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3.1 O ICMS enquanto tributo não recolhido

3.1.1 Uma breve explanação conceitual do ICMS e aspectos correlatos

O ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) tem previsão no art. 1555 do texto constitucional. Anteriormente à Constituição Federal de 1988, o referido tributo era denominado apenas pela sigla ICM, de forma que, somente com o advento da nova carta constitucional de 88, é que acrescentou-se o “S”.

Sua disciplina constitucional, expressa que um de seus principais traços é ser um tributo de competência dos Estados, bem como do Distrito Federal, trazendo o maior leque de regras que um tributo poderia ter em sede de Constituição, e isso se deve a diversidade das bases econômicas que lhe constituem, a saber: operações de circulação de mercadorias, operações mistas de circulação de mercadorias e prestações de serviços não compreendidos na competência tributária dos Municípios, prestações de serviços de comunicação, importação de bens e mercadorias e importação de serviços.

Também possui um tratamento consubstanciado em uma vasta legislação, sendo um de seus principais regramentos específicos a denominada Lei Kandir (Lei

5 “Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: (...) II - operações

relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior” (BRASIL, 1988a, s.p.).

Complementar 87/96), de aplicação regida pelo CONFAZ, além das sucessivas leis que a alteraram como a LC 114/02.

A par destas elucidações iniciais, para fins de perquirição da dogmática pertencente ao estudo do ICMS, e para que se entenda seu comportamento prático, imperioso conceituar os termos utilizados no artigo 155 da Constituição Federal, de forma que se compreenda seu alcance, bem como sua própria regra matriz de incidência.

Inicialmente, quanto à incidência do ICMS (imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicações, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior – art. 155, II, CF/88), forçoso destacar que o conceito de mercadoria se alinha, por parte da doutrina, como bem móvel, suscetível de realização por mercancia, ou seja, pela sua troca no mercado. Tanto é que, por esse motivo, Leandro Paulsen (2020, s. p.) defini-as como “bens de comércio”. Assim, quando o constituinte exige a existência de operações de circulação, isso quer dizer que deve haver efetivamente um negócio jurídico que implique em transferência de titularidade, não se incorporando a esta conceituação a movimentação pura e simplesmente física6.

Interessante ponto sobre o tema, consiste na indagação a respeito da forma que deveria tomar a mercadoria para que seja considerada como tal, e, portanto, sujeita a tributação por ICMS, isto é, se precisaria ser tátil ou poderia ser eletrônica/virtual ou mesmo incorpórea. Esta dúvida foi suscitada perante o STF, tendo em vista os novos softwares e seus licenciamentos, tecnologias inovadoras advindas no final dos anos 90, sendo introduzidas em larga escala no mercado nacional.

Nesta senda, os advogados entendiam que, no caso, somente o ISS incidiria sobre os produtos, quer sejam os softwares em larga escala, chamados de “softwares de prateleira”, quer sejam as licenças expedidas individualmente para o usufruto dessas tecnologias. O STF, em sede de Recurso Extraordinário (RE 176.626), entendeu por meio de seu Relator, o Ministro Sepúlveda Pertence, que aos

6 Neste tocante, o STF já reconheceu que o simples deslocamento de coisas de um estabelecimento

para outro, sem transferência de propriedade, não gera direito a cobrança do ICM. Em virtude desse posicionamento, houve sua consolidação em redação sumular nos termos do Enunciado 573 do STF: “Não constitui fato gerador do Imposto de Circulação de Mercadorias a saída física de máquinas, utensílios e implementos a título de comodato” (BRASIL, 1977, s.p.).

softwares de prateleira, ou “off the shell”, pela necessidade de haver um meio físico (CD/DVD), para que pudesse haver sua inicialização e uso, caberia incidir o ISS se fossem softwares feitos “sob encomenda”, pois prevaleceria o serviço.

No entanto, em sede de ADI (ADIMC 1.945/MT), o STF, estendeu a incidência do ICMS para as licenças deles, tendo em vista o fato de que os mesmos podem ser também incorpóreos, sendo transferidos ao consumidor por meio “digital” como os “downloads”, alterando, assim, o posicionamento firmado em final da década de 1990. Noutro giro, o mesmo tribunal entendeu que os serviços provedores de internet não são abrangidos pelo ICMS, pois constituem meros valores adicionados às comunicações, estando o imposto já dentro dos serviços próprios de comunicação, tais como pagamento de tarifa mensal, planos mensais e etc. Trata-se de entendimento sumulado pelo STJ7.

