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O não recolhimento de ICMS próprio regularmente declarado ao Fisco: uma análise sob a ótica do conceito de ilícito tributário e reflexos penais a partir do RHC 163.334 do STF

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE DIREITO

GRADUAÇÃO

JULIANA SILVA DE CARVALHO

O NÃO RECOLHIMENTO DE ICMS PRÓPRIO REGULARMENTE DECLARADO AO FISCO: UMA ANÁLISE SOB A ÓTICA DO CONCEITO DE ILÍCITO TRIBUTÁRIO E

REFLEXOS PENAIS A PARTIR DO RHC 163.334 DO STF

FORTALEZA 2020

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JULIANA SILVA DE CARVALHO

O NÃO RECOLHIMENTO DE ICMS PRÓPRIO REGULARMENTE DECLARADO AO FISCO: UMA ANÁLISE SOB A ÓTICA DO CONCEITO DE ILÍCITO TRIBUTÁRIO E

REFLEXOS PENAIS A PARTIR DO RHC 163.334 DO STF

Monografia submetida à Coordenação do Curso de Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito.

Professor Orientador: Carlos César Sousa Cintra

FORTALEZA 2020

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Gerada automaticamente pelo módulo Catalog, mediante os dados fornecidos pelo(a) autor(a)

C324n Carvalho, Juliana Silva de.

O não recolhimento de ICMS próprio regularmente declarado ao Fisco: Uma análise sob a ótica do conceito de ilícito tributário e reflexos penais a partir do RHC 163.334 do STF / Juliana Silva de Carvalho. – 2020.

95 f. : il.

Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Direito, Curso de Direito, Fortaleza, 2020.

Orientação: Prof. Dr. Carlos César Sousa Cintra.

1. ICMS. 2. STF. 3. Ilícito tributário. 4. Ilícito penal tributário. 5. RHC 163.334 do STF. I. Título.

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JULIANA SILVA DE CARVALHO

O NÃO RECOLHIMENTO DE ICMS PRÓPRIO REGULARMENTE DECLARADO AO FISCO: UMA ANÁLISE SOB A ÓTICA DO CONCEITO DE ILÍCITO TRIBUTÁRIO E

REFLEXOS PENAIS A PARTIR DO RHC 163.334 DO STF

Monografia submetida à Coordenação do Curso de Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito.

Professor Orientador: Carlos César Sousa Cintra.

Aprovada em 14/09/2020

BANCA EXAMINADORA

________________________________________ Prof. Dr. Carlos César Sousa Cintra

(Orientador)

Universidade Federal do Ceará (UFC)

_________________________________________ Prof.ª Dra. Raquel Cavalcanti Ramos Machado

(Examinadora)

Universidade Federal do Ceará (UFC)

______________________________________ Eric de Moraes e Dantas (Doutorando)

(Examinador)

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Dedico esta pesquisa à Deus, dono da minha vida e arquiteto dos meus sonhos e à minha mãe, meu maior porto seguro e minha maior fã.

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente, referencio meus agradecimentos ao meu Senhor Deus e sua manifestação na Santíssima Trindade, por me permitir realizar todos os anseios do meu coração, em especial este, que seria cursar Direito na Universidade Federal do Ceará. E através disto, poder futuramente realizar meu grande objetivo profissional, que almejo desde o início de minha adolescência e que continuo a almejar.

À minha família, em especial minha mãe e meus tios padrinhos, que me deram todo o apoio para trilhar este caminho.

Ao meu namorado Diego Jeferson, que esteve ao meu lado, me sustentando em muitos momentos de dificuldade com seu amor e presteza.

Ao professor Cintra que, mais que um orientador, foi a pessoa responsável por despertar em mim o amor pelo Direito Tributário, através de sua dedicação e compromisso em sala de aula.

A todos os amigos que direta e indiretamente me ajudaram a percorrer essa trajetória. Não citarei nomes para não incorrer no erro de esquecer alguém. Diversas pessoas, em algum momento, foram importantes apoiadores ou auxiliadores.

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“A injustiça num lugar qualquer é uma ameaça à justiça em todo lugar”.

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O campo da ilicitude em matéria tributária ganha contornos majoritariamente administrativos, seja pelo não recolhimento do tributo no prazo legal estabelecido, seja pelo descumprimento de obrigações acessórias. A Lei nº 8.137/90, dentre outras previsões, consolidou a iniciativa de punir penalmente determinadas condutas que iam além do mero inadimplemento fiscal e que, de alguma forma, prejudicam a atividade fiscalizatória e arrecadatória do ente fazendário pelo teor fraudulento e ardiloso. Apesar dessa tendência, criou-se um forte debate acerca da figura contida no art. 2º, II, da Lei nº 8.137/90 quanto ao seu alcance de aplicabilidade. Por esta razão, surgiram diversas discussões na jurisprudência sobre o referido dispositivo, que elenca o que se denomina por apropriação indébita tributária e que culminaram na decisão do RHC 163.334 do STF. Este trabalho pretende elucidar enquanto objetivo geral de pesquisa a coerência desta decisão última da Suprema Corte sobre o tema, na medida em que considerou criminosa a conduta do sujeito passivo da obrigação tributária de não recolher ICMS devidamente declarado junto ao Fisco, cujo valor tenha sido descontado ou cobrado de outrem. Para isso, se pondera de forma específica a respeito da figura do ilícito tributário e do ilícito penal tributário, aliada a análise do alcance da tutela penal sobre a ordem tributária e relações inerentes. Em seguida, tem-se uma exposição a respeito do comportamento prático do ICMS enquanto tributo para se chegar a parte final, que é a de enfrentamento da discussão sobre a interpretação da construção vocabular do tipo, bem como dos precedentes judiciais e competente jurisprudência consolidada quanto ao tratamento do tema até sua chegada ao Supremo Tribunal Federal. A conclusão foi pela incoerência da decisão proposta pela Corte Suprema e, o exame de todos esses aspectos para se chegar neste resultado, além do auxílio da pesquisa jurisprudencial, teve também como parâmetro o exame de produções bibliográficas, através de uma abordagem qualitativa, atualizando o conhecimento sobre o objeto de estudo, por uma utilização de resultados pura e com objetivo exploratório.

Palavras-chave: ICMS. STF. Ilícito tributário. Ilícito penal tributário. RHC 163.334 do STF.

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The field of illegality in tax matters gains mostly administrative contours, either by not paying the tax within the established legal term, or by non-compliance with ancillary obligations. Law 8,137 / 90, among other provisions, consolidated the initiative to penalize certain behaviors that went beyond mere tax defaults and that, in some way, harm the inspection and collection activity of the farm entity due to fraudulent and tricky content. Despite this trend, a strong debate was created about the figure contained in art. 2, II, of Law 8,137 / 90 as to its scope of applicability. For this reason, several jurisprudential discussions about the referred device arose, which lists what is called tax misappropriation and which culminated in the decision of RHC 163.334 of the STF. This work intends to elucidate as a general research objective the coherence of this last decision of the Supreme Court on the subject, insofar as it considered the conduct of the taxpayer of the tax obligation not to collect ICMS duly declared with the Tax Authorities, whose value has been discounted, criminal. or charged to someone else. To this end, a specific consideration is given to the figure of the tax offense and the criminal tax offense, together with the analysis of the scope of the criminal protection over the tax order and inherent relationships. Then, there is an exposition about the practical behavior of ICMS as a tribute to reach the final part, which is to face the discussion about the interpretation of the vocabulary construction of the type, as well as the precedents and jurisprudential clashes in the treatment of the subject until its arrival at the Federal Supreme Court. The conclusion was due to the inconsistency of the decision proposed by the Supreme Court and the examination of all these aspects, in addition to the aid of jurisprudential research, also had as a parameter the examination of bibliographic productions, through a qualitative approach, updating the knowledge about the object of study, by using pure results and with an exploratory objective.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ADCT – Atos das Disposições Constitucionais Transitórias ADI – Ação Direta de Inconstitucionalidade

CC – Código Civil

CF – Constituição Federal da República Federativa do Brasil CONFAZ – Conselho Nacional de Política Fazendária

