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CAPÍTULO 5. DESAFIOS PARA A REGULAÇÃO DO FINANCIAMENTO

5.2. Horizontes para mudanças no sistema normativo brasileiro de financiamento

5.2.1. Posicionamento do poder judiciário: ADI 4650 e a inconstitucionalidade do

5.2.1.2. Legitimidade e eficácia da atuação do Supremo Tribunal Federal

Muito se discute, seja no âmbito da academia jurídica ou da opinião pública, a legitimidade democrática do ativismo judicial no exercício da jurisdição constitucional, em razão da chamada “dificuldade contramajoritária”229 do poder judiciário, que decorre do fato de os juízes, apesar de não serem eleitos, poderem invalidar as decisões adotadas pelo legislador escolhido pelo povo, invocando, muitas vezes, normas constitucionais de caráter aberto, que são objeto de leituras divergentes na sociedade.

Neste tópico, não se pretende discutir de forma profunda esta complexa questão de teoria constitucional230, o que demandaria uma pesquisa própria para este fim, mas tão somente apontar a presença, no objeto de discussão da ADI 4650, de diversas circunstâncias que apontam no sentido da plena legitimidade da intervenção do STF na questão em debate. Com base no que defendem Sarmento e Souza Neto231, pode-se concluir que:

a) O caso versa sobre os pressupostos do funcionamento da própria democracia. Não se pode acusar de antidemocrática uma atuação jurisdicional que se destine a aperfeiçoar o funcionamento do regime democrático;

b) Os representantes eleitos pelo povo, na presente hipótese, estão diretamente envolvidos na questão discutida, pois são os beneficiários das doações eleitorais questionadas. Por isso, o poder judiciário possui condições institucionais, pela sua maior imparcialidade na hipótese, para atuar em favor dos princípios constitucionais e das condições de deliberação democrática envolvidas; e,

229 A expressão “dificuldade contramajoritária” foi cunhada em obra clássica da teoria constitucional norte-

americana: BICKEL, Alexander. The Least Dangerous Branch. New Haven: Yale University Press, 1964.

230

Sobre o tema, indica-se a leitura da obra: Temas de direito político / organização Samira Macêdo Pinheiro de Amorim, Larissa Maciel do Amaral. 1. Ed. Curitiba: CRV, 2014.

231 SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. A inconstitucionalidade do financiamento de

campanha por empresas e o financiamento democrático de campanha. In: A OAB e a reforma política

democrática / organizadores: Aldo Arantes, Cezar Britto, Cláudio Pereira de Souza Neto e Marcello Lavenère. – Brasília : OAB, Conselho Federal, 2014.

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c) Embora os cidadãos destituídos de poder econômico não constituam minoria no país em sentido estritamente numérico, eles o são, no sentido social, pela sua maior vulnerabilidade no processo político. Por essa razão, justifica-se uma intervenção mais ativa da jurisdição constitucional em favor dos seus direitos e interesses, pela tendência de que sejam negligenciados na arena da política majoritária.

Sendo assim, tendo em vista os argumentos políticos acima e todos os fundamentos apresentados nos tópicos anteriores, é de se concluir que a disciplina jurídica atual do financiamento de campanhas políticas viola gravemente os princípios da democracia, da igualdade, republicano e da proporcionalidade, razão pela qual merece análise da Suprema Corte, por abrigar normas contrárias à Constituição.

Há, no entanto, quem sustente que o STF deveria adotar uma postura de autocontenção neste julgamento, tendo em vista tratar-se de matéria tipicamente afeita ao processo político- majoritário. Para aqueles que defendem esse posicionamento, como não há uma regra clara na Constituição Federal sobre o financiamento de campanhas, caberia ao Congresso tomar as decisões cabíveis sobre o respectivo regime jurídico, sem submeter-se às intervenções jurisdicionais da Suprema Corte. Este parece ser o posicionamento de juristas como Lênio Luiz Streck232, José Levi do Amaral Junior233 e Rafael Tomaz de Oliveira234, que, nos textos indicados nas respectivas notas de rodapé, criticaram a ADI 4.650, bem como os votos dos ministros que a acolheram, sob o argumento de que não haveria “parametricidade constitucional” referente ao financiamento de campanhas.

Essa argumentação baseia-se na errônea premissa de que não há parâmetros constitucionais em relação ao financiamento de campanha. Fazendo referências a Ronald

232 STRECK, Lênio Luiz. O realismo ou “quando tudo pode ser inconstitucional”. Disponível em:

http://www.conjur.com.br/2014-jan-02/senso-incomum-realismo-ou-quando-tudo-inconstitucional. Acesso em: 14 set. 2015.

