito simbólico- identitário, enfim, tentar buscar-se a compreensão da alimentação como cultura, em sua inteireza, associações, conexões e benefícios decorrentes deste estreito vínculo entre as mesmas (cultura e alimentação).

Figura 6. Aferição espacial.

Fonte: Elaboração própria (2018).

Neste prisma identitário, apresentando uma visão social acerca de cultura, Casasola

6 Por meio destas alteridades definidas que caracterizam o outro, o distinto, o diferente, tem se encontrado

identidades, que, se postas em comparação umas com as outras, se revelam como singulares e típicas de determinado constructo social.

(1983) a define como sendo o produto advindo das relações entre a sociedade e o meio ambiente, obtida por meio de conhecimentos, atitudes e hábitos a partir desta interação do ser humano com este espaço de apropriação territorial e simbólica onde está inserido, que é a sociedade a qual faz parte.

Perante esta conceituação suscitada pelo autor, assimilamos cultura nesta seara aqui explanada, como sendo a transformação da natureza dada pelas mãos do homem em seu habitat social. Neste mesmo campo do pensamento, Geertz (1989) tratando desta perspectiva homem – cultura, elucida, quando preconiza: Sem os homens, certamente, não haveria cultura, mas, de forma semelhante e muito significativamente, “sem cultura não haveria homens” (Geertz, 1989, p. 61).

Dentro deste raciocínio, observa-se, nitidamente, sob a ótica do autor supracitado, uma simples compreensão: o homem como produto do meio e o meio como produto do homem. Desta forma, entende-se que a cultura que este humano produz é o meio sendo formado e modificado por ele, ou seja, a ação do homem sobre a natureza criando cultura e, em relação associada, o próprio homem seria produto do meio que ele produz, já que, em vínculo sistêmico e simbológico, seria ele mesmo um produto do próprio meio em que vive, sendo este a sua fidedigna representação.

Destacando, ainda mais, essa inter-relação indissociável entre o homem e a cultura, o mesmo autor reforça esse entendimento quando prescreve que os seres humanos seriam animais que não estariam completos e nem acabados, porém, alcançariam essa completude e se tornariam perfeitamente concluídos, por meio da captação de cultura, sendo essa, pois, um ingrediente imprescindível para a constituição deste animal.

Porém, põe em ressalva esta afirmação, quando finaliza o seu entendimento, externando que esse humano completo não seria possível por meio da aquisição de cultura em geral, mas se integralizaria pela obtenção de culturas extremamente particulares.

Nesta concepção, percebe-se que o ser humano só alcança seu estágio de completude por meio da apropriação cultural peculiar, haja vista ser determinante para a finalização de sua formação específica. Ademais, é com essa cultura particular e própria dele que os homens se tornam identificáveis - uns em relação aos outros, criando-se assim “personalidades” socioculturais definidas e singulares, gerando códigos de conduta entre as partes formadoras de seus núcleos. Se diferenciando, portanto, por meio de suas especificidades, que os tornariam iguais em seu meio e diferentes e típicos em outros ambientes,

portanto reconhecíveis e identificáveis (típicos7 e tipificáveis8).

Destarte, apreende-se que o regionalismo do ser humano, que seria essa cultura específica, com seu âmago caracterizador, além de o completar na sua essência estrutural identitária, deste modo, o tornando típico do seu lugar de origem, tem, também o condão de o diferenciar fora do seu meio e, neste sentindo, também, possibilitando serem tipificáveis além de suas bases culturais; para tanto, aptos à identificação onde quer que estejam, para além de seu limítrofe geográfico e do seu espaço temporal.

O sociólogo e antropólogo francês Dennys Cuche (1999), se referindo a importância da cultura para as ciências sociais e tratando também dessa capacidade identificadora procedente do fenômeno cultural, prescreve que:

[...] a noção de cultura é inerente à reflexão das ciências sociais. Ela é necessária, de certa maneira, para pensar a unidade da humanidade na diversidade além dos termos biológicos. Ela parece fornecer a resposta mais satisfatória à questão da diferença entre os povos [...] (Cuche, 1999, p. 09).

