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A Lei como Dispositivo de Coerção ou Novas Reinvindicações Sociais do Sujeito

Ao analisar a LMP como dispositivo tenho como análise principal Foucault (2000), trabalhando o dispositivo como algo relacionado ao dito e o não dito constituídos socialmente, sendo

um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode tecer entre esses elementos (FOUCAULT, 2000, p. 244).

Assim, pude entender essa categoria como práticas discursivas e não discursivas que colaboram para a construção do dispositivo da LMP. Considero como um conceito multidimensional embasado em três grandes eixos de análise, que na verdade, referem- se a três dimensões que Foucault aponta sucessivamente: saber, poder, e produção de modos de subjetivação.

Foucault, ao analisar a questão da governamentalidade, indaga como se governar fosse um fenômeno astucioso, pois concretiza os problemas da governamentalidade, das técnicas de governo, em torno da política e do espaço real dessa luta. Essa realidade deve-se à governamentalidade, ou seja, táticas de governo que permitem definir a cada instante o que deve competir ou não ao Estado, o que é público ou privado, o que é ou não estatal. Diante disso, o autor enumera três aspectos de análise:

1) o conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer esta forma bastante específica e complexa de poder, que tem por alvo a população, por forma principal de saber a economia política e por instrumentos técnicos e essenciais os dispositivos de segurança; 2) a tendência em que todo o ocidente conduziu incessantemente, duramente muito tempo, à preeminência desse tipo de poder que se pode chamar de governo e de um conjunto de saber 3) o resultado do processo através do qual o Estado de justiça da Idade Média, que se tornou nos séculos XV e XVI Estado administrativo, foi pouco a pouco governamentalizado (FOUCAULT. 1989, p. 291-292).

Para o autor, esse novo ordenamento jurídico reflete o quanto as relações interpessoaispassaram a ser a base de trabalho para instituições públicas modernas83. No Brasil, os mecanismos de controle exercido sobre o privado afetam e refinam as condutas e os usos da violência em decorrência de uma crescente publicização do que antes era vivido como estritamente íntimo. Essas novas formas de regulação institucional que culpabilizam e criminalizam as práticas de violência conjugal já apresentam alcances e limites que focalizam o olhar das Ciências Sociais.

Assim, venho pesquisando sobre as narrativas, por ser um método de análise que contempla as necessidades expressas pelos interlocutores e por mim. Tinha interesse de ouvir as histórias contadas por cada entrevistado, mas seria difícil eleger pontos de interesse em cada entrevista; assim, seguia a orientação expressa pelos interlocutores. A cada escolha feita por eles obedecia a um olhar sobre os afetos que se colocavam e os fatos nos processos de denúncia. Quando as questões de foro íntimo tornam-se públicas, identificam-se as narrativas, sua produção entre os sexos diretamente envolvidos no percurso da lei. Nesse percurso, mostro todo um circuito que mulheres e homens passam para denunciar e ser denunciado. O gráfico da circulação

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Isso no Brasil inteiro: Delegacia de Defesa da Mulher, Juizado Especial da Mulher em Situação de Violência, Centros de Referência de Atendimento da Mulher em Situação de Violência e Casas Abrigos.

ritual da LMP, articula o conjunto de sujeitos, saberes instituições e práticas como dispositivos que deverão ser acionados a partir da denúncia.

Foucault, ao analisar a questão, refere-se em primeiro lugar, ao dispositivo como rede que se pode estabelecer entre esses elementos.

Em segundo lugar, demarca a natureza da relação, pontuando elementos heterogêneos. Para o autor, o discurso para aparecer como programa de uma instituição, ou como elemento que parece relevar e mascarar uma prática que permanece muda, de tal modo pode ainda funcionar como reinterpretação dessa prática. Nesse caso, a violência contra a mulher, expõe um novo campo de racionalidade entre os elementos, discursivos ou não, um tipo de jogo, ou seja, mudanças de posição, modificações de funções que, antes eram imutáveis, podem ser diferentes.

E, em terceiro, entende por dispositivo o tipo de formação que, em um determinado momento histórico, teve como função principal responder a uma urgência. Sendo, assim, função estratégica dominante, um imperativo estratégico, funcionando como matriz de um dispositivo que pouco a pouco se tornou o dispositivo de controle- dominação, como por exemplo; a loucura, a doença mental, a neurose, no caso desta pesquisa a violência doméstica e a Lei nº 11.340/06 da Lei Maria da Penha.