CTN – Código Tributário Nacional EC – Emenda Constitucional HC – Habeas Corpus

ICMS – Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e Comunicação

ISS – Imposto sobre Serviços de qualquer natureza. LC – Lei Complementar

RE – Recurso Extraordinário

RHC – Recurso Ordinário em Habeas Corpus

SEFAZ CE – Secretaria da Fazenda do Estado do Ceará STF – Supremo Tribunal Federal

STJ – Superior Tribunal de Justiça

TJSC – Tribunal de Justiça de Santa Catarina TRF4 – Tribunal Regional Federal da 4ª Região

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1 INTRODUÇÃO ... 13

2 ILÍCITO TRIBUTÁRIO E SEUS REFLEXOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO ... 16

2.1 Aspectos conceituais sobre o ilícito jurídico e a respectiva sanção ... 16

2.1.1 O instituto do ilícito jurídico ... 16

2.1.2 O ilícito jurídico e o desencadeamento de uma sanção ... 18

2.1.3 Espécies de sanções jurídicas ... 20

2.2 Ilícito tributário e criminalização de condutas de natureza tributária: um estudo sob o viés do direito penal tributário ... 21

2.2.1 Um breve histórico dos precedentes legais do ilícito tributário penal ... 24

2.2.2 O ilícito tributário na seara administrativa e o ilícito tributário penal ... 25

2.2.3 Ilicitude penal e ilicitude extrapenal e a unicidade do conceito de ilícito ... 28

2.2.4 A legitimidade da intervenção penal para a tutela do sistema tributário: uma questão de proteção a bens jurídicos supraindividuais ... 29

3 ICMS, TRIBUTAÇÃO E NÃO RECOLHIMENTO: CONSEQUÊNCIAS MATERIAIS E PROCESSUAIS ... 33

3.1 O ICMS enquanto tributo não recolhido ... 33

3.1.1 Uma breve explanação conceitual do ICMS e aspectos correlatos ... 34

3.1.2 Não recolhimento de ICMS regularmente declarado, deflagração da execução fiscal e aspectos quanto à responsabilização e ônus ao contribuinte ... 41

3.2 ICMS e devedor contumaz ... 43

4 O ICMS DECLARADO E NÃO PAGO: REFLEXOS PENAIS A PARTIR DA LEI 8.137/90 E DO HC 163.334 DO STF ... 47

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4.1.2 As expressões deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo e descontado ou cobrado ... 53 4.2 Apropriação indébita tributária, sua conformação pelos tribunais e questões correlatas ... 63 4.2.1 Os entendimentos jurisprudenciais já consolidados antes do HC 163.334 do STF: uma análise das tendências dos tribunais ... 65 4.2.2 O julgamento do RHC 163.334 do STF: interpretação e consequências a partir da análise das nuances do conceito de ilícito penal tributário ... 74 4.2.3 O dolo para fins de configuração da apropriação indébita tributária... 78 4.3 Criminalização do não recolhimento de ICMS declarado e nuances sobre política criminal tributária...81

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 84 REFERÊNCIAS ... 88

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1 INTRODUÇÃO

Quando se avalia a evolução do fenômeno da tributação, é possível perceber sua importância tomando maiores proporções, especialmente quanto à sua funcionalidade para o exercício pleno das funções estatais de cunho social. Com o passar do tempo, o produto da arrecadação dos tributos foi gradativamente se tornando a principal fonte de recursos para que o Estado cumprisse suas finalidades e funcionalidades para com a sociedade.

Paulatinamente, a atuação estatal direta sobre a economia foi diminuindo, em virtude do liberalismo e, mais recentemente, pelo modelo de Estado adotado no século XXI, em que se verifica uma tendência de apropriação de riqueza que não foi por ele produzida. Tem-se, assim, o ponto de partida fático histórico para o que se apreende hoje sobre a função arrecadadora do tributo ou da tributação, havendo, pois, uma vinculação da atuação das entidades fazendárias aos interesses da sociedade. Neste contexto, é que exsurge o próprio exercício da função administrativa tributária (CINTRA, 2005).

Nesta tendência, o tributo possui várias funções. Ao lado da mais óbvia – a arrecadadora – destacam-se outras, comuns a toda a atividade financeira do Estado, consistentes no que se denomina por receitas e despesas, quais sejam: as funções distributiva, alocativa (indutora) e estabilizadora1. Ao afetar o comportamento dos agentes econômicos, o tributo poderá influir decisivamente no equilíbrio do mercado. As distorções daí decorrentes também haverão de ser consideradas na análise da tributação de maneira geral, mas também de questões que lhe são inerentes (SCHOUERI, 2019).

Nesta última se encontra a base de estudo para o tratamento penal de condutas que envolvam a atividade do Estado na fiscalização e arrecadação dos

1 Conforme aponta Schoueri (2019), além da própria função arrecadadora, a mais óbvia e que está

diretamente atrelada a ideia de que o Estado precisa de meios para o exercício de suas atividades, a tributação pode afetar comportamentos dos agentes econômicos e influir decisivamente no equilíbrio antes atingido pelo mercado. Um desses efeitos é o distributivo, quando se tem em conta que é possível, com a tributação, redistribuir a renda, tirando mais de uns e aplicando mais em favor de outros. Outro é o alocativo, que explicita o impacto do tributo na forma como a totalidade dos recursos é dividida para utilização no setor público e no setor privado. Por fim, tem-se o efeito estabilizador da tributação, que estabelece a necessidade de se formular uma política fiscal que objetive alcançar ou manter um elevado nível de emprego, uma razoável estabilidade no nível de preços, equilíbrio na balança de pagamentos e uma taxa aceitável de crescimento econômico.

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tributos. Mas, também, as demais funções destacadas compõem o espírito da norma penal que vise tutelar bens jurídicos que se encontrem em um elevado patamar de relevância dentro da esfera tributária. Isso ocorre porque, cada vez mais, há uma preocupação em manter os cofres públicos equilibrados. Garantir que os débitos sejam quitados, realizar um balanço positivo e ainda arcar com o papel de ente provedor das demandas sociais, é tarefa que depende diretamente de finanças suficientes para tanto.

Esse contexto fez com que houvesse uma política legislativa de cunho penal que intervisse em condutas que pudessem ser praticadas pelo civil com o fim de sonegar o pagamento de tributos, seja através de um ato fraudulento, ou por falsidade na declaração de valores que deveriam ser adimplidos junto ao Fisco. Não se trataria da criminalização do mero inadimplemento, mas de uma reprovação, pelas vias penais, de atos que fossem realizados de maneira ardil para suprimir a real expressão pecuniária do tributo devido. Essa é a proposta alcunhada pela Lei nº 8.137/90, que define os crimes contra a Ordem Tributária.

Apesar de parecer escorreita a finalidade do referido diploma legal, existe uma figura penal pertencente a sua composição que apresenta redação confusa, e por essa razão, gerou diversos embates nos tribunais quanto à sua aplicabilidade. Trata-se do crime de apropriação indébita tributária, constante em seu art. 2º, II, da Lei nº 8.137/90. Em sua substância, criminaliza-se a conduta daquele que cobra ou desconta tributo na qualidade de sujeito passivo e não repassa aos cofres públicos.

Em virtude disso, a questão pontualmente central deste trabalho gira em torno da perquirição acerca da coerência e acerto ou não da decisão obtida com o RHC 163.334 do STF, em que se criminalizou a conduta de ICMS declarado e não pago pelo contribuinte contumaz. Nisto, o capítulo 4, analisa os próprios argumentos tecidos na decisão e os antecedentes que tenham lhe dado respaldo, somado à interpretação do dispositivo de lei condutor da referida decisão, que é o art. 2º, II, da Lei nº 8.137/90, que prevê o crime de apropriação indébita tributária.