233 AMARAL JUNIOR, José Levi. Inconstitucionalidade sem Parâmetro no Supremo. Disponível em:

http://www.conjur.com.br/2013-dez-29/analise-constitucional-inconstitucionalidade-parametro-supremo. Acesso em: 14 set. 2015.

234 OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. A quem interessa o financiamento público de campanhas?. Disponível em:

http://www.conjur.com.br/2013-dez-14/diario-classe-quem-interessa-financiamento-publico-campanhas. Acesso em: 14 set. 2015.

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Dworkin235, Robert Alexy236, Klaus Günther237, Humberto Ávila238 e Marcelo Neves239, Sarmento e Osorio sustentam que

É verdade que o texto constitucional não contém regras delineando qualquer modelo de financiamento eleitoral no Brasil. Porém – seja-nos escusada a recordação do óbvio –, princípios constitucionais são normas jurídicas que também condicionam positiva e negativamente o legislador. Em que pese toda a riqueza e multiplicidade de posições no debate metodológico contemporâneo, a normatividade dos princípios constitucionais parece fora de questão.240

Portanto, se o atual sistema normativo de financiamento eleitoral cria ambiente de discriminação entre eleitores, transformando a desigualdade econômica em desigualdade política e induz o surgimento de relações suspeitas entre o dinheiro e o poder público, fomentando a corrupção, tal sistema viola os princípios constitucionais da igualdade, da democracia, republicano e da proporcionalidade, conforme fundamentos já expostos neste capítulo. Isto posto, não se trata de uma questão meramente política, havendo um verdadeiro problema jurídico-constitucional que justifica a intervenção do órgão jurisdicional encarregado de zelar pela guarda da Constituição.

Ressalte-se que algumas das mais importantes e celebradas decisões recentes do STF basearam-se em argumentação estritamente principiológica, tais como a que rechaçou a prática do nepotismo na Administração Pública241, a que reconheceu a não recepção da Lei de Imprensa da ditadura militar242, a que afirmou o direito à união homoafetiva243 e a que afastou a criminalização do aborto de feto anencefálico244.

É certo que a invocação judicial dos princípios constitucionais deve se cercar de redobrados cuidados metodológicos, para não redundar em insegurança jurídica e tirania judiciária, e não pode suprimir o espaço legítimo de deliberação que, numa democracia, cabe

235

DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1977.

236 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva: Malheiros, 2008. 237 GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral. Trad. Cláudio Molz. São Paulo:

Landy, 2004;

238 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 2ª ed., Malheiros: São Paulo, 2003.

239 NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais como diferença paradoxal do

sistema jurídico. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

240 SARMENTO, Daniel; OSORIO, Aline. Uma mistura tóxica: política, dinheiro e o financiamento das

eleições, p. 29. Disponível em: http://www.migalhas.com.br/arquivos/2014/1/art20140130-01.pdf. Acesso em: 14 set. 2014.

241 Súmula Vinculante nº 13, DJE 29/8/2008.

242 ADPF 130, Rel. Min. Carlos Britto, DJE 06/11/2009. 243

ADI 4.277 e ADPF 132, Rel. Min. Carlos Britto, DJE 14/10/2011.

244 ADPF 54, Rel. Min. Marco Aurélio, DJE 30/04/2013.

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às instituições representativas, em especial, no caso do objeto da ADI 4650, no âmbito do poder legislativo.

No entanto, no caso objeto da ADI em tela, os cenários normativo e fático justificam amplamente o recurso aos princípios constitucionais para censura judicial ao sistema vigente de financiamento de campanha que fere princípios basilares estabelecidos pelo paradigma do Estado Democrático de Direito, conforme visto neste capítulo.

Como bem afirmam Sarmento e Osorio245, não é realista esperar que o Congresso Nacional, integrado pelos atores que se beneficiam em larga escala do modelo de financiamento vigente, venha a tomar alguma atitude concreta para corrigir as patologias identificadas nesse modelo. Neste contexto, o poder judiciário, que, além de seu dever diante do paradigma do Estado Democrático de Direito de garantir efetividade aos mandamentos constitucionais, apresenta maior independência com relação aos grupos políticos e econômicos que ocupam ou pretendem ocupar o poder, sugere a presença de uma maior capacidade institucional para enfrentar a questão.

Embora os membros do poder judiciário não sejam eleitos pelo povo, com base no paradigma do Estado Democrático de Direito, o Supremo Tribunal Federal não padece da chamada “dificuldade contramajoritária” para equacionar este problema, uma vez que sua intervenção se dará justamente no sentido de proteger os pressupostos de funcionamento do jogo democrático e das instituições republicanas246.