Em relação ao significado de circulação, autores como Hugo de Brito Machado Segundo (2015), adotam dois sentidos a serem considerados para fins de incidência do ICMS, quais sejam: a circulação física e a circulação econômica (para outros autores, jurídica). Para o tributarista supra, a circulação jurídica se dá com a mera retirada do bem de quem o fornece, sendo, assim, a própria saída da mercadoria do seu local de origem para outro diverso. Em outra análise, haverá circulação econômica/jurídica quando houver a efetiva troca de titularidade por parte dos agentes tributários. Isso ocorrerá com a tradição, tendo em vista que, em muitos casos, é a partir desta que o negócio jurídico (art. 104 do CC/02) se aperfeiçoa. Com fulcro nestas razões, o entendimento prevalecente, portanto, é o de que a circulação deverá ser jurídica8.

Quanto ao sujeito passivo do imposto em questão, a Lei Kandir (LC 87/96) prescreve em seu art. 4º que será:

[...] qualquer pessoa, física ou jurídica, que realize, com habitualidade ou em volume que caracterize intuito comercial, operações de circulação de mercadoria ou prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior (BRASIL, 1996, s.p.).

7 Súmula n. 334 do STJ: “O ICMS não incide no serviço dos provedores de acesso à Internet.”

(BRASIL, 2006, s.p.)

8

Súmula n. 166 do STJ: “Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte” (BRASIL, 1996, s.p.).

Neste caso, o agente deve realizar a circulação da mercadoria de modo habitual, pois se fazendo de forma reiterada, mas com pequenas quantidades, não recairá na hipótese de incidência. Isso porque, assim como em diversos tributos, existe um limite de isenção.

A segunda base econômica do tributo em apreço consiste na prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal, que incide sobre o transporte de passageiros, de valores, de bens ou de mercadorias. Nesta modalidade de tributação por ICMS, a questão de relevo centra-se no fato de que hipótese de incidência não recairá sobre o ato-fato transporte e sim em relação ao serviço de transporte, sendo necessária a realização de uma contratação onerosa.

Outros aspectos que lhe são inerentes é o fato de o transporte aludido não abarcar aquele realizado apenas na circunscrição ou limites territoriais do Município, pois se trata de fenômeno sujeito a ISS, regido pelo item 16 da lista anexa à Lei Complementar n. 116/03: “Serviço de transporte de natureza municipal” (BRASIL, 2003, s.p.) Também não alberga o serviço de transporte internacional, seja de pessoas ou de cargas, bem como o transporte de energia pelas linhas de transmissão. O imposto em questão também incide sobre a prestação de serviços de comunicação. Neste caso, o ponto crucial para se compreender a base econômica que perfaz sua hipótese de incidência é a sua materialidade (fato gerador). Não basta que se considere o simples método ou instrumento viabilizador da comunicação (disponibilização de informações). É necessária a prestação de serviços de comunicação, em que os sujeitos desta relação negocial (prestador e tomador – devidamente determinados) tenham uma efetiva participação. Em termos de incidência prática, o STJ já decidiu que o referido imposto, nessa modalidade, recai sobre a tarifa de assinatura básica mensal de telefonia, bem como na transmissão de sinais de TV a cabo e via satélite. Entretanto, não se verifica sua incidência sobre o serviço dos provedores de acesso à internet9 (PAULSEN, 2020).