Outro ponto de abordagem diz respeito a própria natureza da norma em questão, que é de ilícito penal tributário, explanando-se a respeito de seus fatores fundantes e de sua essência. Com isso, suscita-se um questionamento acerca de qual deve ser o alcance da tutela penal quando se propõe um tratamento incisivo a certos fenômenos que afetem a ordem tributária. Esta é a questão que perfaz o capítulo 2 e que tem como proposta também discorrer sobre os diversos significados do ilícito, de

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acordo com o contexto a que é alocado, e as sanções que lhe são cabíveis, funcionando como um ponto adjacente que ajuda a melhor responder a questão fulcral deste trabalho, mencionada supra.

Para que se exponha da melhor forma se a decisão vergastada com o RHC 163.334 foi plausível e correta, se propõe uma outra questão no capítulo 3, baseada na análise da sistemática de arrecadação e aspectos afins do ICMS, onde se explana não somente a forma como esse tributo se comporta, mas as consequências que são verificadas quando hajam distorções no comportamento do contribuinte. Para isso, tem-se um aprofundamento sobre o impacto econômico desse tributo e até que ponto isso pode influir na prática do inadimplemento contumaz, algo muito enfatizado pelo STF.

Para este intento, o método de pesquisa utilizado será similar no segundo e no terceiro capítulo, abordando-se uma perquirição doutrinária e bibliográfica. Mas, no que se refere ao terceiro capítulo, conceitos e ponderações doutrinárias foram condensadas com a exposição dos entendimentos já pacificados pelos tribunais acerca de alguns aspectos, que inclusive possuem tratamento em texto de súmulas dos tribunais superiores. Essa condensação de metodologia é igualmente verificável no quarto capítulo, mas neste, tem-se também um estudo positivista e interpretativo da norma principal e dos precedentes que culminaram com a posição adotada pelo Suprema Corte.

A opção por esta espécie de abordagem se explica pelo fato de ser necessário um estudo direcionado aos operadores do direito, para que possam apreender escorreitamente a mens legens da norma e, concomitantemente, para que se questione, junto ao legislador, a estrutura vocabular do referido tipo penal tributário. Também, para que se perquira sobre a abordagem argumentativa e interpretativa que lhe é atribuída pelos tribunais e se está consonante com um dos principais parâmetros que devem ser adotados na aplicação de normas penais dessa espécie: os preceitos básicos do Direito Tributário.

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2 ILÍCITO TRIBUTÁRIO E SEUS REFLEXOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

O ilícito jurídico possui variadas formas de se manifestar. Trata-se de figura que está diretamente atrelada a uma disfunção comportamental que confronta o teor permissivo de determinada norma jurídica. Apesar de possuir o conceito de ilícito certa alcunha de uniformidade, a consequência direta de sua prática pode variar conforme sua natureza ou gravidade. Ou seja, a depender do tipo de ilícito que se tenha, haverá uma específica sanção a ser aplicada.

Assim, a abordagem que se verificará nesta sequência se balizará no estudo da natureza dos ilícitos e suas respectivas sanções, para que assim se tenha os contornos conceituais do que seja o ilícito penal tributário. Nesta mesma linha, se explicitará sobre a legitimidade da regulação da ordem tributária pela ciência penal que, em termos mais estritos traduz-se, no questionamento sobre a legitimidade da tutela penal sobre questões atreladas a fenômenos tributários.

2.1 Aspectos conceituais sobre o ilícito jurídico e a respectiva sanção

Para que se compreenda a noção de crime tributário ou de ilícito penal tributário, como ele se constitui faticamente e a sistemática de reprimenda a ele aplicada, necessário que se entenda, antes disso, os conceitos básicos atinentes ao ilícito jurídico enquanto figura essencial a qualquer ordenamento, bem como a configuração do ilícito tributário puro, este de regulação construída e sistematizada nas leis tributárias.

2.1.1 O instituto do ilícito jurídico

O comportamento que revele prospecções em uma determinada esfera de ser ou dever, por vezes, é contemplado no enunciado de uma norma. A norma, por sua vez, é instrumento dotado de abstração capaz de delinear os diversos contornos do convívio social. E, para que esse convívio social seja minimamente possível, há que se instituir permissividades e proibições. É justamente em virtude desta premissa que existem condutas enquadradas sob o espectro da ilicitude, para que aquilo que a norma considere como nocivo, tenha-se uma intervenção proibitiva. E o que não seja

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nocivo, subsuma-se ao que é situado como lícito. Assim, há que se falar em condutas que podem ser tidas como lícitas, pois o Direito prescreve ou admite, ou ilícitas, pois violam determinada prescrição jurídica, contrariando a lei ou norma jurídica (MACHADO, 2015). Portanto, a conduta, concretizada pela ação ou omissão, uma vez contrária a lei, caracteriza um ilícito.

Apesar destas ponderações, Ives Gandra Martins (1998)2 aprofunda o conceito que traduz a significação da ilicitude, situando que tal fenômeno não se reduz apenas ao comportamento que vai de encontro com o que a norma determina:

A simples ação ou omissão comportamental que não estiver de acordo com a lei não representa ilicitude. A lei pode indicar um comportamento cujo não cumprimento não represente violação da norma. Para que se caracterize a ilicitude é necessário que, além do comportamento em desacordo com a lei, sua ação represente violação da norma. Apenas com a conjugação dos dois elementos se entra no campo da ilicitude (MARTINS, 1998, p. 296).

A ilicitude, pois, constitui situação que consiste na ação de contrariar a prescrição contida na norma, o que, associada ao desrespeito do comando que a norma pontua, desperta a necessidade de se acionar o preceito normativo assecuratório e repressivo, que será analisado adiante. O importante nesta presente abordagem é fixar, em linhas gerais, que o ilícito é o fenômeno diametralmente oposto à licitude. Neste sentido são as lições de Hugo de Brito Machado (2018, p. 498):

Embora no âmbito da Filosofia do Direito, e até no âmbito da Teoria Geral do Direito, existam controvérsias em torno do que seja o ilícito, prevalece entre os juristas a ideia de que no universo jurídico os comportamentos podem ser qualificados como lícitos ou ilícitos. Os primeiros são aqueles que estão de acordo, e os últimos aqueles contrários à ordem jurídica, ao direito objetivo. Por fim, importante que se ressalte que o ilícito jurídico varia de acordo com o ramo que lhe dá conformidade. Um fato ilícito tributário, por exemplo, recebe tratamento ou significação distinta daquela verificada em outro ramo do Direito. Pontua Martins (1998), no entanto, que a figura do ilícito é marcada pela unicidade. Assim, seja ele penal, administrativo, ou mesmo tributário, apresentarão a mesma natureza jurídica, pois, ontologicamente, não há distinção entre eles, muito embora possa variar de acordo com o caso concreto (AMARO, 1997).

2 Ainda segundo o mesmo autor, no campo do direito positivo, a definição do que seja lícito ou ilícito é

apenas uma questão rotular de eleição do legislador, que hoje pode considerar ilícito algo que ilícito não foi. No plano moral, o lícito ou ilícito decorre de normas preexistentes, de leis naturais como aquelas que regem fisicamente o Universo, biologicamente os seres vivos e socialmente a convivência humana (MARTINS, 1998 p. 297).

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Essa linha de pensamento também é aduzida por Derzi (1997), que sustenta a ideia de que não há diferença ontológica ou qualitativa entre o ilícito penal comum, o administrativo ou o tributário. Em outras palavras, todas as matérias de proibição, reguladas nos diversos setores da seara jurídica, são antijurídicas para todo o ordenamento jurídico (BITENCOURT, 2013). Esta, pois, é uma concepção adotada pela maioria da doutrina acerca do assunto.

Portanto, a infringência de determinado estado de coisas que perturbe a ordem social gera uma consequência, tendo-se um preceito secundário quanto à prescrição de determinado comportamento como ilícito. Se assim não o fosse, a norma se tornaria inócua. É, portanto, a consequência pelo descumprimento da norma de proibição que reverbera a razão de ser desta última. É o que se estuda a seguir.

