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2.2 Ilícito tributário e criminalização de condutas de natureza tributária: um estudo

2.2.4 A legitimidade da intervenção penal para a tutela do sistema tributário: uma

A concepção de Direito Penal pode assumir diversas formas que se manifestarão como tal a partir do contexto político em que está inserido. Numa política de viés democrático, o Direito Penal sistematiza e organiza um controle social limitado e legitimado pelo consenso comum dos integrantes de um dado corpo social. Em termos práticos, há que se falar na subsunção do ius puniendi ao controle e ditames da lei que, tendo suas raízes na harmonia da vontade social, servirá para proteger um interesse em comum e, consequentemente, bens jurídicos fundamentais para o convívio ideal (BITENCOURT, 2013).

O conceito de bem jurídico-penal, perpassa diversos fatores principiológicos que norteiam os fins fundamentais nos quais a ciência penal se debruça. Frise-se, por esse motivo, que se trata de tarefa complexa e que não se resume à verificação simplória de realização concreta de alguns dos princípios precípuos do Direito Penal, quais sejam: a fragmentariedade, a subsidiariedade e a lesividade.

Entretanto, é necessário reconhecer que o conceito de bem jurídico penal é indispensável para que se delimite a atividade e a função punitiva do Estado, que promove a criminalização de certas condutas. Ou seja, deve-se prezar por uma atividade legislativa que possa ser fomentada de maneira sólida e justa na disciplina deste campo normativo.

Apesar dessa importante premissa, é inescusável que o conhecimento do conceito, puro e simples, de bem jurídico penal, não é, por si só, critério absoluto. Não se tem uma definição precisa, para separar, desde logo, a conduta punível daquela que deve ficar impune, através de simples subsunção e dedução (ROXIN, 1986).

O que se tem, na verdade, é o fato de que o bem jurídico penal é assim fomentado e se torna propósito de proteção, seja material ou formalmente, em virtude da própria significação que carrega e a sistemática teleológica que lhe permeia. Esta última, fundamenta-se no contexto histórico em que foi concebida.

Basta que se reverbere a respeito do conjunto de direitos fundamentais a que a norma penal se presta a fazer valer. Isso, primeiramente, coaduna com o fato de o Direto Penal se destinar a entabular a proteção de interesses individuais básicos, como a vida a liberdade e a propriedade. Trata-se, pois, de premissa doutrinária atrelada a essência dos denominados direitos fundamentais de primeira dimensão, que possuem como substância basilar o resguardo da esfera precipuamente individual de direitos fundamentais, atuando em prol do próprio indivíduo ou de seu patrimônio, majoritariamente.

Noutro giro, fala-se do rol de garantias concebidas com o que se designa por direitos fundamentais de segunda dimensão, resultantes do período pós-guerra, com o advento da era do bem estar social. Neste período o que se observou foi a necessidade de se abordar todo o corpo social no fim último de amparo pelo Estado, de forma a se verificar o usufruto equitativo dos direitos individuais aludidos na esfera da primeira dimensão. A partir desse cenário proporcionado pela garantia de direitos fundamentais de segunda dimensão é que surge a ideia de proteção de bens jurídicos supraindividuais.

Por isso, é plenamente cabível a colocação da ordem tributária enquanto bem jurídico de caráter supraindividual sendo, portanto, passível sua tutela a nível penal, vez que sua existência constitui uma instrumentalidade para que se promova a atividade arrecadatória do Estado e, consequentemente, se promova o bem estar social comum. Não se trata de utilizar a proteção jurídico penal para tutelar puramente a atuação estatal quanto aos mecanismos de arrecadação, pois se assim o fosse, o Direito Penal seria um mero condutor e realizador de interesses políticos do Estado.

Além disso, a Constituição da República 1988 sedimenta o respaldo de questões supraindividuais, seja como regramentos e mandamentos a serem atendidos, seja como direitos coletivos a serem exercidos, ou mesmo como objetivos

a serem alcançados. Ademais, a tutela da Ordem Tributária encontra uma referibilidade constitucional, haja vista sua disciplina detalhada nos arts. 145 a 169 do texto constitucional, com alta carga valorativa e principiológica. É também um aparato significativo para a realização dos objetivos fundamentais da República situados no art. 3º CF/88.