O ICMS também incide sobre a importação referente a entrada de bem ou mercadoria importados do exterior por pessoa física ou jurídica, ainda que não seja contribuinte habitual do imposto, qualquer que seja a sua finalidade, assim como sobre o serviço prestado no exterior, cabendo o imposto ao Estado onde estiver situado o domicílio ou o estabelecimento do destinatário da mercadoria, bem ou serviço,

9 Súmula n. 350 do STJ: “O ICMS não incide sobre o serviço de habilitação de telefone celular.

conforme a redação do art. 155, § 2º, IX, a, da Constituição da República. Em termos práticos, é possível a incidência da norma tributária a partir do momento em que se verifique a ocorrência do desembaraço aduaneiro.10 Sobre isto, ressalta Leandro Paulsen (2020, s. p.):

De qualquer modo, a “entrada de bem ou mercadoria importados do exterior” deve ser compreendida no contexto de uma efetiva operação de importação. Esta exige não apenas o ingresso físico, mas a entrada para a incorporação do produto à economia nacional, seja para uso, consumo, industrialização ou revenda, por exemplo. Mas o ingresso físico sabidamente temporário, como no caso de mercadorias trazidas para exposição em feiras durante prazo certo para posterior retorno à origem, não implica fato gerador sequer do Imposto de Importação, também não o sendo do ICMS-Importação.[...] Outra entrada física que não implica importação é a que ocorre para simples trânsito de bem ou mercadoria pelo território nacional, com destino a outro país [...]

Ainda por último, de significativa importância na composição da base econômica global do ICMS, é o incidente sobre combustíveis derivados de petróleo, que segue regime especial e atribui competência/sujeição ativa para cobrar o ICMS ao estado onde ocorrer o consumo, nos ditames do art. 155, §4º, I CF/88. As regras atinentes à apuração e à destinação da receita proveniente do imposto nessa modalidade serão disciplinadas mediante deliberação dos Estados e Distrito Federal (Art. 155 § 2º, XII, g”, § 5º, da CF, este último, incluído pela EC 33/01; Convênio Confaz 110/07).

Passada a explanação da incidência deste tributo, há características gerais que lhe são inerentes que merecem ser citadas. O ICMS possui como um de seus atributos primordiais a fiscalidade, ou seja, sua instituição, bem como fiscalização, possui caráter arrecadatório para fins de posterior utilização nas atividades essenciais dos estados. Como decorrência indireta disso, a maioria dos juristas consideram o ICMS como o imposto de maior abrangência nacional, tendo em vista ser o maior gerador de receita, se comparado aos outros impostos, até mesmo em relação ao IPI e ao IR, impostos que também apresentam caráter eminentemente fiscal.

Ainda, tal imposto possui como marca a seletividade, que é regra de aplicação facultada aos Estados. Apesar da redação constitucional possuir em sua composição o termo “poderá”, para se referir a aplicação da regra da seletividade quanto ao ICMS, há posicionamentos que não pugnam pela aplicação do referido

10 Súmula Vinculante 48: “Na entrada de mercadoria importada do exterior, é legítima a cobrança do

preceito como uma mera faculdade da Administração Tributária, haja vista a atividade da tributação se tratar de um poder-dever do Estado (COSTA, 2018).

A seletividade é um mecanismo que possui o condão de discriminar tratamentos distintos ao objeto da atividade de tributação, tendo como parâmetro a sua essencialidade. No caso do ICMS, será verificada a maior ou menor essencialidade da mercadoria ou do serviço a ser prestado. Em outras palavras, como enfatiza Regina Helena Costa (2018, s. p.):

[...] a exigência do ICMS há de ser modulada consoante o grau de essencialidade da mercadoria ou serviço: quanto mais essenciais forem, menor deve ser a tributação; quanto menos essenciais, o imposto deve atingir as respectivas operações e prestações com maior intensidade. A essencialidade, assim entendida como a elevada importância da mercadoria ou serviço para o consumo, é o critério em função do qual a tributação pelo ICMS será modulada.

A regra em foco faz com que o ICMS opere, também, sobre o aspecto da extrafiscalidade, na medida em que beneficia os consumidores finais, que são os que efetivamente absorvem o impacto econômico do imposto. Por essa razão, a regra da seletividade constitui legítima manifestação do princípio da capacidade contributiva, pois prima pela conservação do equilíbrio acerca do ônus financeiro, muitas vezes arcado pelo contribuinte “de fato”. Assim, a seletividade pode ser obtida quer pela diferenciação ou progressividade de alíquotas, quer por variações de base de cálculo, ou, ainda, pela instituição de incentivos fiscais. A técnica mais utilizada, em razão de sua eficácia, tem sido a diferenciação de alíquotas (COSTA, 2018).