2.1.2 O ilícito jurídico e o desencadeamento de uma sanção

A acepção da palavra “sanção” pode ganhar diferentes contornos, podendo experimentar mutações semânticas que variam conforme o momento da sequência prescritiva (direito posto), ou expositiva (ciência do direito) (CARVALHO, 2018). Entretanto, como a análise científica que se pretende realizar atrela-se ao conceito de ilicitude, há que se falar, portanto, de uma referência a um instrumento de reprimenda a comportamentos indesejáveis, que uma vez identificados, são vistos como inoportunos e geram perturbação ao convívio social. O que se vislumbra, a partir da análise deste tema, é a sanção como consequência direta e real da prática do ilícito. Em linhas mais precisas, destaque-se o conceito de “sanção” pela ótica de Paulo de Barros Carvalho (2018, p 427):

Para nós, a palavra comparece aqui na sua acepção estrita, equivale a dizer, ‘norma jurídica em que o Estado-juiz intervém como sujeito passivo da relação deôntica, sendo sujeito ativo a pessoa que postula a aplicação coativa da prestação descumprida’. Em outros termos, sanção é a providência que o Estado-jurisdição aplica coativamente, a pedido do titular de direito violado, tendo em vista a conduta do sujeito infrator. Por esse modo, estaria contida no consequente de norma individual e concreta, como traço identificador do jurídico.

Isso decorre do fato de que a norma, em seu sentido prático, adquire feição de regramento e ordem, de forma que, seu caráter imperativo revela um mandamento a ser seguido e obedecido. Assim, a figura da sanção aparece como um meio para

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que haja o cumprimento das regras consubstanciadas nas normas. Assim, há que se estabelecer que a sanção é, pois, todo e qualquer processo de garantia daquilo que se determina em uma regra (REALE, 2002).

Para que seja compreensível a sistemática de funcionalidade da sanção, nada mais adequado que se compreenda que a lógica da regra sancionatória está associada a uma hipótese descritora de um fato do mundo real, e uma consequência prescritora de um vínculo jurídico que há de se formar entre dois sujeitos. Assim, o antecedente da regra sancionatória descreve um fato ilícito qualificado pelo descumprimento de um dever estipulado no consequente. É, pois, a consequência da não prestação.

No caso das penalidades pecuniárias ou multas de natureza fiscal, o liame de vínculo jurídico é de natureza obrigacional, uma vez que tem substrato econômico. Por isso, denomina-se relação jurídica sancionatória e o pagamento da quantia estabelecida é promovido a título de sanção (CARVALHO, 2018).

Assim, é coerente que se diga que a sanção serve para coibir e desestimular condutas transgressoras, de acordo com o que a norma jurídica descreve ou elenca como tal, podendo recair sobre o patrimônio ou na própria pessoa do transgressor, como modo de reparo, reconstituição, indenização ou repressão do bem jurídico atingido. Eis, portanto, um atributo que a norma que indica uma conduta ilícita possui: a de ser assecuratória, além de consistir numa forma de reprimenda do comportamento que vai de encontro aquele tido como lícito pela norma jurídica. Neste sentido, são as palavras de Ives Gandra Martins (1998, p. 298):

Apesar da característica assecuratória das leis que cuidam de reprimir a ilicitude, no campo do direito positivo, tais leis apenas surgem, quanto às regras de aceitação social, como decorrência das violações às indicações de comportamento, normalmente seguidas pelos que estão sujeitos a sua força. Nas normas de rejeição social, as leis sancionatórias são a razão de ser das regras de comportamento, pois sem elas, tal forma de agir não seria dotada. Muitas vezes, o que se tem no fato de a norma prescrever uma conduta como ilícita e sua transgressão ensejar uma sanção é uma necessidade de se conseguir a manutenção da relação jurídica pretendida e sua devida fruição como a regra normativa propunha, até porque, se não houvesse a regra de sanção, não haveria o porquê de se estabelecer regras de proibição e, portanto, de ilicitude.

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2.1.3 Espécies de sanções jurídicas

A sanção se presta como meio coator de interferência em relação a atos ou condutas que colidam com aquilo que um determinado ordenamento fixou, seja esse ordenamento pautado por um conjunto de regras morais ou jurídicas. Aquilo que não está ordenado de maneira permissiva exige uma reação de coibição.

O que é notável a partir disso é que o instituto alhures consiste em um dado normativo que caracteriza e define ontologicamente a própria ciência do Direito enquanto tal, já que é no ilícito, naquilo que a ordem não contempla como plausível, que reside a potencialidade do Direito. Assim, o que define o direito é a violação da conduta e esta, por sua vez, faz nascer a sanção (KELSEN, 1979).

O preceito normativo que regula a sanção possuirá graus de intensidade que irão se conformar de acordo com o ilícito definido em determinado ramo do Direito. É importante que essa questão seja apontada na abordagem acerca das espécies de sanção, pois embora se mencione enumeradamente os tipos objetivos, compreender sua intensidade e nível de interferência é salutar para que se entenda o porquê de sua existência e aplicação em uma dada circunstância. Para complementar esse raciocínio, necessário se faz expor as ponderações de Ives Gandra Martins (1998, p. 301) a este aspecto:

Muito embora a violação de uma situação normada tenha sempre sua repercussão em todo o ordenamento jurídico, pode tal violação não ser assim considerada em outra, pois cada ramo conforma o mesmo fato com suas peculiaridades próprias, realçando acentuar que os efeitos são diferentes em função de cada segmento, do que decorre não ser o direito dividido por mera consideração didática, em suas multiformes ramificações, mas por algo que diz respeito à própria vida de todos os direitos.

Neste diapasão, em termos mais práticos e concretos, assinala-se a enumeração dos tipos ou espécies de sanção para que se compreenda, não apenas a intensidade repressiva que alcançarão, mas também a forma como irão interferir na esfera individual do transgressor da norma parte do ordenamento jurídico.

Quanto a isso, segundo Hugo de Brito Machado (2015), há que se falar em três espécies de sanção jurídica, pelo menos na seara tributária: as executórias, as indenizatórias e as punitivas. As primeiras funcionam como instrumento de coação ao adimplemento, sendo um meio hábil a compelir o devedor a prestar o cumprimento da obrigação ou dever jurídico que estabelece.

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As segundas possuem uma função reconstituidora, pois reparam o dano que, porventura, tenha decorrido da prática ilícita, sendo uma forma de ressarcimento patrimonial. Por fim, as terceiras agem como instrumentos de repressão do ato de inobservância do ordenamento posto, podendo se manifestar como uma reprimenda na seara patrimonial ou pessoal do agente transgressor. Esta última espécie sancionatória ocupa-se fundamentalmente em castigar o responsável do praticante do ilícito de forma a alcançar o infrator de forma direta (pena de caráter pessoal).

Portanto, cabível afirmar que as classificações podem ser as mais diversas possíveis, podendo-se levar em conta diversos pontos de referência ou critérios para que se chegue a visualizações diversas de como a sanção pode interferir na esfera individual de quem é alvo de tal medida. Saliente-se que as formas de sanção não são rígidas em um dado contexto, pois variam de acordo com a interpretação que lhes é atribuída, o ponto de vista e o objetivo da própria sanção enquanto reprimenda. 2.2 Ilícito tributário e criminalização de condutas de natureza tributária: um estudo sob o viés do direito penal tributário

A ideia de ordenamento jurídico sedimenta a organização das regras de um determinado corpo social e classifica condutas a partir da subsunção destas ao conteúdo normativo posto. Esta classificação, como já amplamente assentada, pode respaldar uma consequência que importe em reprimenda ao comportamento verificado, pois é ofensivo ao equilíbrio social, razão de ser de um ordenamento de regras. Neste contexto é que exsurge a identificação de métodos e instrumentos, que possuem a denominação de sanção e que se manifestam das mais diversas maneiras. No Direito, determinados comportamentos podem acionar o preceito secundário da norma, com a finalidade de proteger o bem jurídico referido no preceito primário da mesma norma. Este preceito secundário diz respeito a sanção, que se apresenta como meio hábil a reprimir aquilo que se considere destoante do ordenamento vigente. Com base nessas premissas, passa-se a analisar a natureza do próprio comportamento, que terá características de determinado ramo do direito e assim, com base nesses traços, tornar-se-ia cabível o tratamento jurídico conveniente. Eis o cerne da conceituação de ilícito tributário, que se apresenta como um descumprimento da regra jurídica inserta em determinado rol de normas tributárias que integram a totalidade de um ordenamento jurídico. Neste espectro, o ilícito

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tributário se manifesta ou pode ser prontamente identificado quando o sujeito passivo da norma tributária – aquele para quem se direciona o conteúdo imperativo da regra jurídica tributária – é indiligente quanto as suas obrigações precípuas enquanto tal e frustra a expectativa de arrecadação do tributo pelo Estado ou de domínio das prestações correlatas a exação devida pelo mesmo.

