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2 CONTEÚDO VALORATIVO E CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS

3.3 LEGITIMIDADE MAJORITÁRIA E LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL

Na atual quadra da história o fenômeno da judicialização da política tem ocupado lugar de destaque. A judicialização da política out em sua expressão correlatat a politização da justiçat representa o fenômeno indicativo da expansão do Poder Judiciário sobre o processo decisório das democracias modernas. Judicializar a política é avançar a atuação do Poder Judiciário sobre as ações dos Poderes Legislativo e Executivot fundado na constitucionalização de direitos e no mecanismo do checks and balances. 99

A judicialização da política adveio do constitucionalismo contemporâneot após o processo de redemocratização de diversos países ocidentais. Foi o novo constitucionalismo que permitiu que se transferissem para as Constituições muitas matérias antes exclusivas do

98 Vide nota de rodapé n° 78.

99 MACIELt Débora Alves; KOERNERt Andrei. Sentidos da Judicialização da Política: Duas Análises. Lua Novat São Paulot n. 57t p. 113-133t 2002.

Poder Executivo e da legislação ordináriat o que propiciou o fortalecimento da posição do Poder Judiciáriot alçado à condição de intérprete da Lei Maior.

No Brasilt o modelo de controle de constitucionalidade previsto na Carta de 1988 representa uma causa importante na judicialização da política. O sistema híbrido de controle de constitucionalidadet que adota os métodos difuso e concentradot associado ao extenso rol de legitimados para as ações diretas perante o Supremo Tribunal Federalt alargou sobremaneira o desempenho ativo do Judiciário na vida institucional brasileira. Desde então as decisão judiciais passaram a ter maior peso e alcance políticot seja se imiscuindo nas ações administrativast suprindo as omissões do Poder Legislativo ou fazendo escolhas morais em temas polêmicos da vida social. No plano individual podem ser citadas como exemplo as decisões do Supremo Tribunal Federal sobre a quebra de sigilo judicial por CPIt a demarcação de terras indígenas na região conhecida como Raposa/Serra do Sol e o uso de algemas. No plano coletivo também se encontram algumas decisões recentes do Supremo Tribunal Federal que demonstram o avanço da justiça constitucional sobre o espaço da política majoritáriat a saber:

(a) Em Ação Declaratória de Constitucionalidade ajuizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB (ADC n° 12t julgada em 16/2/2006)t o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade da Resolução n° 7t do Conselho Nacional de Justiçat que proibia a nomeação de parentes de membros do Poder Judiciáriot até o terceiro graut para cargos em comissão e funções gratificadast independentemente de lei específica. Em seguidat ao julgar o Recurso Extraordinário n° 597.951/RNt julgado em 20/8/2008t o Supremo estendeu a vedação do nepotismo aos Poderes Executivo e Legislativot aprovando a Súmula Vinculante n° 13;

(b) No julgamento de Mandado de Segurança impetrado pelo Partido Democratas (MS 26.604/DFt julgado em 4/10/2007)t o Supremo decidiu por reconhecer que

os mandatos dos parlamentares que trocam de partido pertencem às legendas e não ao eleitot podendo assim o partido político reaver o mandato dos parlamentares que deixarem suas fileiras;

(c) Ao julgar o Mandado de Injunção (MI n° 712/PAt julgado em 25/10/2007) impetrado pelo sindicato de servidores do Poder Judiciário do Estado do Parát o Supremo restringiu o direito de greve dos servidores públicost estendendo a esses o mesmo tratamento dispensado aos trabalhadores da iniciativa privadat em que pese o art. 37 da Constituição Federal prevê a existência de lei específica para regulamentar o direito de greve no setor público;

(d) Em decisão de improcedência proferida em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn n° 3.150t julgada em 25/5/2008)t que atacava o art. 5° da Lei de Biossegurançat o Supremo permitiu e disciplinou as pesquisas com células-tronco embrionárias no Brasil;

(e) Em decisão proferida na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF n° 130t julgada em 30/4/2009) o Supremo Tribunal Federal declarou que a Lei de Imprensa (Lei n° 5.250/67) é incompatível com a atual ordem constitucionalt devendo os conflitos envolvendo a matéria serem decididost doravantet com base na Constituição Federal e nos Códigos Civil e Penal.

O problema da judicialização da política se mostra polêmico pelo fato do Poder Judiciário não ser detentor de voto populart ao contrário do que ocorre com os Poderes Legislativo e Executivo. Em razão dissot a postura mais ativa do Judiciário poderia ser interpretada como uma interferência indevida no espaço de atuação dos demais Poderest aos quais a soberania popular reserva competência para normatizar e fazer cumprir as políticas públicas. A teoria constitucional denomina de dificuldade contramajoritária a possibilidade de

um órgão não eletivo sobrepor-se a uma decisão emanada dos representantes eleitos pelo povo. 100 É neste ponto que devemos parar para analisar a legitimidade majoritáriat obtida através da via eleitoralt e a legitimidade constitucional.

