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Proteção deficiente dos princípios constitucionais provida pela atual legislação:

CAPÍTULO 5. DESAFIOS PARA A REGULAÇÃO DO FINANCIAMENTO

5.2. Horizontes para mudanças no sistema normativo brasileiro de financiamento

5.2.1. Posicionamento do poder judiciário: ADI 4650 e a inconstitucionalidade do

5.2.1.1. Fundamentos da ADI 4650

5.2.1.1.4. Proteção deficiente dos princípios constitucionais provida pela atual legislação:

Em razão do paradigma do Estado Democrático de Direito, que atribui ao Estado não apenas o dever de se abster, mas também o de agir concretamente na proteção de bens

217 SAMUELS, David. Financiamento de campanhas no Brasil e propostas de reforma. p. 139-147.

218 BRASIL. Lei n.º 9.096 (1995). O artigo 31, VII estabelece que “é vedado ao partido receber, direta ou

indiretamente, sob qualquer forma ou pretexto, contribuição ou auxílio pecuniário ou estimável em dinheiro, inclusive através de publicidade de qualquer espécie, procedente de: (...) III - autarquias, empresas públicas ou concessionárias de serviços públicos, sociedades de economia mista e fundações instituídas em virtude de lei e para cujos recursos concorram órgãos ou entidades governamentais.”

219 SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. A inconstitucionalidade do financiamento de

campanha por empresas e o financiamento democrático de campanha. In: A OAB e a reforma política

democrática / organizadores: Aldo Arantes, Cezar Britto, Cláudio Pereira de Souza Neto e Marcello Lavenère. – Brasília : OAB, Conselho Federal, 2014, p. 28.

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jurídicos de índole constitucional, a doutrina vem assentando entendimento de que a violação ao princípio da proporcionalidade não ocorre apenas quando há excesso na ação estatal, mas também quando ela se apresenta manifestamente deficiente220. O STF já empregou esta categoria em algumas decisões. De acordo com o Ministro Gilmar Mendes,

Quanto à proibição de proteção insuficiente, a doutrina vem apontando para uma espécie de garantismo positivo, ao contrário do garantismo negativo (que se consubstancia na proteção contra excessos do Estado) já consagrado pelo princípio da proporcionalidade. A proibição da proteção insuficiente adquire importância na aplicação de direitos fundamentais de proteção, que se consubstancia naqueles casos em que o Estado não pode abrir mão da proteção do direito penal para garantir a proteção do direito fundamental.221

A violação à proporcionalidade, na sua faceta de proibição à proteção deficiente, é manifesta no caso do financiamento político, tendo em vista que a constatação de que as normas legais impugnadas pela ADI 4650 não protegem de maneira suficiente a igualdade, a democracia e o princípio republicano, princípios estes de suma importância na ordem constitucional brasileira. E mais: o que se perde por força desta deficiência em proteção estatal não é minimamente compensado pelas vantagens obtidas em razão da tutela insuficiente222.

O sistema normativo brasileiro de financiamento político permite que as campanhas eleitorais, em geral, sejam muito irrigadas por recursos econômicos, o que vem crescendo a cada eleição e que se torna um desafio para a regulamentação, conforme já demonstrado no início deste capítulo. O maior acesso a recursos, especialmente quando advindos de fontes privadas, por parte de alguns candidatos e partidos não configura, por si só, um bem jurídico relevante. Pelo contrário, o encarecimento das campanhas que ele proporciona pode ser até prejudicial à dinâmica democrática do processo eleitoral, por tomar

220

Cf. BOROWSKI, Martin. La Estructura de los Derechos Fundamentales. Tradução de Carlos Bemal Pulido. Bogotá: Universidad Externado de Colômbia, 2003. p. 162-166; SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição e

Proporcionalidade: O Direito Penal e os Direitos Fundamentais entre a Proibição de Excesso e Deficiência. In:

Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 47, 2004. p. 60-122; STRECK, Lênio Luiz. Bem Jurídico e

Constituição: Da Proibição do Excesso (Übermassverbot) à Proibição de Proteção Deficiente (Untermassverbot). In: Boletim da Faculdade de Direito, v. 80, 2004. p. 303/345

221 RE 418.376, DJ 23/03/2007.

222 SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. A inconstitucionalidade do financiamento de

campanha por empresas e o financiamento democrático de campanha. In: A OAB e a reforma política

democrática / organizadores: Aldo Arantes, Cezar Britto, Cláudio Pereira de Souza Neto e Marcello Lavenère. – Brasília : OAB, Conselho Federal, 2014, p. 29.

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ditas campanhas excessivamente publicitárias e pirotécnicas, em detrimento do debate político de ideias e projetos223.