Por esses termos, sempre que houver falta de recolhimento de tributo surge o ilícito tributário, que ocasiona uma consequência ditada pelo nível ou dimensão dos efeitos perpetrados pelo ilícito. Frise-se que não somente se incluirão na gama concreta da prática do ilícito o descumprimento da obrigação principal concernente ao recolhimento do tributo, mas também a inobservância da obrigação acessória, que enseja sua transformação em obrigação principal, conforme os ditames positivados no Código Tributário Nacional3 (MARTINS, 1998). Em sentido semelhante, Paulo de Barros Carvalho (2018, p. 432) também define infração tributária como: “toda ação ou omissão que, direta ou indiretamente, represente o descumprimento dos deveres jurídicos estatuídos em leis fiscais”.

Assim, as infrações à legislação tributária, em regra, ensejam a aplicação de sanções administrativas, pois podem constituir apenas um comportamento de mera violação a um dever jurídico tributário estatuído. A ação de reprimenda pelas vias sancionatórias consiste, em termos práticos, na aplicação de multas de caráter pecuniário, em virtude da transformação da obrigação acessória em principal, como já explicitado. Também podem se manifestar como limitações quanto ao exercício de direitos inerentes à própria pessoa do contribuinte (PAULSEN, 2020).4 Entretanto, a norma que indique o ilícito tributário pode exigir a realização de uma sanção dotada de maior drasticidade, que incite uma resposta de cunho penal, fundamentada nas

3 “Art. 113. A obrigação tributária é principal ou acessória. § 1º A obrigação principal surge com a

ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária e extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente. § 2º A obrigação acessória decorre da legislação tributária e tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos. § 3º A obrigação acessória, pelo simples fato da sua inobservância, converte-se em obrigação principal relativamente à penalidade pecuniária” (BRASIL, 1966, s. p.).

4

O autor exemplifica algumas formas de sanção aplicadas na via administrativa, uma vez verificada a prática de um ilícito tributário. São elas as multas moratórias, devidas em razão da simples extrapolação do prazo de vencimento do tributo; multas de ofício, impostas pela administração tributária quando verificada a ocorrência de alguma irregularidade maior; as chamadas multas isoladas, aplicadas em face do descumprimento de obrigações acessórias de fazer, não fazer ou tolerar, ou ainda, o cancelamento de registro especial do contribuinte produtor de cigarros que seja inadimplente sistemático e contumaz e o perdimento de bens. Estas últimas, são reprimendas menos comuns, porém possíveis, a depender da circunstância específica.

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formas e princípios do poder punitivo estatal de bens jurídicos valorosos em alto grau. Ter-se-ia, assim, o ilícito penal tributário.

Ademais, forçoso que se reverbere pontuadamente acerca da diferenciação entre ilícito tributário como descumprimento de dever jurídico previsto na norma fiscal e o ilícito tributário penal, capaz de incitar o chamamento da ciência da ultima ratio dentre os ramos do direito. Exatas e precisas são as colocações de Bitencourt (2013, s. p.) quanto a essa distinção:

[...] o crime tributário (infração penal) pode e deve ser diferenciado do ilícito tributário (infração tributária). Essa diferenciação deve estar orientada principalmente em dois sentidos: (i) em primeiro lugar o delito tributário deve representar, materialmente, uma ofensa a um determinado bem jurídico, e não uma mera infração das normas impostas pelo Direito Tributário. Se partirmos da premissa fundamental de que o Direito Penal tem como função a proteção subsidiária de bens jurídicos importantes, não podemos admitir a criminalização de condutas constitutivas de mera infração de dever. De modo que, sempre e quando o comportamento tipificado não represente uma ofensa à preservação do bem jurídico ordem tributária, não há que se falar na deflagração de poder punitivo de Estado; (ii) em segundo lugar, apesar de a antijuricidade ser uma categoria sistemática transversal, comum a todos os ramos do Direito, dotando o ordenamento de coerência lógica e impondo interpretação teleológica e sistemática das normas, a persecução de delitos, entre eles o delito tributário, atende a princípios e regras de imputação específicos, propriamente penais; consequentemente, a constatação da responsabilidade penal objetiva e subjetiva e a declaração de culpabilidade constituem pressupostos necessários e irrenunciáveis para a aplicação de pena.

Isso se deve ao fato de o instituto da antijuricidade não ser figura própria apenas do Direito Penal. Este, pois, presta-se a tutelar os bens jurídicos mais caros e, por esta razão, tem-se a cominação de uma pena. Assim, o que se tem é a antijuricidade como a qualidade de uma forma de conduta proibida e, neste azo, todas as matérias de proibição regulados nos diversos setores da seara jurídica são antijurídicas para todo um ordenamento (BITENCOURT, 2013).

Contudo, importa aludir que, embora tenha-se a ideia de autonomia das instâncias e searas do direito, tem-se uma questão envolta ao campo processual e não material, haja vista a antijuricidade penal adentrar-se em outras áreas do estudo da ciência jurídica, o que lhe fornece um caráter transversal. Em outras palavras, um ilícito penal não pode deixar de ser igualmente ilícito em outras áreas do direito, como a civil e a administrativa, por exemplo. Porém, a recíproca não é verdadeira, vez que nem todo ilícito civil ou administrativo é necessariamente um ilícito penal.

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Isso implica na impossibilidade de um ato ou conduta ser considerado como lícito no plano civil ou administrativo e seja tido como ilícito penal. Em um contexto prático, isso ocasionaria o tratamento punitivo penal de uma relação jurídica tributária que foi negada pelo ente fazendário ou o mesmo considerou o tributo como não devido na seara administrativa.

2.2.1 Um breve histórico dos precedentes legais do ilícito tributário penal

Para que se compreenda a figura do ilícito penal tributário, necessário que se perquira os precedentes legais que positivaram o referido instituto em suas mais diversas caracterizações e manifestações até seu atual disciplinamento legal e nuances punitivas. Em se tratando de crimes de caráter fiscal, o direito penal brasileiro começou por punir o contrabando, isto é, a importação de bens tidos como proibidos, bem como o descaminho, com tipo penal incidente no comportamento de não recolher tributos. No que tange à prática de meios ardilosos e fraudulentos, que violam a sistemática de arrecadação, houve a criminalização de falsificação da estampilha, papel selado ou outro documento, com previsão no art. 293, I do Código Penal.

Com a Lei nº 3.807/1960, é possível observar que a apropriação indébita é considerada como crime tributário no que toca às contribuições previdenciárias retidas dos segurados e não repassadas aos cofres públicos, tendo previsão estendida com a edição da Lei nº 4.357/1964, ampliando o tipo penal para além das contribuições previdenciárias e prevendo como delito de mesma substância a retenção na fonte do Imposto de Renda e empréstimos compulsórios. De igual modo, tinha-se os valores descontados ou recebidos de terceiros de imposto do selo ou de consumo. Além disso, o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) cobrado e não recolhido também ensejou o mesmo tratamento, nos termos do artigo 2º do Decreto-Lei n. 326/1967.