Após uma festa de casamento, onde Marina e seu noivo há cinco anos voltavam para casa, ele já bêbado com whisky de quinze anos e com raiva por ir embora. Ela cansada da extravagância do noivo e da falta de sentimento com ela, pediu para terminar a relação. O noivo ao perceber o semblante da noiva e que a mesma falava sério, disse que aquele seria o último dia, o último momento vivos, por que morreríamos ali mesmo. Ao olhar o cruzamento da Pontes Vieira com a Barão de Studart a mais de 150 km por hora[...](Interlocutora, 18.1.2008).

Em 2006, a Lei Maria da Penha trouxe uma verdadeira reviravolta no atendimento à mulher em situação de violência conjugal. Não existia lei que tipificasse a violência doméstica. A Lei nº 9.099/95, existente anteriormente, permitia a aplicação de penas pecuniárias como a cesta básica e multa. A nova lei nº 11340/06, já não permite a aplicação destas penas. Na lei anterior, os juizados especiais criminais tratavam somente do crime, sem lidar com a separação, pedido de pensão e guarda dos filhos. Com a mudança, foi criado o primeiro Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, em Fortaleza, com competência cível e criminal para abranger

todas as necessidades das mulheres da capital. Machado(2014) reflete sobre a abrangência da lei, no artigo para “Além da judicialização: uma leitura da lei Maria da Penha” em três dimensões, interpretativas: normativa penal, protetiva e nominativa.

A dimensão normativa penal é entendida como aquela que engloba todos os artigos de intervenção criminalizante, configurando-se nas três etapas de atuação dos agentes operados do Direito: na fase policial, judicial e de execução.

Na etapa policial, o art. 12 exemplifica expressamente a tendência, ao prever, em seu caput, que, no âmbito da lei: “[...] feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes procedimentos, sem prejuízo daqueles previstos no Código de Processo Penal”, subsequentemente, em seus incisos, prescreve outros procedimentos específicos que devem ser tomados, ainda que não na ordem exata prevista pela lei. Na fase judicial são vários os dispositivos contidos nessa dimensão, como, por exemplo, os art. 16 e 17, para os quais, expressamente: “Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público” e: “É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa”. Bem como: “Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei n° 9.099, de 26 de setembro de 1995”. Sem esquecermos do aumento da pena máxima do delito de violência doméstica (atg.129, 9º., do código Penal brasileiro), para três anos. Na fase correcional da execução da pena, o art. 45 representa de forma esclarecedora a intersecção entre as dimensões. Percebe-se, em seu texto, a conjunção das perspectivas normativo-penal e protetiva, por meio da proposta de uma prevenção especial embasada nos programas de recuperação e reeducação, inserida no art. 45 da lei, que modifica o art. 152 da Lei de Execução Penal, passando a conter o seguinte parágrafo: “Parágrafo único. Nos casos de violência doméstica contra a mulher, o juiz poderá determinar o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação” (MACHADO, 2014, p.33).

Já na dimensão protetiva, a autora delimita o enfoco do trabalho não se dá unicamente sobre as mulheres, mas deve-se agir em diferentes frentes, como o trabalho com os homens, as crianças ou os demais familiares. Não posso deixar de lembrar que a lei veio com a intenção de preservá-las das situações de violências.

A dimensão nominativa é marcada pelo reconhecimento dos direitos humanos, políticos e das lutas das mulheres, perfazendo-se a construção dos esquemas interpretativos de conceitos ou terminologias, tais como violências, feminismos, ou mulheres registradas no texto normativo da lei. A autora faz uma análise da visão da mulher que é mencionada na lei, configurando um distanciamento entre a mulher

universal, e a diferença entre as mulheres que são vistas como sujeitos de direitos humanos (MACHADO, 2014, p. 34) O Artigo 2º coloca:

“Art. 2º. Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana […]”.

A autora faz uma crítica a várias referências à “mulher” no singular, que conflitua com a proposta de limitar a imagem das mulheres a universalismos, como também à oportunidade de fazer uso do termo “mulheres em situação de violência, como ofendida, ao invés de vítima”.