Acerca do papel do poder judiciário diante do paradigma do Estado Democrático de Direito, já tive oportunidade de me posicionar no sentido de que

decisões judiciais que considerem determinadas normas constitucionais apenas como programas de uma constituição dirigente a serem preferencialmente seguidos pelos membros do Poder Executivo ou do Legislativo, não cabendo ao Poder Judiciário interferir para a real consecução dos objetivos nelas traçados, não

245 SARMENTO, Daniel; OSORIO, Aline. Uma mistura tóxica: política, dinheiro e o financiamento das

eleições, p. 30. Disponível em: http://www.migalhas.com.br/arquivos/2014/1/art20140130-01.pdf. Acesso em: 14 set. 2014.

246 Veja-se, a propósito, ELY, John Hart. Democracy and Distrust. A Theory of Judicial Review. Cambridge:

Harvard University Press, 1980; e ROCHA, Rafael Sampaio. “Crise da representatividade democrática brasileira e o papel do poder judiciário diante do paradigma do Estado Democrático de Direito”. In: Temas de direito político / organização Samira Macêdo Pinheiro de Amorim, Larissa Maciel do Amaral. 1. Ed. Curitiba: CRV, 2014, pp. 121-144.

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atendem às perspectivas de uma ordem constitucional que tem no paradigma do Estado democrático de direito o conceito-chave de seu regime jurídico.247

De fato, há ampla discussão sobre os limites da legitimidade democrática da jurisdição constitucional, entretanto não se pode considerar antidemocrática a atuação que se volta justamente à proteção dos pressupostos de funcionamento da própria democracia, no âmbito do Estado Democrático de Direito.

No que tange à eficácia da decisão do Supremo Tribunal Federal para a eliminação da indevida interferência do dinheiro no resultado das eleições, o Ministro Teori Zavascki – único a proferir voto dissidente até a data da publicação desta pesquisa – argumentou que só por messianismo judicial se poderia afirmar que, com a declaração de inconstitucionalidade, caminhar-se-á para a eliminação da indevida interferência do poder econômico nos pleitos eleitorais248.

Dada a devida vênia ao entendimento do Ministro Zavascki, não se pode considerar como messianismo judicial valer-se de princípios constitucionais para proteger a igualdade, a democracia e a moralidade pública. A interpretação da Constituição não é mero exercício intelectual abstrato, mas demanda a consideração da realidade concreta, sobre a qual incide o texto constitucional. No caso brasileiro, as análises empíricas, como as realizadas nos capítulos primeiro e terceiro desta dissertação, revelam os efeitos dramáticos das regras sobre financiamento sobre a nossa política representativa, que está caminhando a passos largos para se converter numa plutocracia, tamanha a influência do poder econômico sobre as eleições, como bem demonstrou o voto do Ministro Fux249.

Como bem afirmado por Sarmento250, uma decisão judicial que vede doações por empresas, por si só, não será “panaceia para os males da nossa política representativa”. De acordo com o jurista, a eficácia social da decisão dependerá, em boa parte, da atuação

247 ROCHA, Rafael Sampaio. “Crise da representatividade democrática brasileira e o papel do poder judiciário

diante do paradigma do Estado Democrático de Direito”. In: Temas de direito político / organização Samira Macêdo Pinheiro de Amorim, Larissa Maciel do Amaral. 1. Ed. Curitiba: CRV, 2014, pp. 121-144, p. 137.

248 Voto-vista do Ministro Teori Zavascki no bojo da ADI 4650. Disponível em:

http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=4650&classe=ADI&origem=AP&rec urso=0&tipoJulgamento=M. Acesso em: 15 set. 2015.

249 Voto-vista do Ministro Relator Luiz Fux no bojo da ADI 4650. Disponível em:

http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=4650&classe=ADI&origem=AP&rec urso=0&tipoJulgamento=M. Acesso em: 15 set. 2015.

250 SARMENTO, Daniel. O STF não é o centro do constitucionalismo. Entrevista concedida ao sítio eletrônico

Os Constitucionalistas, em 25 mai. 2014. Disponível em: http://www.osconstitucionalistas.com.br/o-stf-nao-e-o- centro-do-constitucionalismo. Acesso em: 15 set. 2015.

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fiscalizadora de instituições como o Ministério Público e a Justiça Eleitoral, para que haja efetiva punição aos que burlarem a vedação, valendo-se do chamado “caixa dois”. De qualquer forma, ao impor limites para os gastos das campanhas, a decisão do STF contribuirá para combater as doações pelo “caixa dois”, pois tornará mais visíveis as discrepâncias entre campanhas opulentas e os valores efetivamente contabilizados por candidatos e partidos.