A tipificação da sonegação fiscal, por sua vez, surgiu com o advento da Lei nº 4.729/1965, que além de ter previsto um considerável rol de crimes contra a ordem tributária, teve o condão de disciplinar toda a matéria de tipos penais desta espécie, de tal modo que o Código Penal deixou de ser aplicado, em homenagem ao princípio da especialidade. Quanto a isto, interessante a pontuação que Hugo de Brito Machado (2015, p. 511) faz:

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Com isto, as autoridades pretenderam intimidar os contribuintes que sonegavam tributos. Do ponto de vista jurídico, porém, os autores dos comportamentos referida lei definidos foram favorecidos, em face do princípio da especialidade. Realmente, todos aqueles comportamentos podiam ser capitulados no art. 171, que define estelionato, ou nos arts. 297, 298 ou 299 do Código Penal, que definem os crimes de falsidade material ou ideológica de documentos. A pena mínima cominada seria de 1 ano, e máxima de 6 anos de reclusão. A Lei nº 4.729/1965 cominou pena de detenção de 6 meses a 2 anos. Além disso, admitiu a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo devido, e para os réus primários cominou pena exclusivamente de multa, com o quê fez extinguir-se a punibilidade em apenas 2 anos, pela prescrição. Os dispositivos do Código Penal não eram aplicados. As autoridades da Administração Tributária, por desconhecimento ou por razões políticas, não acionavam o Ministério Público para esse fim. Com o advento da lei nº 4.729/1965. algumas ações penais foram promovidas, e em alguns casos o Ministério Público promoveu ação invocando o Código Penal, sem êxito, porém, em face do princípio da especialidade.

Por fim, o disciplinamento atual do ilícito tributário consubstancia-se na Lei nº 8.137/1990, que exsurge como um diploma legal que regula os “crimes contra a ordem tributária” (BRASIL, 1990a, s.p.). Nesta atual fase, não há que se falar, pelo menos em termos de denominação técnica, em sonegação, mas o conteúdo normativo da atual lei, materialmente, fez a mesma alusão. Entretanto, cumpre destacar, que enquanto a sonegação fiscal era punida independentemente do resultado, a lei vigente fomentou a definição de crimes de resultado, com penas mais graves. Neste contexto, a Lei nº 8.137/1990 ao regular a matéria em questão por completo, acabou por ab rogar a Lei nº 4.729/1965.

2.2.2 O ilícito tributário na seara administrativa e o ilícito tributário penal

Ao se contemplar a temática das infrações e sanções atinentes a ciência da tributação, é possível classificar os ilícitos tributários em duas espécies, quais sejam: o ilícito administrativo tributário e o ilícito penal tributário. O principal critério para que se adote esta classificação e se diferenciem as referidas espécies, repousa no método de reprimenda ou de supressão da conduta indesejada, ou seja, a sanção a ser aplicada. Há também que se falar da principiologia e do regime jurídico a ser aplicado, o que também motiva a razão de ser de seus distintos instrumentos sancionatórios. Para que se conceitue e se exponha os pormenores de cada um, imperioso destacar o que assinala Paulo de Barros Carvalho (2018, p. 432) sobre o tema das infrações tributárias:

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O comportamento violador do dever jurídico estabelecido em lei tributária pode revestir as características de meras infrações ou ilícitos tributários, bem como de crimes fiscais, dessa maneira definidos em preceitos da lei penal. Entre tais entidades existe uma distinção formal e, atrás disso, uma grande diferença de regime jurídico, posto que os crimes fiscais estão subordinados aos princípios, institutos e formas do Direito Penal, ao passo que as infrações contidas em leis tributárias, de caráter não criminal, sujeitam-se aos princípios gerais do Direito Administrativo.

Assim, há que se falar que o ilícito tributário de viés administrativo irá se referir a um comportamento que implica inobservância do dever jurídico consistente na norma tributária, isto é, o inadimplemento de obrigação tributária, seja ela principal ou acessória (MACHADO, 2015). Pode-se dizer, então, que o comportamento desenvolvido contra os ditames da norma tributária fere o funcionamento da Administração Pública Tributária em termos de arrecadação. Este, pois, é um dos pontos de crucial importância para se distinguir o ilícito tributário administrativo, do penal: o bem jurídico atingido. Portanto, resta clarividente que as sanções penais são aplicadas no juízo penal, ao passo que as sanções de viés administrativo são aplicadas pela autoridade administrativa, no exercício de uma função administrativa (CARRAZA, 2011).

Neste aspecto, interessa pontuar a colocação do já mencionado autor, quanto à sistemática sancionatória referente a esta espécie, especialmente no que tange às penalidades pecuniárias, que devem ser feitas e impostas de forma substancial quanto a reprimenda que pretenda imprimir. Trata-se do fato de as leis tributárias indicarem em seus mandamentos penalidades específicas para o descumprimento de obrigações acessórias, com valores fixos ou indicações de limites mínimo e máximo, mas que não são calculados tendo como referencial quantitativo o valor do imposto ou de qualquer operação correlata.

O ilícito tributário penal segue o raciocínio de que o tratamento dado a condutas tipificadas, aciona um poder sancionatório mais contundente através do Direito Penal, que se insere como ultima ratio do sistema em virtude da fragmentariedade que lhe caracteriza. As normas dessa espécie existem para evitar a prática de delitos.

Entretanto, falhando a função motivadora da norma penal, transforma-se a sanção abstratamente cominada em sanção efetiva, através do devido processo legal, tornando aquela prevenção genérica aduzida na norma, em prevenção especial, o que permite a manifestação mais autêntica do caráter coercitivo do Direito Penal

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(BITENCOURT, 2013). Neste diapasão, quanto ao ilícito penal tributário, aponta Leandro Paulsen (2020, s.p.):

Por vezes, contudo, o legislador criminaliza determinadas condutas que apresentam especial caráter ofensivo, exigindo inibição e repressão mais intensas. Assim é que passam a configurar crime, dando ensejo inclusive à aplicação de penas privativas de liberdade, sem prejuízo das sanções administrativas a que estão sujeitas. Estamos, então, no âmbito do direito penal tributário [...]

Aos crimes tributários aplicam-se os princípios próprios do direito penal, assegurando-se o respeito às garantias individuais da legalidade (art. 5º, XXXIX), da irretroatividade (art. 5º, XL) e da pessoalidade (5º, XLV). Merecem especial atenção, ainda, o direito à ampla defesa e ao contraditório (art. 5º, LV) e a possibilidade da utilização do habeas corpus para o relaxamento de prisão irregular ou para o trancamento de ação penal sem justa causa (art. 5º, LXVIII).

Quanto a isto também, Hugo de Brito Machado (2015) tece algumas críticas acerca da sistemática de criminalização de condutas que transgridem normas tributárias. Na ocasião, o referido tributarista alude que o fundamento da incriminação estaria pautado numa questão meramente econômica e que essa forma de reprimenda (através da criminalização de condutas tidas por ilícitas), atende apenas aos interesses da autoridade fazendária, centrada na atividade arrecadatória. Conforme Hugo de Brito (2015, p. 209):

A nosso ver, a criminalização do ilícito tributário decorre do comodismo dos encarregados da arrecadação dos tributos. É muito mais cômodo ameaçar com pena prisional, que somente através da criminalização se faz possível, do que utilizar os mecanismos de controle adequados para evitar condutas ilegais dos contribuintes que querem fugir ao pagamento do tributo. Comodismo simplesmente, e nada de fundamento moral.

Apesar disso, mesmo que haja uma corrente doutrinária que pugna pelo entendimento de que a transgressão à norma tributária seria, na verdade, uma afronta a organização administrativa do estado devido ao fato de que a atividade de tributação e arrecadação seriam fenômenos analisados sob a ótica do Direito Administrativo, não é esse o entendimento que se adota majoritariamente.

Isso porque a Ordem Tributária é elencada constitucionalmente e consubstanciada por uma série de princípios e garantias individuais, que a faz ser classificada como um bem jurídico supraindividual. Por isso, os efeitos de algumas condutas específicas, determinadas por lei, passarão a receber tratamento penal por

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transcenderem os limites da mera arrecadação, ultrapassando a proteção única e tão somente da atividade da Administração Tributária neste fito.