Adotando esta postura do pensamento, onde se busca uma singularidade identificadora de alteridades, o autor procura explicitar a ideia de distinção das sociedades, onde o que as diferencia seria a cultura que lhe é caracterizadora, sendo para tanto esta, o elemento que aponta e a reconhece.

Neste diapasão, estas relações baseadas na alteridade que contrasta, distinguem e diferenciam e, ao mesmo tempo, define como tal, também gera interação e dependência com o outro, já que firma que o eu como ser individual só é compreendido a partir do contato e da comparação com o outro, a partir disso, exteriorizando personalidades sociais passíveis de identificação. Neste sentido, observando o entrelaçamento entre homem, cultura e identidade, Burity (2002) disserta:

O interesse pela identidade, que vem a se somar ao filão classicamente definido pelo termo “cultura”, diz respeito à percepção dos atores de que seu lugar no mundo passa por investimentos simbólicos pelos quais eles se afirmam e negociam com outros, sua forma de inserção na sociedade (Burity, 2002, p. 07).

7 Sendo os seres humanos típicos, próprios e intrínsecos de determinados lugares ou seja característicos,

particulares e pertencentes à determinada cultura, se mostram estes homens como regionais e, portanto, se estabelecem com sua regionalidade que lhe é caracterizadora, desta forma identificadora.

8 Se tornam esses homens caracterizáveis dentro de seu meio, como componentes de seu núcleo e fora dele, como

Da afirmação do autor supracitado, se observa, nitidamente, a questão das apropriações simbólicas e do pertencimento decorrente destas e os “gostos culturais” que são produzidos por meio de um corpo social que se “parece”, dado que fazem parte de um grupo que “pensa igual” e que se estabelece exatamente por isso, sendo regidos por meio de normas consuetudinárias9. Quando se tornam “iguais”, produzem, no interior dos seus arranjos sociais, uma cultura típica deles. Dado isso, das prescrições de Terry Eagleton (2011), assevera-se que:

Se cultura significa lavoura, cultivo agrícola, ela sugere tanto regulação como crescimento espontâneo. O cultural é o que podemos mudar, mas o material a ser alterado tem sua própria existência autônoma, a qual então lhe empresta algo da recalcitrância da natureza. Mas cultura também é uma questão de seguir regras e isso também sugere uma interação entre o regulado e o não regulado (Eagleton, 2011, p.13).

Utilizando-se de uma linguagem interpretativa baseada na epistemologia da palavra cultura, o autor supracitado procurou delinear com uso de metáfora dois lados da produção cultural, levando em consideração que existe o crescimento que ele chama de espontâneo na lavoura, que seria a natureza, que brota até sem intervenção humana e que, existe a transformação desta natureza, como a agricultura, que é a cultura produzida por um povo, que segue regras costumeiras, reguladoras de seus “limites”, que os identifica por meio dos usos, símbolos e modos de fazer iguais, deste modo, caracterizadores.

Nesta abordagem metafórica, o construto social é o regulado e a natureza é o não regulado. O que antes era natureza sem regras para crescer, quando se concebe como cultura, gerada pelo homem, sofre influências na sua construção, que a produz por intermédio de formas usuais e costumeiras de conduzir o processo criador. Na compreensão de Canclini (2015), quando traz a questão identitária em sua obra Diferentes, Desiguais e Desconectados:

[...] a cultura não é um suplemento decorativo, entretenimento dominical, atividade de ócio ou recreio espiritual para trabalhadores cansados, mas algo constitutivo das interações cotidianas, à medida que no trabalho, no transporte e nos demais movimentos comuns se desenvolvem processos de significação. Em que todos os comportamentos estão entrelaçados a cultura e a sociedade, o material e o simbólico (Canclini, 2015, p. 45).

9 Dada a repetição de formas culturais comportamentais de se proceder diante de um grupo, em um espaço e tempo

definidos, sendo estabelecido um respeito e um paradigma de conduta, surgem dentro de uma sociedade, normas não escritas, aplicadas pelos costumes, portanto são normas consuetudinárias.