Para os defensores do financiamento privado por empresas, entretanto, quando o legislador não restringe as doações de campanha, ele está protegendo o direito fundamental à liberdade de expressão. Como visto no tópico em que se analisou a relação ente corrupção e financiamento político pela perspectiva dos cidadãos, este argumento é digno de crítica, ao equiparar o uso de recursos econômicos à manifestação de determinada ideia224. Neste sentido, convém, uma vez mais, frisar a reflexão de Souza Neto e Sarmento, segundo a qual

Não fosse assim, como compreender o comportamento recorrente dos principais doadores de campanha no Brasil, que doam simultaneamente para os candidatos rivais, com maior chance, nos pleitos para a Chefia do Poder Executivo? Como uma contraditória manifestação política em favor da eleição de todos os candidatos aquinhoados?225

Na ADI 4650, não se questiona que as pessoas naturais e jurídicas desfrutam de plena liberdade de expressão no contexto das disputas eleitorais. Para a OAB, é evidente que todas elas podem se manifestar publicamente a favor ou contra candidaturas, políticos, partidos, projetos e bandeiras. Sem a garantia desta possibilidade, sequer existiria genuína democracia. O que não se concebe é a doação como exercício deste nobre direito. Suscitar a liberdade de expressão não é adequado para proteger o suposto direito de as pessoas jurídicas realizarem tais doações, uma vez que não gozam dos direitos e deveres da cidadania226. Não há a necessidade de se ponderar igualdade política e liberdade de expressão, pois esta simplesmente não está em questão. Tal como, por exemplo, o direito de ajuizar ações

223 Neste sentido, cf. SPECK, Bruno Wilhelm. O Financiamento de Campanhas Eleitorais. p. 154. GOMES,

José Jairo. Direito eleitoral. 5 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. p. 268.

224

Foi digno de nota na petição inicial da ADI 4650 que a Suprema Corte norte-americana, na sua atual composição fortemente conservadora, tem entendimento diverso, que a levou a invalidar no ano passado, no polêmico julgamento do caso Citizens United v. Federal Election Comission, uma lei que impunha limite de doações à campanha eleitoral, em apertada votação tomada por cinco votos contra quatro. Para uma forte crítica a esta decisão, recomenda-se DWORKIN, Ronald. The Devastating Decision. In: The New York Times Review of Books, 25.02.2010. Disponível em: http://www.nybooks.eom/articles/archives/2010/feb/25/the- devastatingdecision/. Acesso em: 14 set. 2015.

225 SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. A inconstitucionalidade do financiamento de

campanha por empresas e o financiamento democrático de campanha. In: A OAB e a reforma política

democrática / organizadores: Aldo Arantes, Cezar Britto, Cláudio Pereira de Souza Neto e Marcello Lavenère. – Brasília : OAB, Conselho Federal, 2014, p. 29-30.

226 Como salientou Ronald Dworkin ao tratar do mesmo tema, “empresas são ficções legais. Elas não têm

opiniões próprias para contribuir e direitos para participar com a mesma voz e voto na política”. DWORKIN, Ronald. The Devastating Decision. p. 3.

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populares, a realização dessas doações concerne aos direitos de cidadania, não ao exercício da liberdade de expressão227.

Outro argumento que vem sendo levantado por aqueles contrários à restrição de doações de campanha por parte das pessoas jurídicas é a liberdade econômica destas entidades de utilizarem o próprio patrimônio da forma como bem decidirem. No nosso sistema constitucional, esta liberdade, conquanto protegida, não desfruta da mesma tutela reforçada que salvaguarda as liberdades políticas e existenciais. No paradigma do Estado Democrático de Direito, as liberdades econômicas podem e devem ser restringidas, de forma proporcional, em favor de valores e objetivos como a promoção da democracia e da justiça social228.

Argumenta a OAB que a restrição à liberdade econômica das pessoas jurídicas que resultaria da vedação às suas doações a campanha eleitoral ou a partido político seria muito reduzida. Ela não envolveria qualquer limitação ao uso dos recursos destas empresas para o desempenho das suas atividades negociais ou institucionais, mas tão somente para o financiamento, direto ou indireto, da política. Já o ganho obtido com esta vedação, da perspectiva dos princípios da igualdade, democrático e republicano, afigurar-se-ia muito elevado, em especial para reforçar a representatividade democrática neste contexto de crise na forma em que vem sendo exercida.

No que tange às pessoas físicas que preenchem os requisitos de cidadania, estas, sim, têm o direito de participar do seu processo eleitoral, buscando influir na composição dos órgãos representativos e na formação da vontade do povo. Este direito, no entanto, precisa ser concebido em termos estritamente igualitários, como um corolário do princípio democrático, que postula a igualdade de todos os cidadãos no espaço da política, conforme já tratado acima. Daí porque, segundo o que defende a OAB na ADI 4650, a limitação às doações impostas às pessoas naturais que não vede ditas contribuições, mas imponha teto igualitário ao seu valor, não se afigura restrição excessiva ao direito à participação política, uma vez que este, como acima destacado, deve ser concebido em termos também igualitários, pela sua própria natureza. Ao não impor limite igualitário, mas fundado na renda do doador, o legislador deixou de proteger suficientemente os princípios da igualdade, da democracia e republicano, sem obter, em contrapartida, qualquer vantagem equiparável na tutela de interesses legítimos. 227 Idem, p. 30. 228 Idem, p. 30. 127