2.2.3 Ilicitude penal e ilicitude extrapenal e a unicidade do conceito de ilícito

Como já abordado, pode haver ilícito tributário administrativo sem que se configure no mesmo contexto um ilícito tributário penal. Porém, a recíproca não é verdadeira. Isso se deve ao que foi mencionado acerca da unicidade ontológica da manifestação do ilícito: uma vez configurado, será figura que possuirá os mesmos traços característicos, mesmo que variem as áreas do Direito e exigirá uma reprimenda, que é a sanção. O que se observa é que haverá diferenciação no tratamento de cada ilícito, na medida em que este transgrida determinado bem jurídico, que seja em menor ou maior grau, tutelado através de uma sanção mais severa.

No que concerne ao âmbito dos crimes tributários, um dos problemas mais patentes na verificação da sonegação fiscal centra-se na possibilidade de se admitir que se considere existente tal delito quando, na verdade, sequer houve o reconhecimento da infração tributária pelo não recolhimento.

De antemão, importante frisar que não se pretende assentar que o inadimplemento é o único pressuposto para a caracterização do ilícito tributário penal, mas sim que é pressuposto substancial para que haja a devida coerência quando da aplicabilidade dos tipos penais fiscais. Esta é uma temática aludida em seus escritos por César Roberto Bitencourt (2013, s. p.) e, por esta razão, relevante que se transcreva sua colocação sobre:

Constitui um autêntico paradoxo admitir que o legislador penal possa, através da técnica da norma penal em branco e da utilização de elementos de tipo normativo, remeter o intérprete a outro ramo do ordenamento jurídico para complementar ou integrar o preceito primário da norma penal incriminadora e, a continuação, afirmar que a decisão oriunda de outro ramo do ordenamento sobre esses elementos não é eficaz na seara penal. É certo que, sob o ponto de vista das garantias individuais consagradas no processo penal, deverão ser apreciados e submetidos a contraditório todos os fatos relacionados com o delito; entretanto, não poderá existir contradição entre os distintos ramos do ordenamento jurídico.

Ainda sob o crivo deste pensamento, também pondera Assis Toledo (2002) que, uma vez proclamada a inexistência do ilícito civil, há um obstáculo irremovível

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para o reconhecimento posterior do ilícito penal, pois pela obviedade fornecida pela própria coerência intrínseca do ordenamento jurídico, não será proibido na esfera penal aquilo que for lícito na esfera administrativa ou cível.

Portanto, o que se pretende assinalar é que, o pressuposto mais indispensável consiste na verificação da preexistência da ilicitude administrativa, isto é, do descumprimento do dever jurídico de adimplir o tributo, para que somente com isso possa-se concluir, por exemplo, pela configuração do crime de sonegação fiscal ínsita na Lei nº 8.137/90. Como precisamente assevera César Roberto Bitencourt (2013), o ilícito tributário é pressuposto do ilícito penal. Não há, como muito e comumente se alega, uma independência de instâncias, mas sim uma interdependência.

2.2.4 A legitimidade da intervenção penal para a tutela do sistema tributário: uma questão de proteção a bens jurídicos supraindividuais

A concepção de Direito Penal pode assumir diversas formas que se manifestarão como tal a partir do contexto político em que está inserido. Numa política de viés democrático, o Direito Penal sistematiza e organiza um controle social limitado e legitimado pelo consenso comum dos integrantes de um dado corpo social. Em termos práticos, há que se falar na subsunção do ius puniendi ao controle e ditames da lei que, tendo suas raízes na harmonia da vontade social, servirá para proteger um interesse em comum e, consequentemente, bens jurídicos fundamentais para o convívio ideal (BITENCOURT, 2013).

O conceito de bem jurídico-penal, perpassa diversos fatores principiológicos que norteiam os fins fundamentais nos quais a ciência penal se debruça. Frise-se, por esse motivo, que se trata de tarefa complexa e que não se resume à verificação simplória de realização concreta de alguns dos princípios precípuos do Direito Penal, quais sejam: a fragmentariedade, a subsidiariedade e a lesividade.

Entretanto, é necessário reconhecer que o conceito de bem jurídico penal é indispensável para que se delimite a atividade e a função punitiva do Estado, que promove a criminalização de certas condutas. Ou seja, deve-se prezar por uma atividade legislativa que possa ser fomentada de maneira sólida e justa na disciplina deste campo normativo.

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Apesar dessa importante premissa, é inescusável que o conhecimento do conceito, puro e simples, de bem jurídico penal, não é, por si só, critério absoluto. Não se tem uma definição precisa, para separar, desde logo, a conduta punível daquela que deve ficar impune, através de simples subsunção e dedução (ROXIN, 1986).

O que se tem, na verdade, é o fato de que o bem jurídico penal é assim fomentado e se torna propósito de proteção, seja material ou formalmente, em virtude da própria significação que carrega e a sistemática teleológica que lhe permeia. Esta última, fundamenta-se no contexto histórico em que foi concebida.

Basta que se reverbere a respeito do conjunto de direitos fundamentais a que a norma penal se presta a fazer valer. Isso, primeiramente, coaduna com o fato de o Direto Penal se destinar a entabular a proteção de interesses individuais básicos, como a vida a liberdade e a propriedade. Trata-se, pois, de premissa doutrinária atrelada a essência dos denominados direitos fundamentais de primeira dimensão, que possuem como substância basilar o resguardo da esfera precipuamente individual de direitos fundamentais, atuando em prol do próprio indivíduo ou de seu patrimônio, majoritariamente.

Noutro giro, fala-se do rol de garantias concebidas com o que se designa por direitos fundamentais de segunda dimensão, resultantes do período pós-guerra, com o advento da era do bem estar social. Neste período o que se observou foi a necessidade de se abordar todo o corpo social no fim último de amparo pelo Estado, de forma a se verificar o usufruto equitativo dos direitos individuais aludidos na esfera da primeira dimensão. A partir desse cenário proporcionado pela garantia de direitos fundamentais de segunda dimensão é que surge a ideia de proteção de bens jurídicos supraindividuais.

Por isso, é plenamente cabível a colocação da ordem tributária enquanto bem jurídico de caráter supraindividual sendo, portanto, passível sua tutela a nível penal, vez que sua existência constitui uma instrumentalidade para que se promova a atividade arrecadatória do Estado e, consequentemente, se promova o bem estar social comum. Não se trata de utilizar a proteção jurídico penal para tutelar puramente a atuação estatal quanto aos mecanismos de arrecadação, pois se assim o fosse, o Direito Penal seria um mero condutor e realizador de interesses políticos do Estado.

Além disso, a Constituição da República 1988 sedimenta o respaldo de questões supraindividuais, seja como regramentos e mandamentos a serem atendidos, seja como direitos coletivos a serem exercidos, ou mesmo como objetivos

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a serem alcançados. Ademais, a tutela da Ordem Tributária encontra uma referibilidade constitucional, haja vista sua disciplina detalhada nos arts. 145 a 169 do texto constitucional, com alta carga valorativa e principiológica. É também um aparato significativo para a realização dos objetivos fundamentais da República situados no art. 3º CF/88.

Contudo, necessário que se pontue que, mesmo que haja a análise teleológica acerca do bem jurídico penal para fins de análise da plausibilidade da tutela penal do sistema tributário, a concepção do bem jurídico que se adote, pode identificar um objeto jurídico distinto sobre o qual se voltará a proteção penal, o que promoverá uma repercussão e um alcance também igualmente diferente. Martinez Bujár-Pérez (1998) segue a mesma linha ao afirmar que existem duas vertentes básicas que divergem sobre o objeto jurídico a que a norma penal irá atingir no âmbito dos delitos fiscais: a primeira, são as posturas patrimonialistas e as segundas as posturas funcionais.

Na referência às posturas patrimonialistas, há o entendimento de que o objeto jurídico nos delitos de natureza tributária é o patrimônio da Fazenda Pública, mais precisamente a figura do erário público. Tem-se aqui, a ideia de que o bem jurídico patrimonial se refere às retenções a título dinâmico e não estático, atingindo diretamente a atividade de arrecadação tributária desenvolvida constantemente pelo Estado.