Contudo, necessário que se pontue que, mesmo que haja a análise teleológica acerca do bem jurídico penal para fins de análise da plausibilidade da tutela penal do sistema tributário, a concepção do bem jurídico que se adote, pode identificar um objeto jurídico distinto sobre o qual se voltará a proteção penal, o que promoverá uma repercussão e um alcance também igualmente diferente. Martinez Bujár-Pérez (1998) segue a mesma linha ao afirmar que existem duas vertentes básicas que divergem sobre o objeto jurídico a que a norma penal irá atingir no âmbito dos delitos fiscais: a primeira, são as posturas patrimonialistas e as segundas as posturas funcionais.

Na referência às posturas patrimonialistas, há o entendimento de que o objeto jurídico nos delitos de natureza tributária é o patrimônio da Fazenda Pública, mais precisamente a figura do erário público. Tem-se aqui, a ideia de que o bem jurídico patrimonial se refere às retenções a título dinâmico e não estático, atingindo diretamente a atividade de arrecadação tributária desenvolvida constantemente pelo Estado.

As posturas funcionais, por sua vez, vão de encontro às posturas patrimonialistas, pois coadunam com a teoria de que o objeto jurídico de cunho fiscal protegido com a norma que prescreve a previsão penal, está diretamente vinculada às funções que são atribuídas ao tributo, isto é, sua própria razão de existir no seio de cada sociedade.

Nesta vertente, em termos de crítica, há que se falar na abstração e generalidade que lhe é característica, haja vista o fato de que a utilização do tributo para o custeio das atividades que o Estado fornece, se manifesta de forma indireta, o que minimiza o princípio da ofensividade, um dos basilares para que se reconheça uma conduta como delito. Em outras palavras, seria dificultada a atribuição de responsabilidade penal ao agente sonegador de tributos, pois o nexo causal entre sua conduta e a afetação do financiamento de atividades estatais seria de difícil demonstração.

Pela exposição das posições acerca do tema presentemente tratado, o referido jurista optou por julgar como mais adequado o posicionamento que considere o erário público como o bem jurídico atingido pelos crimes contra a ordem tributária, pois seria questão mais tangível e palpável e, portanto, de análise mais consumível no curso da instrução criminal para fins de responsabilização penal. Neste conceito, assim, o que seria denominado categoricamente como bem jurídico tutelado pela Lei nº 8.137/90 seria a ordem tributária, ou seja, o patrimônio da Fazenda Pública.

Apesar de ser, de fato, a disposição mais objetiva entre as vertentes, a cominação da sanção prescrita no preceito normativo do delito fiscal deve ter como embasamento teológico a prejudicialidade patente e inescusável do patrimônio pertencente ao erário público, devendo sempre atentar-se para o fato de que o diploma normativo que estatui delitos fiscais jamais deverá servir como reprimenda do mero inadimplemento de tributo.

3 ICMS, TRIBUTAÇÃO E NÃO RECOLHIMENTO: CONSEQUÊNCIAS MATERIAIS E PROCESSUAIS

Quando se tem uma situação fática a ser submetida ao regime jurídico tributário, constitui-se a premissa de que haverá uma transferência de parcela da propriedade privada de determinada pessoa, seja ela física ou jurídica, para a titularidade do Fisco. Apesar de ser o mais notório instrumento que o Estado se utiliza para propagar e gerar recursos que serão usufruídos por seus administrados, o produto puro do tributo não compõe a totalidade da arrecadação, haja vista a existência das sanções patrimoniais, elucidadas anteriormente.

Entretanto, mais necessário que compreender o comportamento pecuniário do tributo e sua inserção nos cofres públicos, seja pela sua consistência na forma de obrigação principal ou mesmo assessória, relevante que se faça uma análise inversamente proporcional, e se explicitem também os aspectos de sua não arrecadação.

Esse ponto de abordagem mostra-se mais indubitavelmente necessário quando a questão gira em torno de um tributo que é responsável por significativa parcela do produto arrecadatório global do erário público do país. O ICMS, por seu amplo alcance e sistemática de arrecadação, ao mesmo tempo em que representa grande parte do volume econômico e financeiro dos estados, carrega consigo uma certa complexidade, fazendo com que seu escopo percorra limites além daqueles ditados pelo regramento normativo tributário, como se notará neste e, mais especificamente, no capítulo seguinte.