Ao defender a ideia de cultura como produzida em meio a uma vivência cotidiana, edificadora de significados e constructos sociais, Canclini (2015) corrobora com o pensamento de Cuche (1999), Casasola (1983), Geertz (1989), Burity (2002) e Eagleaton (2011), descrevendo cultura como ação identificadora e produzida pelo homem, e, nesta sua faceta, a cultura revela signos identitários criados em conjunto, referendados por normas comportamentais e reconhecidos pela coletividade e diferenciados fora dela.

Constatando que o termo cultura tem origem etimológica no cultivo da lavoura, ou seja da lavra dos insumos que vêm da terra, segundo Terry Eagleton (2011), questão que também é tratada da mesma forma na obra intitulada “Cultura” de Raymond Williams (1992) quando discorre que a palavra “cultura” viria do cultivo dos vegetais ou da criação e da reprodução de animais e que por extensão se considerou como o cultivo ativo da mente humana, informando, assim, um modo de vida global de determinado povo.

Deste modo, denota-se das entrelinhas destas considerações dos autores supracitados, o quanto existe uma correlação íntima entre cultura e alimentação, tendo em vista que até do surgimento da palavra e sua origem se observa a alimentação apontada como produto cultural, que norteou a gênese da acepção do termo.

Então, nesta mesma conjuntura, onde se interpreta o fenômeno cultural às ações originadas pelo homem, e já que se sabe que comida é a transformação do alimento, portanto é criação do homem, como poderemos compreender a atividade alimentar além do seu viés fisiológico da satisfação da fome? Teríamos apenas fome para alimentar o corpo? Ou alimentaríamos o espírito também por meio dos saberes e sabores? No sentido de ratificar que comida é fonte produtora de identidades, prescrevem que:

A comida define aquele que come, garante pertencimento, sentido de grupo, classe, estilo de vida e exclusão. O tratamento social dos alimentos, como por exemplo o modo de preparo, a disposição e o consumo definem peculiaridades de quem somos e nossas aspirações em ser (Viera, Josué, Gomes & Gláucio, 2014, p. 4).

Observando que uma preparação alimentícia possui essência cultural e valendo-se desta linha de apropriações simbólicas da sociedade, reveladas por meio dela, pretende-se delinear um caminho a ser percorrido onde muito mais que alimento, quando estamos falando de comida feita por um povo, ou seja cultura alimentar, donde por meio desta se pode, inclusive, perseguir identidades perdidas ou apagadas pelo tempo, que poderá vir a traduzir quem fomos e revelar quem somos e definir até quem poderemos ser, estamos nos empoderando como

componentes sociais e nos estabelecendo além de nossas próprias barreiras territoriais e simbólicas. E, para corroborar com o entendimento de que o homem é aquilo que come, Fischler (2011) em entrevista concedida a Goldenberg, discorre:

Daí a ideia tão presente de que o indivíduo é aquilo que ele come, que ele se torna aquilo que ele come. Isso revela a importância do valor simbólico da comida. O homem “come significados” e partilha com seus pares uma infinidade de representações no ato de comer. Mais ainda, o ato de comer tem um caráter muito particular, nada é tão vital e tão íntimo. Ingerindo os alimentos, eles chegam ao que existe de mais interior de cada um. Diferentemente das roupas, que apenas entram em contato com o corpo, os alimentos transformam-se em uma substância íntima, transformam-se no próprio corpo (Goldenberg, 2011, p. 239).

Desta feita, se estabelece muito mais que um “diálogo” cultural entre o homem e o que ele come, e que lhe traz significados para além da satisfação da fome. Ademais, seus gostos sócio alimentares, se incorporam a este de maneira tão intrínseca a se transformar nele próprio, pois são características que o traduzem como integrante de uma comunidade específica, que compartilha dos mesmos costumes e gostos, interagindo dentro deste núcleo que se porta de maneira semelhante, gerando identidades por meio de sua cultura particular, cristalizada em sua cozinha de raiz.