Por fim, embora já tenham sido citadas as características precípuas do tributo em análise, deixa-se para análise última dois aspectos que se sobressaltam e que, por muitas vezes, constituem o espírito do mecanismo de tributação aplicado ao ICMS. São também os componentes mais relevantes a serem abordados no que pertine ao ICMS na problemática que será suscitada mais à frente, que é a “não cumulatividade” e sua característica de ser um tributo indireto.

Em termos simplórios, o primeiro citado, estabelece que deve haver, em regra, um sistema de créditos e débitos até o objeto material chegar ao seu consumidor final. No segundo aspecto, tem-se a regra de que o ônus da carga tributária é suportado pelo consumidor final, situando o fenômeno da repercussão econômica do tributo ou translação tributária, mediante o qual o valor do imposto é embutido no preço da mercadoria e do serviço e, assim, o contribuinte de jure transfere

o respectivo encargo ao contribuinte de facto – o adquirente da mercadoria ou do serviço (COSTA, 2018).

A não cumulatividade se apresenta como uma sistemática que se baseia no fato de que, sendo o imposto plurifásico, não haverá uma oneração em cascata do contribuinte, e não se cobrará o tributo em cada cadeia de formação do fato gerador do tributo. Isso permite que o contribuinte realize uma compra e se credite nela, haja vista seu direito em relação à um crédito. Mas, na medida em que vende as mercadorias, poderá debitar o referido imposto neste ato.

Ao final de cada exercício mensal, é feito um balancete para se confrontar os débitos e os créditos, sendo que, se o contribuinte vendeu menos do que esperava, poderá haver uma postergação para o próximo exercício, ou em situações excepcionais (não mais que 5 anos da data da entrada da mercadoria), poderá requerer a compensação, nos casos em que tenha créditos para com a Fazenda, atendidos os requisitos necessários. Em contrapartida, se houver mais débitos, deverá recolher o negativo aos cofres estaduais.

Esse mecanismo de créditos utilizado no Brasil, trata-se de uma mescla entre os institutos da teoria do crédito físico e da teoria do crédito financeiro. Conforme pondera Hugo de Brito Machado Segundo (2015), o creditamento físico ocorre quando o contribuinte adquire a mercadoria para revenda e somente essa lhe dá direito ao crédito. Já no creditamento financeiro, bens que compõem a cadeia de revenda, bem como aqueles que são de consumo direto, deverão entrar como crédito para o contribuinte, tais como ativos fixos para a empresa, caixas, suprimentos, material pessoal, entre outros. Por sua vez, a teoria intermediária afirma que os bens que são comprados para revenda são creditados tanto quanto os ativos fixos, sendo impossível se creditar por insumos de pessoal, tendo em vista serem alheios ao processo plurifásico do ICMS, por não estarem ligados diretamente à circulação.

O regramento constitucional que insculpe o atributo da não cumulatividade e creditamento que toca o ICMS está inserto no art. 155, § 2º, I11 bem como no seu inciso VII. Entretanto, com a introdução da EC 87/2015, que alterou o art. 99 do

11 §2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte: I - será não-cumulativo, compensando-se o

que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal. [...] VII - nas operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final, contribuinte ou não do imposto, localizado em outro Estado, adotar-se-á a alíquota interestadual e caberá ao Estado de localização do destinatário o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna do Estado destinatário e a alíquota interestadual (BRASIL, 1988, s.p.).

ADCT12, a porcentagem quanto ao diferencial de alíquota do tributo presentemente tratado para o Estado destinatário da mercadoria, aumentou drasticamente. A razão disso é simples: os estados produtores, que eram os mais abastados, ficavam com a totalidade do referido imposto, implicando em uma guerra fiscal e política, pois com a evolução digital, os consumidores poderiam comprar por meio da internet, havendo tão somente o deslocamento de sua mercadoria para a sua residência (entrega), o que gerava, por certa parte, grande perda para os estados destinatários.

Foi com essa ideia que se chegou a EC 87/2015, tendo em vista que, agora deixou-se de diferenciar consumidor final contribuinte ou não contribuinte, pois o creditamento seguirá estritamente o rito do 155, § 2º, I, CF/88, e será baseado na subtração entre a alíquota interna do estado de destino e a alíquota interestadual do estado de origem, gerando maior igualdade fiscal.