A representação majoritáriat que se expressa através de representantes eleitos pelo voto populart era quase desconhecida no mundo antigo. Ela floresceu na idade média como forma de se obter informações a respeito do que as várias comunidades do reino queriamt bem assim para assegurar a cooperação destas mesmas comunidades na execução de políticast sobretudo a de fazer guerrast e garantir a aprovação de estatutos e taxast para as quais o auxílio do particular era necessário. Foi no século XVIII que o governo representativo se consolidout passando o poder supremo da Grã-Bretanha do rei para o parlamento et nas revoluções americana e francesat uma assembléia de representantes eleitos tornou-se a instituição política padrão. 101

A representação majoritária através do voto é o símbolo essencial da legitimidade política dos Poderes Legislativo e Executivot uma vez que é a representação que permite a sociedade aceitar as decisões do Estado como se fossem suas próprias decisões. Considerando que a sociedade possui valores comunst seus interesses podem ser representados por um parlamento ou por uma única pessoat sendo a eleição não somente uma forma de refletir a vontade da maioriat mas também significa a oportunidade da sociedade fazer suas escolhas e se sentir integrante do processo político. Assimt nas democraciast o voto é elemento essencial para a representação da maioriat portanto os detentores do voto popular são os protagonistas da vida política.

100 BARROSOt Luís Roberto. Judicializaçãot ativismo judicial e legitimidade democrática. Disponível em:

<http://www.oab.org.br/oabeditora/user/revista/1235066670174218181901.pdf>. Acesso: em 11 de maio 2009.

101 LUCASt John Randolph. Democracia e participação. Trad. Cairo Paranhos Rocha. Brasília: Universidade de

É preciso ter clarezat porémt que a democracia não se resume ao princípio majoritáriot haja vista que a vontade da maioria muitas vezes se move por interesses de ocasiãot ignorando os valores permanentes que inspiram o Estado democrático. Portantot faz- se necessário evitar que a vontade da maioria esmague o direito das minoriast devendo sempre existir uma válvula de segurança capaz de preservar esses direitost de modo a impedir que a democracia se degenere numa ditadura da maioria. É neste sentido que se destaca o papel do Poder Judiciário quet mesmo sem contar com o voto populart é responsável por interpretar a Constituição e fazer valer seus valores e direitos fundamentaist ainda que contra a vontade circunstancial da maioria.

Desse modot reside na Constituição Federal o fundamento da legitimidade do Poder Judiciáriot uma vez que é a Constituição responsável por destinar uma parcela do poder político para ser exercida pelos magistradost que não são recrutados através do voto popular. Mesmo assimt em cumprimento a vontade expressa na Constituiçãot cabe à magistratura atuar como co-participante dos demais poderes na preservação do Estado Constitucional de Direito.

Aqui convém lembrar que a atuação do Poder Judiciário também ocorre no plano político da representação populart porquanto todo poder emana do povo e em seu nome deve ser exercido (Constituição Federalt art. 1°t parágrafo único). Entretantot a atuação política do Judiciário se distancia do sentido de uma livre escolhat tendenciosa ou partidarizada. É que a política para o Judiciário encontra balizamento nas possibilidades e limites oferecidos pelo ordenamento vigentet cabendo ao magistrado em sua decisão não se distanciar da realidade social nem das expectativas legítimas dos cidadãost porém sem incorrer na prática de populismo e sem receio de atuar de modo contramajoritário quando for necessário.

Na fronteira de pouca nitidez que separa o direito da políticat a legitimidade da atuação jurisdicional há de ser encontrada nos fundamentos que o magistrado é obrigado a

lançar em todas as suas decisõest sob pena de nulidadet como impõe o art. 92t inciso IXt da Constituição Federal. Quando o juiz motiva as razões de sua decisão em conformidade com a ordem constitucional vigentet aflora de seu decisum toda a carga de legitimidade que advém do poder de representação populart sem que se possa falar em invasão de competência na seara dos demais poderes.

É possível afirmar que a legitimidade majoritária e a legitimidade constitucional não se encontram em lados opostos no jogo democrático. O Poder Judiciário detém legitimidade constitucional para intervir nos casos de omissão legislativa ou do Executivo; para fazer o controle de constitucionalidade das normas ou visando a concretizar os direitos fundamentaist sendo esta atuação em favor e não contra a democracia. “Quando se diz que o Poder Judiciário tem legitimidade constitucionalt mas não legitimidade democráticat se ignora sua funcionalidade democrática”. 102

Assimt a legitimidade do Judiciário não pode ser medida pela escolha através do voto popular. Sua legitimidade reside na Constituição e foi ela que confiou ao Judiciário a missão de garantidor da democraciat figurando como árbitro independente e imparcial nas disputas políticas travadas no Executivo e no Legislativo.