Dentro deste cenário, observa-se que os gostos sociais se diferenciam por meio de culturas alimentares típicas com suas identidades impressas nas suas preparações e modos de fazer, comer, portar à mesa, receber, dentre outros costumes que precisam ser relacionados à outras culturas para serem identificados. Na compreensão de Woodward: A identidade, portanto, pode ser vista como relacional, cuja diferença é “determinada por uma marcação simbólica relativa a outras identidades” (Woodwards, 2000, p. 14).

Deste modo, dada essa necessidade de comparar para identificar, a cozinha se revela como uma ferramenta de fundamental importância no encontro dessas identidades enraizadas naquele núcleo social cultural, deixando e trazendo para a sociedade muito mais que sabor, sendo, portanto, uma marca de resistência e perpetuação de tipicidade, que pode atravessar espaço, tempo e transformações e mesmo assim preservar seu cerne identitário.

Quando se fala em cultura extremamente particular, aqui nos vêm à mente em associação, o que definimos como “gosto”, levando em consideração o gosto alimentar que foi concebido ao longo do tempo da formação de determinado ser social por intermédio da seleção de alimentos escolhidos para se tornarem sua comida. Neste entendimento, de acordo com ensinamentos de Damatta (2001), percebe-se que nem todo alimento poderá vir a ser

denominado de comida, mas, toda comida é alimento.

Observando, que neste ponto, não estamos tratando do gosto fisiológico que apenas dá sentido ao paladar e seria aquele compreendido no “mapa da língua”, onde doce, salgado, amargo, azedo e umami10 são detectados através de pontos específicos encontrados na língua e captados por meio de suas papilas gustativas, composta por células sensoriais, onde alguns reputam que: se detectaria o gosto doce na parte de frente da língua, o salgado e o azedo nas laterais, o amargo no fundo e o umami por todas as áreas da língua e, outros refutando este entendimento, em estudos mais recentes, cientistas químico-sensoriais, creditam que a habilidade de se sentir os vários tipos de gosto não estaria separada em diferentes partes da língua e sim estariam distribuídos por toda a superfície desta, sendo assim, todas as regiões estariam aptas a sentir os cinco gostos.

Deslocando-se dessa esfera fisiológica e, adentrando em um gosto apropriação que se compreende como gosto social, assevera-se que este seria extremamente particular de determinadas sociedades e adquirido no decorrer de sua constituição e não genético, nascido já com o indivíduo.

Assim, em conformidade com o que prescreveu Geertz (1989), quando condicionou a formação do homem à uma cultura extremamente particularizada, percebe-se o gosto como sendo esta cultura específica e individualizada e a comida produzida por este povo seria sua escolha, ou seja, seu produto cultural, advindo do seu gosto.

10 O paladar humano é capaz de reconhecer cinco gostos básicos, dentre eles o umami, que é percebido quando

ingerimos alimentos que contém aminoácidos em especial o ácido glutamínico ou glutamato e os nucleotídeos (inosina monofosfato ou inosinato e guanosina monosfofato ou guanilato).

Figura 7. Esquema simbólico da alimentação.

Fonte: Elaboração própria (2018).

Dentro deste contexto, a alimentação seria algo mais amplo que englobaria a comida e o alimento. A comida seria, pois, a escolha social de um grupo, que através do gosto, escolheu dentre os alimentos os que poderiam ser sua comida e o alimento para aquele grupo social poderá ser a comida de outra sociedade. Então, como forma de exemplificação, o acarajé, o abará e o bolinho de estudante, são considerados comida de baiano, já o tacacá, a maniçoba e o pato no tucupi são comidas de paraense.

O gosto, nesta acepção simbólica e não na fisiológica, define a comida de um grupo, negando a certos alimentos essa condição de comida, chegando, até, ao extremo da proibição da ingestão de determinados alimentos, considerados impuros, como no caso do judaísmo, que segue os preceitos contidos no Torá e na Halachá, onde são estabelecidas regras para que um