As posturas funcionais, por sua vez, vão de encontro às posturas patrimonialistas, pois coadunam com a teoria de que o objeto jurídico de cunho fiscal protegido com a norma que prescreve a previsão penal, está diretamente vinculada às funções que são atribuídas ao tributo, isto é, sua própria razão de existir no seio de cada sociedade.

Nesta vertente, em termos de crítica, há que se falar na abstração e generalidade que lhe é característica, haja vista o fato de que a utilização do tributo para o custeio das atividades que o Estado fornece, se manifesta de forma indireta, o que minimiza o princípio da ofensividade, um dos basilares para que se reconheça uma conduta como delito. Em outras palavras, seria dificultada a atribuição de responsabilidade penal ao agente sonegador de tributos, pois o nexo causal entre sua conduta e a afetação do financiamento de atividades estatais seria de difícil demonstração.

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Pela exposição das posições acerca do tema presentemente tratado, o referido jurista optou por julgar como mais adequado o posicionamento que considere o erário público como o bem jurídico atingido pelos crimes contra a ordem tributária, pois seria questão mais tangível e palpável e, portanto, de análise mais consumível no curso da instrução criminal para fins de responsabilização penal. Neste conceito, assim, o que seria denominado categoricamente como bem jurídico tutelado pela Lei nº 8.137/90 seria a ordem tributária, ou seja, o patrimônio da Fazenda Pública.

Apesar de ser, de fato, a disposição mais objetiva entre as vertentes, a cominação da sanção prescrita no preceito normativo do delito fiscal deve ter como embasamento teológico a prejudicialidade patente e inescusável do patrimônio pertencente ao erário público, devendo sempre atentar-se para o fato de que o diploma normativo que estatui delitos fiscais jamais deverá servir como reprimenda do mero inadimplemento de tributo.

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3 ICMS, TRIBUTAÇÃO E NÃO RECOLHIMENTO: CONSEQUÊNCIAS MATERIAIS E PROCESSUAIS

Quando se tem uma situação fática a ser submetida ao regime jurídico tributário, constitui-se a premissa de que haverá uma transferência de parcela da propriedade privada de determinada pessoa, seja ela física ou jurídica, para a titularidade do Fisco. Apesar de ser o mais notório instrumento que o Estado se utiliza para propagar e gerar recursos que serão usufruídos por seus administrados, o produto puro do tributo não compõe a totalidade da arrecadação, haja vista a existência das sanções patrimoniais, elucidadas anteriormente.

Entretanto, mais necessário que compreender o comportamento pecuniário do tributo e sua inserção nos cofres públicos, seja pela sua consistência na forma de obrigação principal ou mesmo assessória, relevante que se faça uma análise inversamente proporcional, e se explicitem também os aspectos de sua não arrecadação.

Esse ponto de abordagem mostra-se mais indubitavelmente necessário quando a questão gira em torno de um tributo que é responsável por significativa parcela do produto arrecadatório global do erário público do país. O ICMS, por seu amplo alcance e sistemática de arrecadação, ao mesmo tempo em que representa grande parte do volume econômico e financeiro dos estados, carrega consigo uma certa complexidade, fazendo com que seu escopo percorra limites além daqueles ditados pelo regramento normativo tributário, como se notará neste e, mais especificamente, no capítulo seguinte.

3.1 O ICMS enquanto tributo não recolhido

O volume do produto da arrecadação proveniente da tributação por ICMS diz, por si só, sobre a relevância desse tributo para os cofres públicos. Sua proporção valorativa se mostra exponencial se consideradas todas as espécies tributárias previstas constitucionalmente, especialmente no próprio âmbito estadual, ao qual se insere em termos de competência.

Por este contexto, percebe-se que é da receita obtida através da tributação por ICMS que advém o supedâneo financeiro dos entes estaduais. Basta que se tome por exemplo prático que, dos R$ 14.966.761.355,85 de tributos arrecadados no ano

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de 2019 no estado do Ceará, R$ 13.151.857.594,65 são provenientes da arrecadação de ICMS (CEARÁ, 2019). Ou seja, trata-se de um tributo que corresponde a cerca de 87,87% do produto da arrecadação tributária do estado do Ceará.

Aliada a sua expressão arrecadatória no âmbito interno dos entes estaduais, o ICMS consiste em um tributo complexo, em virtude de suas mais diversas formas e possibilidades de verificação no mundo fenomênico, pois reúne várias hipóteses de incidência em uma só espécie, fazendo com que se tenha um tributo de grande protagonismo no contexto científico do direito tributário e de debates no âmbito jurisprudencial.

Assim, pelas razões elucidadas, forçoso que se destaquem pontos concernentes a abrangência do ICMS na atividade de tributação e sua sistemática, bem como as nuances de sua não arrecadação.

3.1.1 Uma breve explanação conceitual do ICMS e aspectos correlatos

O ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) tem previsão no art. 1555 do texto constitucional. Anteriormente à Constituição Federal de 1988, o referido tributo era denominado apenas pela sigla ICM, de forma que, somente com o advento da nova carta constitucional de 88, é que acrescentou-se o “S”.

Sua disciplina constitucional, expressa que um de seus principais traços é ser um tributo de competência dos Estados, bem como do Distrito Federal, trazendo o maior leque de regras que um tributo poderia ter em sede de Constituição, e isso se deve a diversidade das bases econômicas que lhe constituem, a saber: operações de circulação de mercadorias, operações mistas de circulação de mercadorias e prestações de serviços não compreendidos na competência tributária dos Municípios, prestações de serviços de comunicação, importação de bens e mercadorias e importação de serviços.

Também possui um tratamento consubstanciado em uma vasta legislação, sendo um de seus principais regramentos específicos a denominada Lei Kandir (Lei

5 “Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: (...) II - operações

relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior” (BRASIL, 1988a, s.p.).

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Complementar 87/96), de aplicação regida pelo CONFAZ, além das sucessivas leis que a alteraram como a LC 114/02.

A par destas elucidações iniciais, para fins de perquirição da dogmática pertencente ao estudo do ICMS, e para que se entenda seu comportamento prático, imperioso conceituar os termos utilizados no artigo 155 da Constituição Federal, de forma que se compreenda seu alcance, bem como sua própria regra matriz de incidência.

Inicialmente, quanto à incidência do ICMS (imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicações, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior – art. 155, II, CF/88), forçoso destacar que o conceito de mercadoria se alinha, por parte da doutrina, como bem móvel, suscetível de realização por mercancia, ou seja, pela sua troca no mercado. Tanto é que, por esse motivo, Leandro Paulsen (2020, s. p.) defini-as como “bens de comércio”. Assim, quando o constituinte exige a existência de operações de circulação, isso quer dizer que deve haver efetivamente um negócio jurídico que implique em transferência de titularidade, não se incorporando a esta conceituação a movimentação pura e simplesmente física6.

Interessante ponto sobre o tema, consiste na indagação a respeito da forma que deveria tomar a mercadoria para que seja considerada como tal, e, portanto, sujeita a tributação por ICMS, isto é, se precisaria ser tátil ou poderia ser eletrônica/virtual ou mesmo incorpórea. Esta dúvida foi suscitada perante o STF, tendo em vista os novos softwares e seus licenciamentos, tecnologias inovadoras advindas no final dos anos 90, sendo introduzidas em larga escala no mercado nacional.

Nesta senda, os advogados entendiam que, no caso, somente o ISS incidiria sobre os produtos, quer sejam os softwares em larga escala, chamados de “softwares de prateleira”, quer sejam as licenças expedidas individualmente para o usufruto dessas tecnologias. O STF, em sede de Recurso Extraordinário (RE 176.626), entendeu por meio de seu Relator, o Ministro Sepúlveda Pertence, que aos

6 Neste tocante, o STF já reconheceu que o simples deslocamento de coisas de um estabelecimento

para outro, sem transferência de propriedade, não gera direito a cobrança do ICM. Em virtude desse posicionamento, houve sua consolidação em redação sumular nos termos do Enunciado 573 do STF: “Não constitui fato gerador do Imposto de Circulação de Mercadorias a saída física de máquinas, utensílios e implementos a título de comodato” (BRASIL, 1977, s.p.).

Referências

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